segunda-feira, 16 de novembro de 2015

16 – Garras azuis

                O grupo seguia apreensivo, ultrapassando algumas salas de arquitetura semelhante. Os ambientes de estudo eram no geral bem ricos em material e aconchegantes.
                Siana e Navere precisavam parar para descansar em quase todas as salas. Eles estavam tão leves que Randal carregou Siana no colo por bastante tempo, enquanto que Navere era amparado por Askáth e Thaal.
                Parados em um lugar que parecia ser uma sala de jantar, com uma longa mesa e cadeiras decoradas, eles se sentaram mais uma vez.
                “Pa...para.... on...”. Siana tentou começar a falar, mas as forças lhe faltaram mais uma vez.
                “Você quer saber para onde estamos indo, Siana?”, perguntou Thaal. “Estamos tentando sair daqui, o mais rápido possível.” Ele estava muito preocupado com o estado físico dos dois últimos resgatados, e suas habilidades de cura estavam muito aquém do que eles necessitavam. “O plano é apenas escapar.”
                Randal, Askáth e Thaal se entreolharam. Refletidos nos olhos um do outro, puderam ver o medo que apenas crescia a cada minuto que passavam ali parados. A sensação de serem observados era constante e a ausência de pessoas ou criaturas naquele lugar era ainda mais inquietante.
                Siana deitara a cabeça sobre os braços e parecia respirar calmamente. Navere estava atento, mas não respondia adequadamente, às vezes ficando em silêncio quando deveria falar, ou demonstrando confusão mental ao proferir sentenças desconexas.
                Enquanto conversavam em voz muito baixa sobre para onde iriam quando encontrassem a saída, ouviram o primeiro som diferente desde a morte do último guarda. Sentiram seus corpos paralisarem de medo. Um estalar quitinoso, não ritmado e muito rápido parecia vir de trás da porta de onde saíram. Eles a haviam trancado com uma das chaves recuperadas das vestes do illithid. Um som seco e repetido foi produzido quando algo grande bateu fortemente na madeira. Por baixo da porta, uma substância mucosa de cor azulada começava a escorrer, primeiro discretamente e depois em abundância, avançando cada vez que as batidas na porta ficavam mais intensas.
                Siana levantou a cabeça após as primeiras batidas, mas não conseguiu se levantar com rapidez. Randal tomou-a novamente ao colo, enquanto que Thaal levou Navere aos ombros. Não havia como hesitar nem mais um momento, e Askáth já havia disparado em direção à próxima porta, abrindo-a de sopetão.
                Assim que todos estavam ultrapassando o arco da outra saída, a porta se abriu com um estrondo, revelando uma criatura aberrante que estalava furiosamente as garras. Com enormes tentáculos saindo da boca, parecia um cruzamento profano entre uma lagosta gigante e um polvo. Os tentáculos tremulavam como os dos illithids, mas o corpo era coberto por um exoesqueleto azul arroxeado. Gigantescas garras em formato de pinças nas patas da frente e o que pareciam ser cascos  equinos nas patas de trás davam à aberração uma imagem de pesadelo. Os olhos extremamente ferozes transmitiam loucura e possessão. Recobrindo a criatura, um limo mucoso azulado pingava abundantemente, cobrindo o chão por onde a criatura passava.

                É um uchuulon.

                Todos eles ouviram a voz. A confusão e o medo não os permitiram perceber que a voz vinha de dentro de suas cabeças, não de um de seus companheiros.

                Enviei para vocês. Espero que gostem da surpresa.

                Enquanto corriam, tentavam não pensar na criatura brutal que os perseguia, tão perto que de vez em quando sentiam as garras se fechando e estalando muito perto de suas cabeças.

                Podem parar de correr agora.

                Navere e Siana já estavam muito alertas, apesar do estado físico. Além de estarem tentando fugir da criatura, a voz que ouviam era tão conhecida.
                Mestre.
                Mestre estava entre nós.
                Mestre havia enviado essa criatura por nós.
                O uchuulon os perseguia de perto, deixando um brilhante rastro de muco azul por todo o caminho. Eles pareciam correr sem rumo, mas, ouviram Navere com muita certeza afirmar:
                “Aqui.”

                Aqui.

                A voz do meio elfo enfraquecido fora envolvida em certeza sobrenatural, que veio diretamente das mentes de todos ali. Naquela sala, havia uma escada de pedra. Subiram-na correndo. No pé da escada, o uchuulon os alcançou. Randal, com Siana nos braços, havia ficado por último, ainda no início da subida.
                Com uma das garras gigantescas, agarrou Randal pela roupa e o girou. Com a outra, agarrou Siana pelo pescoço e a retirou do colo de Randal, com surpreendente delicadeza. A outra garra atirou Randal de encontro aos degraus de pedra da escada.
                Siana não conseguiu reagir. Pendeu inerte, nua,  presa pelo pescoço na iminência da morte. Ela fechou os olhos.

                Tão linda.

                O uchuulon levou o rosto de Siana para perto de seus olhos monstruosos. O muco tinha um cheiro acre e infectado, mas Siana permanecia impassível. Com a garra livre, acariciou a bochecha de Siana, com leveza incongruente ao seu tamanho e aparência. O rosto da barda ficou sujo de muco. Seus olhos não esboçaram reação.

