segunda-feira, 2 de novembro de 2015

1 - Dois bardos na taverna

Sentados à mesa, os dois bardos podiam sentir a energia que fluía no ar. Nas paredes, globos de luz mágica iluminavam a taverna, curiosamente construída na forma de uma torre. Apesar de parecer antiga, era uma construção recente, desenhada diretamente para este propósito. Entre os andares não haviam escadas; a locomoção era promovida por discos mágicos translúcidos que atravessavam o piso de cada andar, recortado de forma cilíndrica.
Os andares da torre eram dimensionados para que fossem espaçosos sem serem amplos demais. Ainda transmitiam um clima intimista e aconchegante. Alguns haviam acusado Amlugnehtar de serem exagerados, egocêntricos e pouco modestos na arquitetura do lugar.
Phidain e Siana, os bardos, discordavam. O que Amlugnehtar havia conquistado era imensurável: a permanência de cada uma das vidas em Faerûn até que seu destino as tomasse.
Siana ajeitou-se na cadeira estofada em veludo vermelho. A decoração daquele andar era dedicada à Nyx, a feiticeira do fogo. Ela não a conhecia, mas suas histórias a precediam. Siana sentia em seu peito um aperto, não de todo ruim. Era seu primeiro dia, afinal. Phidain, seu mestre, a acompanhava nesta tentativa de colher histórias. Ele a havia treinado nas artes dos bardos, ensinado músicas, truques e magias simples. Siana sabia que tinha talento para a música, mas a magia a hipnotizava. Esperou a infância toda para na adolescência manifestar os poderes de feiticeira. Infelizmente, eles nunca chegaram.
Em vista do fracasso como condutora natural de magia, tentou juntar-se aos magos numa escola em Águas Profundas, mas estes a rejeitaram; era atrapalhada demais. “Esbaforida” foi a palavra que escolheram para descrevê-la. Suas orelhas pontudas e percepção aguçada permitiram-lhe ouvir a conversa em particular dos velhos em mantos azulados.  “Filha, seu lugar pode ser entre os grandes, mas não entre os magos. Vá e encontre seu lugar”. Siana fugiu da torre, em prantos. O revés afogara seu sonho arcano. Empurrou a pesada porta da torre dos magos. Seus passos apressados castigavam o chão de terra da rua, deixando marcas profundas entremeadas nas lágrimas que insistiam em pingar, molhando a poeira da via. Sem enxergar, correu por alguns metros além da torre quando atropelou o pequeno halfling que caminhava assobiando. 
“Por Oghma! Criatura, você deve olhar para a frente quando decide debandar como uma manada de javalis atrozes em chamas! ”
                “Desculpe-me”, murmurou Siana entre soluços.
                “Pobre criança! O que te aflige? Deixe aqui que o velho Phidain pode acender seu sorriso”. Enfiando a mão subitamente dentro da manga da camisa, o halfling de cabelos acinzentados produziu uma bela flor amarela, cintilante, e entregou-a para Siana.
Seus olhos brilharam, e um meio sorriso encontrou seus lábios.
                “O..Obrigada! É uma linda flor! ”
                “Então, criança, me diga. De onde veio sua dor tão flagrante, quase tão evidente quanto a crista de uma cocatriz! Pelo menos seu pranto sincero pode ser fitado por mais de dois segundos sem me fazer virar um pequeno bloco de pedra! ”
                “Eu...eu... queria tanto fazer magias...”
                “Oh, você então é mais uma que estes velhos rabugentos recusaram, não? Não se preocupe! Não é pessoal, você não pode ter brilho nos olhos, vontade de viver e um senso de humor para ser aceito nesta escola! Veja, eles me rejeitaram também tantos anos atrás e... bem, sou muito mais bonito do que eles, você precisa concordar! E muito mais feliz também. E não pareço como se uma mandrágora estivesse gritando enfiada lá no meu...”
                “Armário! Claro, moço, tenho que concordar. ” – Interrompeu Siana, antes que o halfling pudesse concluir. O sorriso agora contrastava com as lágrimas que ainda molhavam suas bochechas.
