quinta-feira, 5 de novembro de 2015

5 – O Armazém

As ruas de terra batida daquele distrito de Águas Profundas costumavam avermelhar as barras dos tecidos, principalmente mantos e calças longas. Siana já não se incomodava. Phidain ocasionalmente reclamava, mas hoje parecia tão exausto que provavelmente não notara que suas calças estavam vermelhas quase até os joelhos.
                A casa de Siana era muito próxima do casebre de Phidain. Despediram-se, e Phidain continuou caminhando mais alguns metros em direção à sua residência. Siana havia frequentado muito a casa dele, durante seu período de treinamento. Seu quintal tinha alguns bonecos para que treinassem suas magias; a sala parecia mais uma oficina, onde Phidain construía e arrumava seus instrumentos e acessórios. O ambiente era grande e comportava também a cama e armários, além de sua pequena cozinha, raramente utilizada. Phidain não tinha posses importantes, e parecia apenas subsistir com o parco dinheiro que produzia com sua arte e seus truques.
                Enquanto Siana abria o portão de entrada do seu jardim, a visão periférica denunciou o andar levemente alterado de seu mestre. À sua direita, na rua escura, Phidain apertara o passo. Sua cabeça parecia um pouco mais erguida. Siana fingiu não perceber, mas notou que ele olhou para trás para conferir se ela já havia entrado. Siana aproveitou seu treinamento e fingiu que fechava a porta e entrava, enquanto escondia-se atrás de um arbusto frondoso em seu quintal. Observou Phidain se afastando com rapidez, passando diretamente pela porta de seu casebre.  Siana preocupou-se. A linguagem corporal de Phidain havia mudado completamente e ele parecia transmitir consternação e medo. Ela temeu por sua segurança e decidiu segui-lo; afinal, por mais tagarela e inconveniente que Phidain fosse, ele era seu mestre, melhor amigo e segundo pai.
Movendo-se com furtividade, Siana conseguiu translocar-se de trás do arbusto para a casa mais próxima, e desta para seguinte. Permaneceu seguindo Phidain por quase meia hora, enquanto ele andava em ritmo cada vez mais apressado. Invadiu o distrito das docas de Águas Profundas. Então, abruptamente, perdeu-o de vista.
                Começou a procurar ao redor, o som do mar embalando seus pensamentos e acobertando seus passos furtivos mas não treinados o suficiente. Após alguns minutos, notou uma porta semiaberta em um armazém.               
                Os leves rastros que os pés de Phidain marcaram no chão puderam ser vistos após uma cuidadosa vistoria. Empurrando a porta com muito cuidado, Siana conseguiu observar cautelosamente o lado de dentro.
                Ali, um corredor escuro seguia e dobrava à direita logo à frente. Uma luz fraca, parecida com a de uma vela pequena, tentava alcançar a esquina do corredor, mas seu raio não permitia. Siana enxergava no escuro por sua ascendência élfica, mas conseguia perceber que o ambiente estava muito escuro.
                Ainda tentando não fazer barulho em absoluto, moveu-se em direção à dobra do corredor. Tentou observar escondida atrás da parede. Quando esticou o pescoço, pôde ver Phidain agachado, com um pergaminho nas mãos, pena e um pequeno frasco de tinta. Ao tentar ver o que ele escrevia, conseguiu notar que a tinta se esvanecia ao tocar o pergaminho.
                Seu pé direito pisou com um pouco mais de força no chão, e um estalo foi produzido pela ripa mal colocada no assoalho. Phidain se assustou, levantando a cabeça de súbito. No limite da parede, notou meia cabeça fitando-o fixamente. A luz insuficiente da vela não o permitia distinguir feições, e ele ficou muito assustado com a presença de alguém ali.
                “Parado aí! Quem vem lá? O que faz aqui?”
                Siana não viu outra forma de se salvar da percepção, e decidiu mostrar-se. “Sou eu, Phidain. Siana.”
                “O que faz aqui, menina!? Já é tão tarde da noite!”
                “É que você parecia tão cansado... fiquei preocupada e resolvi... checar se estava tudo bem. Quando vi que não foi para casa fiquei ainda mais nervosa.”
                Ele pareceu relaxar um pouco por saber que era sua pupila, mas seu tratamento com ela pareceu estranhamente cordial. “Vamos, vamos! Vou levar você para casa. Pode ir indo, só vou deixar isso aqui e já vou...”
                “Prefiro esperar você, Phidain...”
                “Oh... certo. Deixe-me só terminar aqui...”
                O halfling escreveu mais duas palavras, pareceu assinar e fechou o pergaminho com uma fita negra. Não selou o que aparentava ser uma carta.
