As ruas de terra batida daquele
distrito de Águas Profundas costumavam avermelhar as barras dos tecidos,
principalmente mantos e calças longas. Siana já não se incomodava. Phidain ocasionalmente
reclamava, mas hoje parecia tão exausto que provavelmente não notara que suas
calças estavam vermelhas quase até os joelhos.
A
casa de Siana era muito próxima do casebre de Phidain. Despediram-se, e Phidain
continuou caminhando mais alguns metros em direção à sua residência. Siana
havia frequentado muito a casa dele, durante seu período de treinamento. Seu
quintal tinha alguns bonecos para que treinassem suas magias; a sala parecia
mais uma oficina, onde Phidain construía e arrumava seus instrumentos e
acessórios. O ambiente era grande e comportava também a cama e armários, além
de sua pequena cozinha, raramente utilizada. Phidain não tinha posses
importantes, e parecia apenas subsistir com o parco dinheiro que produzia com
sua arte e seus truques.
Enquanto
Siana abria o portão de entrada do seu jardim, a visão periférica denunciou o
andar levemente alterado de seu mestre. À sua direita, na rua escura, Phidain
apertara o passo. Sua cabeça parecia um pouco mais erguida. Siana fingiu não
perceber, mas notou que ele olhou para trás para conferir se ela já havia
entrado. Siana aproveitou seu treinamento e fingiu que fechava a porta e
entrava, enquanto escondia-se atrás de um arbusto frondoso em seu quintal.
Observou Phidain se afastando com rapidez, passando diretamente pela porta de
seu casebre. Siana preocupou-se. A
linguagem corporal de Phidain havia mudado completamente e ele parecia transmitir
consternação e medo. Ela temeu por sua segurança e decidiu segui-lo; afinal, por
mais tagarela e inconveniente que Phidain fosse, ele era seu mestre, melhor
amigo e segundo pai.
Movendo-se com
furtividade, Siana conseguiu translocar-se de trás do arbusto para a casa mais
próxima, e desta para seguinte. Permaneceu seguindo Phidain por quase meia
hora, enquanto ele andava em ritmo cada vez mais apressado. Invadiu o distrito
das docas de Águas Profundas. Então, abruptamente, perdeu-o de vista.
Começou
a procurar ao redor, o som do mar embalando seus pensamentos e acobertando seus
passos furtivos mas não treinados o suficiente. Após alguns minutos, notou uma
porta semiaberta em um armazém.
Os
leves rastros que os pés de Phidain marcaram no chão puderam ser vistos após
uma cuidadosa vistoria. Empurrando a porta com muito cuidado, Siana conseguiu
observar cautelosamente o lado de dentro.
Ali,
um corredor escuro seguia e dobrava à direita logo à frente. Uma luz fraca,
parecida com a de uma vela pequena, tentava alcançar a esquina do corredor, mas
seu raio não permitia. Siana enxergava no escuro por sua ascendência élfica,
mas conseguia perceber que o ambiente estava muito escuro.
Ainda
tentando não fazer barulho em absoluto, moveu-se em direção à dobra do
corredor. Tentou observar escondida atrás da parede. Quando esticou o pescoço,
pôde ver Phidain agachado, com um pergaminho nas mãos, pena e um pequeno frasco
de tinta. Ao tentar ver o que ele escrevia, conseguiu notar que a tinta se
esvanecia ao tocar o pergaminho.
Seu
pé direito pisou com um pouco mais de força no chão, e um estalo foi produzido
pela ripa mal colocada no assoalho. Phidain se assustou, levantando a cabeça de
súbito. No limite da parede, notou meia cabeça fitando-o fixamente. A luz
insuficiente da vela não o permitia distinguir feições, e ele ficou muito
assustado com a presença de alguém ali.
“Parado
aí! Quem vem lá? O que faz aqui?”
Siana
não viu outra forma de se salvar da percepção, e decidiu mostrar-se. “Sou eu,
Phidain. Siana.”
“O
que faz aqui, menina!? Já é tão tarde da noite!”
“É
que você parecia tão cansado... fiquei preocupada e resolvi... checar se estava
tudo bem. Quando vi que não foi para casa fiquei ainda mais nervosa.”
Ele
pareceu relaxar um pouco por saber que era sua pupila, mas seu tratamento com
ela pareceu estranhamente cordial. “Vamos, vamos! Vou levar você para casa.
Pode ir indo, só vou deixar isso aqui e já vou...”
“Prefiro
esperar você, Phidain...”
“Oh...
certo. Deixe-me só terminar aqui...”
O
halfling escreveu mais duas palavras, pareceu assinar e fechou o pergaminho com
uma fita negra. Não selou o que aparentava ser uma carta.
