A noite de
Siana não foi remotamente a melhor que ela já teve. As duas horas que conseguiu
dormir de fato foram preenchidas por pesadelos desconexos, mas que envolviam
figuras vestidas de negro, sangue e o mais profundo medo.
Sua
atividade ocorreu toda durante a madrugada, então seus pais não notaram sua
ausência. Na hora habitual, Siana se juntou à família para o café da manhã.
Comeram pães e queijo e beberam suco de
abóbora recém colhida.
Era
uma vida simples, eles sabiam, mas encaravam a constância como uma bênção de
Chauntea. Tantos outros lares mantidos juntos apenas pela obrigação, pelos
laços inquebráveis do casamento. A família de Siana se mantinha junta pelo
amor.
Amor
tanto que seus pais, nesta manhã, tinham olhos apenas um para o outro. Pareciam
particularmente apaixonados, falando miudezas ao pé do ouvido do outro,
provocando risos maliciosos. Normalmente, Siana manifestaria um falso repúdio,
fingindo ânsia e pedindo que fossem para o quarto; hoje, no entando, remexia o
suco que decantava no copo quase obsessivamente. Seus pais não notaram a
ausência de comentários sagazes, nem questionaram o aparecimento súbito de uma
nova cicatriz no pescoço da filha.
Levantou-se,
despediu-se e saiu, a princípio, sem rumo definido. Ao sair do portão, notou
uma figura conhecida, sentada do outro lado da rua, com ar pensativo.
Sacundindo
a poeira da calça, desta vez de um tom verde e bem cuidado, Navere ergueu-se e
foi até ela. Sua pele hoje era de um tom avermelhado, como mogno. Seus olhos
eram escuros, assim como seu cabelo. Um chapéu da mesma cor da calça pousado
sobre a cabeça, ostentando uma pluma frondosa da cor do sangue venoso.
O
andar de Navere demonstrava menos desesperança do que na madrugada anterior,
com as costas bem erguidas e as pernas esguias dando passos longos com os
joelhos bem flexionados.
“Eu
acho que deixei bem claro, Navere. Não o quero aqui.”
“Precisamos
conversar.”
“Eu
não quero! Será que você não se cansa de tentar me matar!? Já tive o suficiente
por hoje!”
“Será
que então podemos... não conversar? Siana, nós fomos atados. Phidain nos
prendeu para sempre. Você não enxerga, mas há entre nossos punhos uma corrente
finíssima, de prata, inquebrável. Ela não será arrancada jamais... ou assim que
resolvamos os problemas com nosso mestre. Claro que esta corrente não é uma
metáfora, e existe de fato.”
“E
por que não consigo vê-la?”, perguntou Siana, notando, ao final da frase, que
havia caído na pegadinha verbal.
“Porque
apenas as pessoas inteligentes conseguem vê-la! Ha ha ha ha!”
Ela
não ficou tão incomodada quanto decidiu demonstrar. Fechou a cara e saiu
andando.
“Oooh,
vamos, Siana! Não seja tão ranzinza. Venha, vamos não conversar. Tenho um lugar
ótimo para isso!”
Antes
que ela pudesse argumentar, Navere emulou a corrente que mencionara, usando os
braços de ambos para representá-la.
Arrastou a meia elfa por alguns minutos, com os passos deles pontuados
por algum protesto verbal por parte dela. Apesar disso, ela não fazia força
para retirar sua mão da dele, e parecia colaborar, andando em velocidade
razoável e não oferecendo resistência.
Internamente,
Siana não confiava em Navere completamente, mas algo no meio elfo parecia
despertar calma e tranquilidade. Ela acreditava que em outros momentos, talvez
em outra vida, eles pudessem ser amigos.
As semelhanças entre eles, mesmo que ambos meio-elfos, não eram notáveis. A
capacidade dele de transformar a cor de sua pele, olhos e rosto era admirável,
mas deixava-o ainda mais enigmático e indecifrável. Siana pensou que esta era
provavelmente a intenção dele.
Continuavam
andando pela cidade, Navere na frente e Siana, puxada pela mão. Chegaram à
Taverna.
“Eu
vim aqui ontem, Navere. Isso não é novidade para mim.”
“Pois
venha mais uma vez.”
Pararam
em frente a porta da taverna, que tinha seu nome gravado em uma bela placa
entalhada sobre a porta reforçada de carvalho enegrecido. Flanqueando a entrada,
dois estandartes com o escudo de Amlugnehtar sobre um fundo quadriculado azul
pendiam, tremulando levemente na manhã quase sem brisa. O sol brilhava forte.
Na porta, duas cabeças de dragão em estanho seguravam argolas.
Siana
já aprendera: tomou uma das argolas em sua mão e bateu três vezes com ela na
porta. A entrada se abriu, exibindo um belo salão decorado com estátuas e tapeçarias. Na parede
logo à frente deles, uma inscrição mágica
esclarecia:
Amlugnehtar; élfico: matador de dragões
Com a pressa de Phidain, na
visita anterior Siana não teve tempo de apreciar aquele salão com a devida
atenção. Circundando a sala, estátuas hiperrealistas representavam cada um dos
Amlugnehtar. Em tamanho real, as estátuas representavam-nos em suas poses e
trajes habituais. Orsin, o paladino anão, escondia-se por trás de uma pesada
armadura completa. As mãos, em posição aberta, transmitiam aspecto benevolente.