                Não seria uma pena se... ela tivesse que ficar?

                A garra do uchuulon se abriu, deixando Siana cair pesadamente no chão. Randal imediatamente se abaixou, tomou-a no colo. A secreção da aberração cobria boa parte do corpo da meia elfa, deixando-a escorregadia. Mesmo assim, Randal a segurou firmemente. Parado diante da criatura, fitou os olhos demoníacos.

                Todos sabem que você tem medo, Randal. Não tente nem começar a falar.

                Sentindo o fôlego reservado para dizer que não o temia escapar de sua garganta em silêncio, o mercenário relaxou o pescoço e olhou para baixo.

                É só subir a escada. Podem ir, crianças. Vocês estão livres.

                O uchuulon permaneceu parado, imóvel, ao pé da escada. O único movimento perceptível em seu corpo era o muco fluindo e acumulando-se no chão sob suas patas.
                Randal com Siana, Thaal com Navere e Askáth terminaram de subir a escada de pedra, sempre olhando para a criatura que os observava antes da subida.
                A escada terminava em um alçapão, que abriu sem dificuldades. Empurraram a tampa de madeira e perceberam que sobre a entrada, alguém havia posicionado um tapete. A casa pequena onde saíram era feita de madeira. As janelas estavam fechadas, mas não havia nem resquício de sons de cidade do lado de fora.
O ambiente tinha uma pequena cama desarrumada, uma lareira com teias de aranha, um balcão de pedra com um fogão à lenha e uma mesa com apenas uma cadeira. Nesta cadeira, observando-os diretamente, estava um halfling.
Navere abriu os olhos e observou o rosto de Phidain. Siana ainda parecia catatônica, mas seus olhos estavam direcionados ao rosto do mestre bardo. Thaal pousou Navere no chão, com agilidade mas de forma delicada.
“Quem é você?”, perguntou Askáth, sacando a adaga rapidamente e apontando-a para o halfling. “Diga! O que quer de nós?”. Umbra estava muito nervoso; fora pego absolutamente desprevenido pela presença inesperada do halfling.
“Phidain...”, murmurou Navere.
“Quem?”, disse Askáth, relaxando um pouco o braço, mas ainda mantendo a adaga empunhada na direção do estranho.
“Este... é nosso mestre. Phidain.”, disse Siana. Seu rosto parecia um pouco mais responsivo e alerta. Ela levantou a cabeça, enquanto Randal a depositava na cama com lençois velhos e colchão de palha.  
Askáth abaixou o braço e embainhou a adaga.
“Acho que vocês tem muita coisa para nos contar”, disse Thaal, parecendo apreensivo. “Mas antes, muito mais do que conversar, eu gostaria de ir para o mais longe possível deste lugar profano e blasfemo.” . Seu olhar demonstrava a consternação de quem esteve na presença de impronunciável abominação. 
“Tenho que concordar. E sim, meu nome é Phidain. Eu vou tirar vocês daqui. Depois, vamos conversar.” , disse ele, levantando-se num pulo certeiro. As pernas curtas de halfling não permitiam que ele as repousasse no chão quando sentado numa cadeira moldada para humanos.
Os cinco seguiram Phidain por mais ou menos três quilômetros por um bosque, depois entraram em uma casa que ficava pouco antes da muralha da cidade. Naquela região, outras casas já estavam construídas, demonstrando o constante crescimento da cidade além das bordas. Naquela construção específica, não havia nada além da porta de entrada, com a exceção de um outro alçapão. Phidain se agachou e o puxou pela corda que servia de maçaneta, deixando-o aberto de lado.
“Venham. O último fecha a porta de entrada e depois a do alçapão.”
Outra escada de pedra se estendia além da entrada do alçapão, e o medo de prosseguirem estava em todos eles. Ainda assim, perceberam que não havia escolha. Ainda carregados, Navere e Siana reafirmaram silenciosamente balançando a cabeça que seria seguro seguir.
A escada terminava em um corredor escuro. Phidain retirou uma tocha de um suporte na parede direita e a acendeu com um isqueiro de pedra que carregava. Pôs-se a andar. O corredor seguiu reto por cerca de cem metros, onde terminou em outra escada, esta de madeira. Subiram, ouvindo os degraus rangerem. Ao abrirem o alçapão no final, cheiro de peixe invadiu as narinas de todos.
“Tarde!”, disse um marinheiro.
“Taaarde!”, falou outro trabalhador da doca.
“Tarde!”, respondeu Phidain.
O corredor havia emergido em um armazém nas docas de Águas Profundas, lugar muito conhecido de todos. Grandes caixas continham peixes frescos. No chão, uma quantidade grande de água com sangue e tripas de peixes tornava o cheiro do ambiente quase insuportável.
Ainda, saberem que por hora estavam perto de pessoas normais e fora da prisão física e mental onde haviam ficado lhes deu alívio quase tangível. Sorveram o aroma da podridão de frutos do mar com prazer.

Com as respirações e passos mais calmos, seguiram Phidain pelas docas, até a casa do halfling bardo.

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