Nyx estava
cansada. Já havia contado e recontado suas histórias inúmeras vezes por todos
estes dez anos. Desde o final da jornada árdua que dividiu com os outros membros
de Amlugnethar, Nyx tem tratado com os curiosos grande parte das vezes.
Endireitou as costas, acenou para uma das garçonetes e sinalizou por mais
bebidas. Ao observar a passagem central de seu andar, viu, subindo nos discos,
Sonam. Seus olhos tristes desafiaram o sorriso que ele desferiu, esticando suas
mãos num aceno parcial.
Nyx
não soube dizer se Siana não o reconheceu ou não esboçou reação, mas Phidain
obviamente havia ficado muito espantado. A visão do anão monge fora inesperada
e assustadora.
“Sonam
tem cicatrizes muito fundas pela destruição de seu templo e seus iguais. O Culto
do Dragão destruiu toda a região por vingança, depois de termos frustrado
tantas empreitadas e dizimado tamanha parcela de suas forças. Sonam perdeu
todos os que amava e conhecia, todos que o criaram e o fizeram quem ele é.
Morreram sem que Sonam obtivesse resposta da última carta que enviou ao seu
mestre. Todos os dias ele questiona o que o mestre teria respondido se tivesse
tido a chance. Portanto, se Sonam os receber, por favor, respeitem seu pesar. “,
esclareceu Nyx.
“A
perda de quem nos fez é mais funda do que a perda de um reino inteiro. Meu
coração e respeito para Sonam”, disse Phidain. “Certo, podemos continuar? Você,
ham..., desculpe, a senhora estava discorrendo sobre suas primeiras aventuras
com Amlugnethar, e como o grupo incluiu outras pessoas no começo.”
“Sim.
Como já mencionei, o grupo era muito diferente quando começamos a viajar. Veja,
nossa associação foi quase acidental. Greenest, a cidade onde estávamos, foi
atacada pelo culto. Um dragão azul destruiu grande parte da cidade, causando
muitas e muitas perdas. Nossa presença e ação durante o ataque não impediu o
dragão de causar muitos prejuízos e tomar muitas vidas, mas pudemos auxiliar na
contenção dos danos. Nosso valor foi percebido de alguma forma, e fomos
recrutados para o resgate de um Harpista. Invadimos o acampamento do culto onde
este harpista, Leosin, estava sendo mantido refém. O encontramos quase morto,
crucificado no centro do acampamento. Nos movemos livremente por termos
utilizado roupas do culto conseguidas em confrontos anteriores com alguns
cultistas. Libertamos Leosin, curamo-lo de seus ferimentos mais graves até que
ele pudesse andar e o escoltamos para fora do acampamento. Eram centenas de
membros do culto concentrados naquele acampamento, e éramos apenas seis e um
desconhecido ferido. Sentíamos que
deveríamos agir, mas estávamos seriamente em desvantagem. Enquanto discutíamos
as possibilidades, Barrocuda resolveu agir sozinho, como costumam os druidas. Durante
nossa conversa, ele incendiou o acampamento. As barracas, muito inflamáveis, não
ofereceram resistência. Soubemos depois que muitos membros do culto morreram no
incêndio, mas que a vasta maioria havia conseguido fugir e levar consigo todo o
tesouro que haviam conseguido em seus ataques.”
“E
de quanto tesouro estamos falando?”, perguntou Siana.
“Todo
o que encontraram em todos os ataques durante toda a ação do culto. Uma
quantidade impensável de tesouro era necessária para a invocação de Tiamat.”
Ao
som do nome da deusa dragão de cinco cabeças, Phidain esqueceu-se de respirar
por alguns segundos. Siana não
pestanejou. Phidain e Nyx, desta vez, não atribuíram sua impassividade à frieza
ou paz de espírito. Concordaram silenciosamente que Siana era nova demais para
ter vivido tanto a queda de Tiamat quanto a possibilidade de seu retorno.
Dez
anos antes, a iminência do retorno da deusa dragão abalara toda Faerûn. Ataques
conduzidos pelo culto tomaram centenas de milhares de vidas em todas as
regiões, enquanto o culto angariava prisioneiros e tesouro para que fossem
sacrificados no ritual final de invocação de Tiamat.
“Tive
minha casa destruída quando os dragões atacaram Neverwinter. Tive que me mudar
para Águas Profundas pouco depois, pois perdi tudo. Acabei com uma mão na
frente e outra atrás, tão nu quanto uma ninfa, mas um pouco mais bonito, he he
he!”, disse Phidain. Nyx e Siana não esboçaram sorrisos. “Pensem pelo lado bom,
em Neverwinter ninguém gostava de minhas músicas! E no caminho para cá, tive
uma viagem tão difícil que tive que escolher: ou me defenderia usando a pouca
magia que sabia, ou seria comido vivo pelas mais variadas criaturas. Escolhi me
defender, porque eu sempre achei que sou um pouco... indigesto. Resolvi ajudar
o estômago das criaturas”. Desta vez, Nyx sorriu um pouco e as energias pesadas
foram aliviadas levemente.
“Nesta
época, Phidain, nem as caravanas eram seguras. Passamos um tempo em uma. Fomos
contratados como escolta, mas descobrimos todo tipo de atividade suspeita
dentro dela. Foi nesta mesma caravana que conhecemos Imsa, mas nesta época ela
estava... um pouco verde”.
