segunda-feira, 2 de novembro de 2015

2 - Amlugnehtar e o Culto do Dragão

Nyx estava cansada. Já havia contado e recontado suas histórias inúmeras vezes por todos estes dez anos. Desde o final da jornada árdua que dividiu com os outros membros de Amlugnethar, Nyx tem tratado com os curiosos grande parte das vezes. Endireitou as costas, acenou para uma das garçonetes e sinalizou por mais bebidas. Ao observar a passagem central de seu andar, viu, subindo nos discos, Sonam. Seus olhos tristes desafiaram o sorriso que ele desferiu, esticando suas mãos num aceno parcial. 
                Nyx não soube dizer se Siana não o reconheceu ou não esboçou reação, mas Phidain obviamente havia ficado muito espantado. A visão do anão monge fora inesperada e assustadora.
                “Sonam tem cicatrizes muito fundas pela destruição de seu templo e seus iguais. O Culto do Dragão destruiu toda a região por vingança, depois de termos frustrado tantas empreitadas e dizimado tamanha parcela de suas forças. Sonam perdeu todos os que amava e conhecia, todos que o criaram e o fizeram quem ele é. Morreram sem que Sonam obtivesse resposta da última carta que enviou ao seu mestre. Todos os dias ele questiona o que o mestre teria respondido se tivesse tido a chance. Portanto, se Sonam os receber, por favor, respeitem seu pesar. “, esclareceu Nyx.
                “A perda de quem nos fez é mais funda do que a perda de um reino inteiro. Meu coração e respeito para Sonam”, disse Phidain. “Certo, podemos continuar? Você, ham..., desculpe, a senhora estava discorrendo sobre suas primeiras aventuras com Amlugnethar, e como o grupo incluiu outras pessoas no começo.”
                “Sim. Como já mencionei, o grupo era muito diferente quando começamos a viajar. Veja, nossa associação foi quase acidental. Greenest, a cidade onde estávamos, foi atacada pelo culto. Um dragão azul destruiu grande parte da cidade, causando muitas e muitas perdas. Nossa presença e ação durante o ataque não impediu o dragão de causar muitos prejuízos e tomar muitas vidas, mas pudemos auxiliar na contenção dos danos. Nosso valor foi percebido de alguma forma, e fomos recrutados para o resgate de um Harpista. Invadimos o acampamento do culto onde este harpista, Leosin, estava sendo mantido refém. O encontramos quase morto, crucificado no centro do acampamento. Nos movemos livremente por termos utilizado roupas do culto conseguidas em confrontos anteriores com alguns cultistas. Libertamos Leosin, curamo-lo de seus ferimentos mais graves até que ele pudesse andar e o escoltamos para fora do acampamento. Eram centenas de membros do culto concentrados naquele acampamento, e éramos apenas seis e um desconhecido ferido.  Sentíamos que deveríamos agir, mas estávamos seriamente em desvantagem. Enquanto discutíamos as possibilidades, Barrocuda resolveu agir sozinho, como costumam os druidas. Durante nossa conversa, ele incendiou o acampamento. As barracas, muito inflamáveis, não ofereceram resistência. Soubemos depois que muitos membros do culto morreram no incêndio, mas que a vasta maioria havia conseguido fugir e levar consigo todo o tesouro que haviam conseguido em seus ataques.”
                “E de quanto tesouro estamos falando?”, perguntou Siana.
                “Todo o que encontraram em todos os ataques durante toda a ação do culto. Uma quantidade impensável de tesouro era necessária para a invocação de Tiamat.”
                Ao som do nome da deusa dragão de cinco cabeças, Phidain esqueceu-se de respirar por alguns segundos.  Siana não pestanejou. Phidain e Nyx, desta vez, não atribuíram sua impassividade à frieza ou paz de espírito. Concordaram silenciosamente que Siana era nova demais para ter vivido tanto a queda de Tiamat quanto a possibilidade de seu retorno.
                Dez anos antes, a iminência do retorno da deusa dragão abalara toda Faerûn. Ataques conduzidos pelo culto tomaram centenas de milhares de vidas em todas as regiões, enquanto o culto angariava prisioneiros e tesouro para que fossem sacrificados no ritual final de invocação de Tiamat.
                “Tive minha casa destruída quando os dragões atacaram Neverwinter. Tive que me mudar para Águas Profundas pouco depois, pois perdi tudo. Acabei com uma mão na frente e outra atrás, tão nu quanto uma ninfa, mas um pouco mais bonito, he he he!”, disse Phidain. Nyx e Siana não esboçaram sorrisos. “Pensem pelo lado bom, em Neverwinter ninguém gostava de minhas músicas! E no caminho para cá, tive uma viagem tão difícil que tive que escolher: ou me defenderia usando a pouca magia que sabia, ou seria comido vivo pelas mais variadas criaturas. Escolhi me defender, porque eu sempre achei que sou um pouco... indigesto. Resolvi ajudar o estômago das criaturas”. Desta vez, Nyx sorriu um pouco e as energias pesadas foram aliviadas levemente.
                “Nesta época, Phidain, nem as caravanas eram seguras. Passamos um tempo em uma. Fomos contratados como escolta, mas descobrimos todo tipo de atividade suspeita dentro dela. Foi nesta mesma caravana que conhecemos Imsa, mas nesta época ela estava... um pouco verde”.