“Vou
só colocar isso aqui e podemos ir...”
Ele
colocou o pergaminho num dos cantos da sala. De forma não compreensível, o
objeto desapareceu e um círculo de runas brilhou em azul ao redor dele. Quando
apagaram, Siana notou que elas já estavam ali, mas pareciam encobertas de
poeira. Ela achou aquilo terrivelmente estranho, mas Phidain parecia ter um caráter
sem falhas. Ela sentiu-se legitimamente preocupada com o bem estar de seu
mestre.
Esperou-o
alcançá-la no limite da dobra do corredor. “Phidain... o que está acontecendo?”
“Nada,
querida, nada. Não se preocupe. O velho Phidain só precisava enviar notícias à
família, apenas contar como andam as coisas, he he he!”
“Mas
você me disse que tinha perdido toda sua família!”, retrucou Siana, suspeitando
da afirmação, mas não permitindo que a identificação da mentira de Phidain
chegasse ao nível consciente.
“É...
uma prima! Uma prima minha com quem mantenho contato ainda. Nove filhos e mais
um a caminho! Ela está tão enorme que estamos achando que desta vez ela vai
parir uma ninhada!”
“Certo...
espero que ela fique bem então...”. Siana já se sentiu um pouco mais desconfiada.
Phidain poderia estar verdadeiramente encrencado. Ainda assim, Siana o
considerava muito inteligente e confiava que ele conseguiria resolver seus
problemas sozinho e com astúcia.
Ela
aceitou que provavelmente ele tinha algo a esconder, e deveria permanecer desta
forma. Infelizmente Siana não era uma pessoa muito sábia; esperta, com certeza.
Aprendia habilidades como ninguém. Fazia ótimas correlações, pensava rápido e chegava
a soluções muito eficientes para os problemas. Mas sofria do mal da idade; era
jovem demais.
Algumas em situações que exigiram ação rápida, Siana fraquejou e não conseguiu desempenhar
bem. Tantas outras vezes fora enganada. Era quase incapaz de barganhar, e sua mãe
ficava enlouquecida com a tendência que ela tinha de ceder seus vegetais a
qualquer um que se dissesse necessitado ou que passasse maltrapilho pela frente
de sua casa.
Não
era boa comerciante, e não sabia mentir. Gaguejava em situações que lhe
apresentavam muita pressão e não sabia lidar muito bem com seus próprios
sentimentos. Falava rápido, e se atrapalhava nos raciocínios. É como se seu cérebro
vivesse acelerado e fosse pareado apenas pelo tamanho de seu coração. Apesar
disso, Phidain ainda havia visto nela um potencial imenso para a vida artística
e mágica dos bardos, para que ela pudesse exercitar sua vivacidade ao mesmo tempo
que experimentar a magia que ela tanto amava.
Siana
acreditava que sua personalidade a havia impedido de ser aceita entre os magos.
Esbaforida, como eles disseram em segredo, era realmente um adjetivo que a
descrevia muito bem. Mais do que isso, ela sabia que magos não costumam ser
ansiosos, afoitos e altruístas. Ela realmente não parecia se encaixar no estereótipo
de maga centrada, introspectiva, reservada e estudiosa. Contentou-se com seu próprio diagnóstico autodepreciativo. Ela havia sonhado com a vida de feiticeira, e não
havia nascido uma.
“Phidain”,
disse Siana quando já avançavam juntos, aproximadamente na metade do caminho. “Você
acha que um dia eu poderia ser maga?”
“Siana...
nós já conversamos sobre isso! Eles já negaram você... e você é... espalhafatosa
demais. Você é quase tão colorida quanto um verme púrpura!”
“Mas...
eu nem gosto de roupas coloridas assim!”
“Não
são as roupas, querida... é você por dentro...”
Eles
chegaram novamente até a casa de Siana. Phidain costumava caminhar com ela até
lá, apenas algumas casas para a frente. Despediram-se com a promessa de retomar
a empreitada na taverna dos Amlugnehtar na manhã seguinte.
Ao
entrar em casa, Halyna recebeu a filha com animação. “Siana! Onde você estava?
Já está tarde. Tudo bem, olhe só: fiz um bolo para você!”
“Era
tudo o que eu precisava hoje, mãe. Você não vai acreditar no dia que tive
hoje...”
Enquanto
detalhava para sua mãe os acontecimentos do dia, à porta bateu um rapazote,
sacudindo um pergaminho na mão.
“Correspondência
para a senhora Siana filha de Illithor!”
Halyna,
mesmo estranhando o horário do mensageiro, deu a ele uma moeda de cobre, e
fechou a porta.
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