“Imsa
é a guerreira que se casou com o elfo? Em alguns dos relatos ela é mencionada,
mas não costuma receber muitos detalhes”, completou Phidain.
“Infelizmente,
pois Imsa é uma amiga valorosa e parte inestimável de nossa caminhada. Hoje em
dia ela e Galen são muito felizes. Inclusive, Siana, a filha dela se parece
muito com você, mas ainda é uma criança. O nome dela é Nyx...”. Um sorriso
sarcástico tomou o rosto de Nyx, e ela continuou: “...não sei de onde tiraram
este nome... he he he he”
No
início, Nyx, a feiticeira, era conhecida por seu sarcasmo, que ativamente
pontuava suas batalhas e confrontos. Conta-se que quem a viu lutando podia
ouvir risadas inocentes de prazer e seus olhos brilharem quando ela carbonizava
grandes grupos de inimigos com apenas uma bola de fogo. Hoje, vivendo em Águas
Profundas e raramente saindo para se aventurar, tornou-se mais estoica, embora em alguns
momentos ainda manifeste sua personalidade instável e alienígena. Seu espírito
tocado por demônios deixou sua marca e Nyx, infelizmente, muitas vezes levou a
imagem negativa dos tieflings à realidade. Sua fama, contudo, permitiu que os
tieflings pudessem ser considerados um pouco mais confiáveis. Por toda Faerûn,
nos últimos anos, os tieflings têm tido menos problemas para manterem uma vida
honesta e serem considerados dignos de confiança.
Nyx,
no entanto, achava que uma pessoa sagaz não devia confiar nela, nem depois de
tudo o que realizaram. Também achava que nem a pessoa mais sagaz seria capaz de
desconfiar de suas motivações e intenções.
“E
sobre a entrada que vocês encontraram no subterrâneo da taverna?”, iniciou
Phidain. “Já estava aqui quando vocês resolveram construir a taverna?”
“Bem,
acho que vocês sabem, mas esta torre não estava aqui. Foi desenhada e
construída com a ajuda da Arcane Brotherhood depois do final de nossa jornada.
Ao lado deste terreno, há uma bela casa. Antes de ser tão bonita, costumava ser
uma velha sucata de madeira podre, que compramos com nossas economias, quando
resolvemos nos estabelecer em Águas Profundas. Devo admitir, foi por
insistência minha que gastamos nosso tesouro naquela velharia, mas a casa se
provou um abrigo inestimável durante nosso período de luta contra o Culto. Infelizmente,
também foi alvo de diversos ataques violentos, principalmente o final,
perpetrado pelo Culto do Dragão. Neste, a casa foi destruída e posteriormente
reconstruída. A passagem então, que vocês acessam pelo andar inferior desta
torre, na verdade inicia-se no porão da casa. Um túnel da torre até lá foi
construído e encantado, para que criaturas do interior das cavernas não sejam
capazes de emergir na taverna ou na casa. Quando compramos aquela velharia, uma
primeira inspeção nos mostrou uma passagem fechada com uma parede de pedra no
subterrâneo, e pudemos investigar. Descobrimos que era uma entrada para as
catacumbas intermináveis de Undermountain. Não tivemos tempo de explorá-las até
que pudéssemos terminar nossa jornada contra o Culto, mas depois que retornamos
já conseguimos desbravar uma área grande ao redor da casa.”
“Podemos
participar das expedições que vocês organizam? Queria realmente testar minhas
habilidades!”, animou-se Siana.
“Costumamos
exigir um pouco mais de experiência, criança. Mas acho que com a companhia
correta você possa explorar um pouco da região, mantendo-se sempre em
segurança. Lembre-se que o lugar é cheio de armadilhas e criaturas. Uma
expedição será organizada em breve, quem sabe você possa se juntar a ela, não é
mesmo?”
Siana
sentiu seu coração palpitar. Sabia que Phidain se oporia à súbita decisão de se
aventurar pelas catacumbas de Undermountain, mas sabia que se ela simplesmente fosse, ele teria que segui-la e ajudá-la a sair de
lá. Seus cabelos claros e compridos cobriam seu rosto, e Phidain não pôde vê-la
sorrindo.
“Amigos,
vocês terão de me perdoar. Desmond acaba de me informar que haverá uma reunião
emergencial do conselho de Águas Profundas e que devemos comparecer. Por favor,
fiquem à vontade. Pedirei que lhes arranjem bons quartos e boa comida. Que
vocês sejam muito bem vindos e aproveitem a estadia na Taverna.”
A
feiticeira levantou-se. Os bardos não puderam notar nenhuma comunicação visível
entre ela e seu companheiro Desmond, nem notaram nenhuma movimentação
diferente. Nyx se encaminhou à passagem central, convocou um dos discos
flutuantes e subiu, fitando o lado oposto de onde eles estavam acomodados. Ela
não olhou para trás nem se despediu novamente.
Siana
relaxou, deixando suas costas um pouco mais curvadas por alguns segundos antes
de levantar-se. Foi até a passagem e observou, mas não conseguiu mais avistar a
feiticeira subindo.
“Ela
é incrível, não é, Phidain?”
“É...
uma criatura estranha. Mas consigo ver como ela foi parte importante na luta
contra o Culto. Aquela época foi brutal.”
“Hoje eu percebi que gostaria de me lembrar mais desta época. Eu era apenas uma criança.”
“Hoje eu percebi que gostaria de me lembrar mais desta época. Eu era apenas uma criança.”
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