                “Imsa é a guerreira que se casou com o elfo? Em alguns dos relatos ela é mencionada, mas não costuma receber muitos detalhes”, completou Phidain.
                “Infelizmente, pois Imsa é uma amiga valorosa e parte inestimável de nossa caminhada. Hoje em dia ela e Galen são muito felizes. Inclusive, Siana, a filha dela se parece muito com você, mas ainda é uma criança. O nome dela é Nyx...”. Um sorriso sarcástico tomou o rosto de Nyx, e ela continuou: “...não sei de onde tiraram este nome... he he he he”
                No início, Nyx, a feiticeira, era conhecida por seu sarcasmo, que ativamente pontuava suas batalhas e confrontos. Conta-se que quem a viu lutando podia ouvir risadas inocentes de prazer e seus olhos brilharem quando ela carbonizava grandes grupos de inimigos com apenas uma bola de fogo. Hoje, vivendo em Águas Profundas e raramente saindo para se aventurar,  tornou-se mais estoica, embora em alguns momentos ainda manifeste sua personalidade instável e alienígena. Seu espírito tocado por demônios deixou sua marca e Nyx, infelizmente, muitas vezes levou a imagem negativa dos tieflings à realidade. Sua fama, contudo, permitiu que os tieflings pudessem ser considerados um pouco mais confiáveis. Por toda Faerûn, nos últimos anos, os tieflings têm tido menos problemas para manterem uma vida honesta e serem considerados dignos de confiança.
                Nyx, no entanto, achava que uma pessoa sagaz não devia confiar nela, nem depois de tudo o que realizaram. Também achava que nem a pessoa mais sagaz seria capaz de desconfiar de suas motivações e intenções.
                “E sobre a entrada que vocês encontraram no subterrâneo da taverna?”, iniciou Phidain. “Já estava aqui quando vocês resolveram construir a taverna?”
                “Bem, acho que vocês sabem, mas esta torre não estava aqui. Foi desenhada e construída com a ajuda da Arcane Brotherhood depois do final de nossa jornada. Ao lado deste terreno, há uma bela casa. Antes de ser tão bonita, costumava ser uma velha sucata de madeira podre, que compramos com nossas economias, quando resolvemos nos estabelecer em Águas Profundas. Devo admitir, foi por insistência minha que gastamos nosso tesouro naquela velharia, mas a casa se provou um abrigo inestimável durante nosso período de luta contra o Culto. Infelizmente, também foi alvo de diversos ataques violentos, principalmente o final, perpetrado pelo Culto do Dragão. Neste, a casa foi destruída e posteriormente reconstruída. A passagem então, que vocês acessam pelo andar inferior desta torre, na verdade inicia-se no porão da casa. Um túnel da torre até lá foi construído e encantado, para que criaturas do interior das cavernas não sejam capazes de emergir na taverna ou na casa. Quando compramos aquela velharia, uma primeira inspeção nos mostrou uma passagem fechada com uma parede de pedra no subterrâneo, e pudemos investigar. Descobrimos que era uma entrada para as catacumbas intermináveis de Undermountain. Não tivemos tempo de explorá-las até que pudéssemos terminar nossa jornada contra o Culto, mas depois que retornamos já conseguimos desbravar uma área grande ao redor da casa.”
                “Podemos participar das expedições que vocês organizam? Queria realmente testar minhas habilidades!”, animou-se Siana.
                “Costumamos exigir um pouco mais de experiência, criança. Mas acho que com a companhia correta você possa explorar um pouco da região, mantendo-se sempre em segurança. Lembre-se que o lugar é cheio de armadilhas e criaturas. Uma expedição será organizada em breve, quem sabe você possa se juntar a ela, não é mesmo?”
                Siana sentiu seu coração palpitar. Sabia que Phidain se oporia à súbita decisão de se aventurar pelas catacumbas de Undermountain, mas sabia que se ela simplesmente fosse,  ele teria que segui-la e ajudá-la a sair de lá. Seus cabelos claros e compridos cobriam seu rosto, e Phidain não pôde vê-la sorrindo.
                “Amigos, vocês terão de me perdoar. Desmond acaba de me informar que haverá uma reunião emergencial do conselho de Águas Profundas e que devemos comparecer. Por favor, fiquem à vontade. Pedirei que lhes arranjem bons quartos e boa comida. Que vocês sejam muito bem vindos e aproveitem a estadia na Taverna.”
                A feiticeira levantou-se. Os bardos não puderam notar nenhuma comunicação visível entre ela e seu companheiro Desmond, nem notaram nenhuma movimentação diferente. Nyx se encaminhou à passagem central, convocou um dos discos flutuantes e subiu, fitando o lado oposto de onde eles estavam acomodados. Ela não olhou para trás nem se despediu novamente.
                Siana relaxou, deixando suas costas um pouco mais curvadas por alguns segundos antes de levantar-se. Foi até a passagem e observou, mas não conseguiu mais avistar a feiticeira subindo.
                “Ela é incrível, não é, Phidain?”
                “É... uma criatura estranha. Mas consigo ver como ela foi parte importante na luta contra o Culto. Aquela época foi brutal.”
“Hoje eu percebi que gostaria de me lembrar mais desta época. Eu era apenas uma criança.”

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