                “Há há há, vejo que possui o senso de humor que procuro! Diga-me, moça! Diga seu nome para o velho Phidain, e o velho Phidain lhe fará uma proposta! ”
                “Siana...”
                “Então, Siana, você ainda quer fazer magias? ”
                Os olhos dela então brilharam, não de tristeza, mas de esperança.
                Dois anos haviam se passado desde o primeiro encontro de Phidain e Siana, e ela tinha sido uma boa aluna.  O senso de humor de Phidain ainda a surpreendia, e suas analogias sagazes a ensinaram muito sobre a fauna e os monstros de Faerûn. Ele prometia que ela sairia em batalha um dia, para colocar em prática as artes mágicas que ele a havia ensinado. Siana já havia aprendido alguns truques básicos e até algumas magias um pouco mais eficientes, mas ansiava por aventura.  “Não esqueça de sua natureza, criança. Você não é maga, nem feiticeira, nem bruxa. Você é uma barda, e uma senhora duma barda!”, dizia Phidain. Todos os dias. 
                Phidain ainda a considerava despreparada, de alguma forma. A ânsia por utilizar sua magia em batalha divergia de suas ideias humanitárias. Ele preferia utilizar suas habilidades mágicas para promover o riso, o entretenimento e conseguir ouro. Siana quer matar criaturas.
Este conflito de interesses o fez criar este desafio. Ela deveria então ouvir as histórias de batalha do grupo de aventureiros mais renomado de Faerûn: Amlugnehtar.
                Sentados à mesa, a energia os envolvia, quente.  Nas paredes, tapeçarias faziam alusões à magia piromântica e pirocinética, das quais Nyx era mestra. As lendas diziam que a tiefling era tão poderosa quanto bela, e que havia desintegrado dois dragões com um só golpe.
                “Boa tarde, bons amigos, ouvi falar que me aguardavam!”, a voz melodiosa os surpreendeu. Os olhares deles estavam fixos em um quadro na parede, onde uma bela tiefling conjurava uma bola de fogo brilhante. O quadro era mágico, e a bola de fogo realmente incandescia, eternamente acesa na obra de arte.  Ao procurarem com os olhos de onde a voz havia vindo, encontraram a tiefling do retrato. Obviamente o quadro não lhe fazia jus: era a criatura mais bela que já haviam visto.
                “Senhora Nyx! É muita honra poder conhecê-la em pessoa!” – Phidain curvou-se, tentando em vão tratar a situação com naturalidade. Sua voz tremia, denunciando seu nervosismo. Nyx sorriu entredentes, parecendo divertir-se com o desconforto do bardo. Siana permanecia imóvel, petrificada pela sensação de poder que emanava da feiticeira.
                A tiefling era uma mulher de estatura média, mas seus vistosos chifres adicionavam alguns centímetros à sua altura. Seus cabelos negros e lisos pendiam até o queixo, onde terminavam em um corte perfeitamente reto. Sua pele era pálida, mas brilhava sobrenaturalmente em vermelho. Os lábios contrastavam com a pele alva, vermelhos como o sangue. Suas vestes, um belo e revelador vestido vermelho e preto bordado em ouro. Sua beleza era assustadora, e sua presença era acalentadora e terrível ao mesmo tempo. As histórias de seus feitos eram pontuadas pela loucura e crueldade. Apesar disso, o sorriso que ela lhes oferecia parecia desafiar a aparência e as lendas, e os convidava para uma agradável tarde de chás e conversa.
                “A honra é minha, amigos. Posso me sentar à mesa com vocês?” – disse a feiticeira.