                “Vou só colocar isso aqui e podemos ir...”
                Ele colocou o pergaminho num dos cantos da sala. De forma não compreensível, o objeto desapareceu e um círculo de runas brilhou em azul ao redor dele. Quando apagaram, Siana notou que elas já estavam ali, mas pareciam encobertas de poeira. Ela achou aquilo terrivelmente estranho, mas Phidain parecia ter um caráter sem falhas. Ela sentiu-se legitimamente preocupada com o bem estar de seu mestre.
                Esperou-o alcançá-la no limite da dobra do corredor. “Phidain... o que está acontecendo?”
                “Nada, querida, nada. Não se preocupe. O velho Phidain só precisava enviar notícias à família, apenas contar como andam as coisas, he he he!”
                “Mas você me disse que tinha perdido toda sua família!”, retrucou Siana, suspeitando da afirmação, mas não permitindo que a identificação da mentira de Phidain chegasse ao nível consciente.
                “É... uma prima! Uma prima minha com quem mantenho contato ainda. Nove filhos e mais um a caminho! Ela está tão enorme que estamos achando que desta vez ela vai parir uma ninhada!”
                “Certo... espero que ela fique bem então...”. Siana já se sentiu um pouco mais desconfiada. Phidain poderia estar verdadeiramente encrencado. Ainda assim, Siana o considerava muito inteligente e confiava que ele conseguiria resolver seus problemas sozinho e com astúcia.
                Ela aceitou que provavelmente ele tinha algo a esconder, e deveria permanecer desta forma. Infelizmente Siana não era uma pessoa muito sábia; esperta, com certeza. Aprendia habilidades como ninguém. Fazia ótimas correlações, pensava rápido e chegava a soluções muito eficientes para os problemas. Mas sofria do mal da idade; era jovem demais.
                Algumas em situações que exigiram ação rápida, Siana fraquejou e não conseguiu desempenhar bem. Tantas outras vezes fora enganada. Era quase incapaz de barganhar, e sua mãe ficava enlouquecida com a tendência que ela tinha de ceder seus vegetais a qualquer um que se dissesse necessitado ou que passasse maltrapilho pela frente de sua casa.
                Não era boa comerciante, e não sabia mentir. Gaguejava em situações que lhe apresentavam muita pressão e não sabia lidar muito bem com seus próprios sentimentos. Falava rápido, e se atrapalhava nos raciocínios. É como se seu cérebro vivesse acelerado e fosse pareado apenas pelo tamanho de seu coração. Apesar disso, Phidain ainda havia visto nela um potencial imenso para a vida artística e mágica dos bardos, para que ela pudesse exercitar sua vivacidade ao mesmo tempo que experimentar a magia que ela tanto amava.
                Siana acreditava que sua personalidade a havia impedido de ser aceita entre os magos. Esbaforida, como eles disseram em segredo, era realmente um adjetivo que a descrevia muito bem. Mais do que isso, ela sabia que magos não costumam ser ansiosos, afoitos e altruístas. Ela realmente não parecia se encaixar no estereótipo de maga centrada, introspectiva, reservada e estudiosa. Contentou-se com seu próprio diagnóstico autodepreciativo. Ela havia sonhado com a vida de feiticeira, e não havia nascido uma.
                “Phidain”, disse Siana quando já avançavam juntos, aproximadamente na metade do caminho. “Você acha que um dia eu poderia ser maga?”
                “Siana... nós já conversamos sobre isso! Eles já negaram você... e você é... espalhafatosa demais. Você é quase tão colorida quanto um verme púrpura!”
                “Mas... eu nem gosto de roupas coloridas assim!”
                “Não são as roupas, querida... é você por dentro...”
                Eles chegaram novamente até a casa de Siana. Phidain costumava caminhar com ela até lá, apenas algumas casas para a frente. Despediram-se com a promessa de retomar a empreitada na taverna dos Amlugnehtar na manhã seguinte.
                Ao entrar em casa, Halyna recebeu a filha com animação. “Siana! Onde você estava? Já está tarde. Tudo bem, olhe só: fiz um bolo para você!”
                “Era tudo o que eu precisava hoje, mãe. Você não vai acreditar no dia que tive hoje...”
                Enquanto detalhava para sua mãe os acontecimentos do dia, à porta bateu um rapazote, sacudindo um pergaminho na mão.
                “Correspondência para a senhora Siana filha de Illithor!”

                Halyna, mesmo estranhando o horário do mensageiro, deu a ele uma moeda de cobre, e fechou a porta.

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