Nyx, com brilhantes chifres em estanho polido, posava com as mãos abertas à
frente do corpo e as costas arqueadas e joelhos dobrados, como se conjurasse
uma magia de grande poder. Atrás delas, belas asas reptilianas exibiam até
pequenas veias. Phalos, imponente em seus quase dois metros de altura, exibia
belas escamas metálicas e igualmente polidas. Segurava uma espada e carregava
em seu pescoço um colar feito de dentes imensos sobre o tórax nu. Desmond, o
meio elfo ladino, parecia curvado, com o
manto cobrindo seu rosto e ocultando suas feições. Em sua mão, a rapieira
brilhava, colocada em posição discreta abaixo da cintura. Sonam, o monge anão, com
roupas simples e confortáveis, fora representado de olhos fechados, mãos juntas
à frente do corpo e a barba longa à altura do peito. Abaixo da inscrição mágica, alguns nomes foram
listados.
Glazhael, branco, adulto,
Skyreach Castle
Loivissa, azul, jovem, Taverna
de Daggerford
Araunthator, branco,
adulto, Mar do Gelo Errante
Chulth, verde, adulto,
Floresta Enevoada
Tharos, negro, adulto,
Waterdeep
Dennenth e Tamenth, vermelhos,
jovens, vilarejo de Shardalath.
Prisão eterna de Tiamat e
erradicação do Culto do Dragão
“São esses os dragões que
eles mataram?”, perguntou Siana.
“Achei
que você já tinha vindo aqui”, zombou Navere.
“Ao
contrário de você, eu me ocupo com outras coisas além de enaltecer feitos alheios.
Eu reconheço muito o que eles fizeram por nós e acho que eles são ótimos
exemplos para a nova geração, que somos nós. Acho que devemos nos espelhar e
fazer nossa própria história, nos apoiando nos mestres passados. Infelizmente,
acho que tanta ostentação de poder talvez não seja uma forma construtiva de
inspirar novos aventureiros.”, disse Siana, com alguma resignação. Aspirou para
retomar o fôlego.
“Eu
concordo com você.”, disse uma voz atrás deles. Ao se virarem, Siana e Navere
não encontraram a fonte da voz por um segundo. Ao abaixarem os olhos, viram seu
interlocutor. O anão, vestido com roupas simples, seria facilmente confundido
com um cidadão comum. A estátua quase imediatamente atrás dele, em tamanho
real, não deixava dúvidas de que era Orsin, o paladino.
“Senhor...Orsin,
eu... eu... me desculpe se o desrespeitei!”, disse Siana, visivelmente aturdida
por ter expressado sua opinião controversa.
“Não
se acanhe, criança. Eu realmente concordo com você. Essa ostentação toda acaba
me perturbando um pouco. Venham, vamos tomar alguma coisa. Você me parece uma
menina muito inteligente! Conte-me mais do que você pensa sobre uma mesa bem
servida.
Orsin
virou as costas e encaminhou-se à passagem central. Aguardou Navere e Siana
embarcarem. O disco se moveu para baixo, desta vez, ultrapassando o nível do
solo. Depois de atravessar uma vasta largura de solo e depois um grande pé
direito, chegaram em um amplo salão irregular. Ao contrário do resto da torre,
o andar inferior parecia quase como uma formação natural. Não obedecia o molde
cilíndrico da torre e ultrapassava grandemente as medidas dos outros salões nos
pavimentos superiores.
Grandes
barris de carvalho acomodados nas laterais pareciam ter muitos anos. Em cada um
deles, uma placa indicava a bebida que fermentava, a origem e a data.
Algumas
mesas colocadas de forma desorganizada estavam já se enchendo de clientes,
mesmo no período da manhã. A maioria dos frequentadores era de anões, quase
todos eles já com canecas fartas de cerveja. Nas paredes, algumas cenas
entalhadas na pedra mostravam os Amlugnehtar. Curiosamente, Siana e Navere não
encontraram o retrato de Orsin. Indagado por eles, Orsin explicou que ele mesmo
havia esculpido os retratos e cenas na pedra, e ainda não tinha tido tempo de
fazer a si mesmo.
“E
também, sou feio como todos os outros anões aqui. Vejam, somos todos parecidos!
He he he he!”
A
modéstia de Orsin era notável, principalmente porque o fim das aventuras deles
e construção da taverna havia sido há dez anos, tempo de sobra para que ele
entalhasse muitos retratos de si mesmo.
“Vejo
que seus olhos transmitem consternação, criança”, dirigiu-se a Siana. “Posso
ajudar-lhe em algo?”
Muito
surpresa com a hospitalidade e cordialidade de Orsin, Siana não teve coragem de
pedir-lhe nada. Durante algum tempo, mantiveram-se em silêncio na mesa. Orsin
levantou-se, acreditando estar intimidando os convidados de alguma forma. Juntou-se
a um pequeno grupo de anões que conversava sobre trolls. Navere decifrou da
lingua anã que usavam as palavras “ponte”, “pênis” e “dinheiro”, e abriu um
sorriso, tentando imaginar o que isso poderia gerar em uma história.
“Siana.
Preciso saber se você entende o que são os Zhentarim.”
A
pergunta a tomou de surpresa. Siana arregalou os olhos à menção do grupo,
demonstrando muita preocupação por Navere mencionar aquilo ali, em público.
“Navere,
tem certeza de que este é um lugar adequado para que tratemos deste assunto?”
“Nenhum
lugar é adequado para conversarmos sobre isso. Eles têm ouvidos em todos os
lugares, até dentro da sua casa ou da minha. Aqui temos que lidar com seus espiões,
mas também temos muitas testemunhas caso eles resolvam... aprontar outra
daquelas conosco.”
“...”,
emudeceu-se Siana por alguns instantes. “Certo. Me fale sobre Phidain e os
Zhentarim.”. Um arrepio percorreu seu corpo. Como um martelo golpeando aço,
sentiu o medo ressonando por sua espinha.
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