                “Mas é claro!  Quando eu contar para meus amigos que estive à mesa com Nyx, a feiticeira do fogo, eles acharão que uma banshee explodiu meus miolos com um grito e eu fiquei completamente maluco! Mas diga-me, senhora, posso atormentar-lhe com as perguntas de minha aprendiz? Nossa Siana aqui pretende um dia aventurar-se para conseguir seus próprios feitos e fama, e considerei que uma pequena... pesquisa de campo poderia ajudar-lhe a posicionar suas expectativas. “
                “Oh sim! Conversar com sangue novo sempre é divertido. Sabe, eu mesma matei uma banshee uma vez. Ou não, porque ela já estava morta, certo? Como se mata algo que já está morto? Eu sempre me perguntei... mas nunca por muito tempo, já que explodir coisas é muito mais eficiente! ”
                “Há há há há! Vejo que o sucesso e a fama não lhe roubaram o senso de humor, senhora Nyx! É bom saber que a inteligência e a sagacidade podem sobreviver ao sucesso. Tantos exemplos do contrário na elite de Waterdeep...” – arriscou-se Phidain.
                “Acho que somos um pouco mais bem sucedidos que a elite de Waterdeep, senhor Phidain”, respondeu Nyx, com seu sorriso caloroso reduzindo-se lentamente.
                “Claro, claro, me desculpe a indelicadeza!”
                Siana encolheu-se na cadeira e fingiu brincar com um cálice de vinho entalhado em cima da mesa.
                “Comecemos então. O que querem saber?”, acelerou a feiticeira antes que o halfling pudesse fazer mais alguma piada.
                “Podemos começar do começo”, respondeu inesperadamente Siana, que, ao contrário de seu mestre, havia conseguido domar o nervosismo e parecia decidida e interessada. Nyx pareceu perceber e sorriu sinceramente mais uma vez.
                “Bem, o começo é quando conheci Phalos. “
                “He he he, este nome sempre me encanta!” – disse Phidain, recebendo como resposta mais um sorriso amarelado de Nyx. Este o fez engolir a seco, e ajeitar-se na cadeira, desconfortável.
                “O nome dele não era Phalos nesta época. Como sabem, ele é um draconato. Phalos é uma criatura complicada. E eu morava em uma casa de diversão, se é que me entendem. Um prostíbulo. Não há necessidade para espanto, não nego meu passado. Eu me diverti muito nesta época, se querem saber.”
                “Não ficaremos com falsos moralismos, Nyx. Todos nós gostamos de diversão. “ Mais uma vez, a seriedade de Siana surpreendeu a todos; Phidain tentava controlar o pânico, e Nyx apreciou a coragem da moça em chamar-lhe pelo nome diretamente.
                “Não há lugar para puritanismo nesta conversa. Pois bem, Phalos, ainda Groot naquela época, costumava frequentar o lugar. Nossas ligações com os dragões vermelhos nos uniram mais do que fisicamente, e nos tornamos amigos. O poder físico de Groot complementava minhas habilidades mágicas, e formávamos uma dupla forte. Quando houve a necessidade de defender nossos iguais, percebemos que nossas habilidades poderiam ser muito bem utilizadas em batalhas. Foi nesta época que conhecemos Sonam”.
                “O monge? Mas como um monge juntou-se a uma dupla tão... peculiar?”, indagou Phidain.
                “O monge havia se desgarrado de seu mestre e seu templo, em busca de conhecimento e esclarecimento. Conflitos com a fé e com a paz interior de Sonam o trouxeram até nós. E suas habilidades se provaram indispensáveis dali para a frente. Um amigo de infância também veio à nós, um druida chamado Barrocuda se juntou a nós, mas depois de matarmos nosso primeiro dragão, infelizmente ele se foi.”
                “Não sabia sobre ele! Ele morreu ao matar o dragão?”. Phidain parecia interessado.

                “Não, ele decidiu seguir seu próprio caminho. Mas o golpe final no dragão foi desferido por ele, e por isso, Amlugnehtar o esquecerá jamais.”, respondeu Nyx. Seus olhos se abaixaram e ela pareceu apreciar a nostalgia inesperada. “ No início de nossas aventuras ainda tivemos com a ajuda de Mydräni, a Clériga da guerra e Tremere, o paladino da justiça. Mas também, estes se foram há muito tempo. Rumores dizem que saíram do mundo da aventura para se casarem. Infelizmente, não os vimos mais desde que se desligaram de nosso grupo.”

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