Siana
tentava se concentrar o mais profundamente possível. Ainda assim, conseguira
pouco mais do que o borrifo de ácido que já sabia. Segurava em sua mão esquerda
um pequeno pedaço de pergaminho, enquanto que com a direita tentava produzir
fogo. Era seu primeiro dia, mas ela já se mostrava relativamente bem
ambientada. Usava os robes roxos da escola, e mantinha os cabelos ondulados
longos presos em um coque frouxo no alto da cabeça. Algumas mechas caíam em
seus olhos, dando-a uma aparência displicente, mas charmosa. O mago a havia
deixado por algumas horas nesta sala, estudando alguns pergaminhos e livros
básicos sobre a magia arcana.
Siana não compreendia a razão de
ter sido deixada sozinha logo em seu primeiro dia de treinamento, mas pretendia
mostrar a Garek que era uma aluna excelente. Além de ler os livros que ele
recomendara, estava decidida a demonstrar um truque básico que aprendera
durante o estudo. De sua
testa, uma gota de suor descera lentamente.
“Siana”,
disse Garek, entrando no ambiente sem ser percebido pela jovem aprendiz. “Você
não pode pensar tanto. A magia vem sim da concentração, mas não é daqui...”,
ele apontou para o cérebro. “É... como se fosse uma expiração. Veja, tente.
Respire fundo agora.”
Ela inspirou, sentindo o ar
parado da sala antiga de estudo penetrando profundamente em seus pulmões.
“Segure... isso. Agora tente
soltar, mantendo a expiração por alguns segundos.”
Siana o fez, ainda confusa com o
ponto que Garek tentava provar.
“Viu? Você inspirou e soltou
quando quis. É esse o nível de concentração que precisa manter. Não mais, não
menos do que isso. Se você usar demais o seu cérebro, não compreenderá as
situações externas que lhe fizeram recorrer à magia em primeiro lugar.”
Siana não
conseguiu responder, mas demonstrou compreensão com um acenar leve de cabeça.
Ainda não havia retomado a respiração ao modo automático. Pensando quando
deveria inspirar e respirar, percebeu que mesmo se concentrando naquilo
conseguia ouvir e ponderar sobre a lição que Garek lhe passava.
“Acho que
você entendeu um pouco, certo? Imagine comigo: você está caminhando pela
floresta, colhendo belos morangos silvestres, suculentos, os primeiros do
outono. Então, enquanto voltava para a escola, você é surpreendida por alguns
goblins, que lhe insultam do jeito grosseiro dos goblins e lhe atacam. Não lhe
resta nenhuma alternativa além de revidar. Pense, eles agem tão rápido que sua
reação é revidar com um tiro ígneo bem na direção deles, ao mesmo tempo que um
deles lhe atira uma flecha e outro tenta te acertar com uma espada. Olhe só, se
você estiver pensando com tamanho afinco, você pode até fazer a magia, mas será
atingida pela flecha e pela espada. E o pior, ainda vai derrubar a sua cesta
cheia dos mais belos morangos!”
Siana abriu
um sorriso.
“Se você
for capaz de conjurar feitiços utilizando apenas a mesma concentração que usa para
expirar quando quiser, você fica muito menos vulnerável e com muito mais
morangos! Você só terá a ganhar! Agora, imagine outra coisa. Você está com os
mesmos goblins, e conseguiu desviar dos dois ataques porque decidiu levitar. Apesar
de você estar ilesa, pelas suas costas um goblin que havia se escondido numa
moita para fazer coisas que goblins fazem em moitas resolveu atacar você e lhe
atirou uma adaga nas costas. Trágico! Pense, se a sua concentração estiver na
sua cabeça, você se distrairá imediatamente e cairá ao chão como um belo saco
de batatas que estava levitando. Se você apenas expirar, apenas... soltar o
conhecimento como se assoprasse um dente de leão, você pode ser atingida por
quantas adagas quiser que você se manterá levitando. Com morangos.”
“Talvez...
eu não devesse ser atingida por muitas adagas. Se eu morrer, não comerei os
morangos.”, disse Siana, sorrindo largamente.
Garek soltou
uma gargalhada alta. “Gostei de você, menina, você é sagaz! Agora veja, veja
como você vai conseguir incendiar esse pobre pedaço de pergaminho!”
Siana
retomou a posição de segurar o pergaminho. Em menos de um segundo, Siana liberou
da palma de sua mão um pequeno raio ígneo que atingiu o pergaminho em cheio. Ela
o soltou. Antes de atingir o chão a fibra do pergaminho já tinha se desfeito em
pequenas fagulhas e cinzas.
“Viu! É isso
mesmo, menina! Vejo em você um excelente potencial! Conseguiu obliterar um ameaçador
pergaminho em apenas algumas horas de estudo, há há há
há!”, ele disse, parecendo legitimamente impressionado, apesar da piada sarcástica.
“Vamos, você precisa de uma pausa e alguns morangos.”
Sentados
numa mesa grande de madeira simples. Garek, Siana e o mago que a recebera dividiram
uma bela cesta de frutas frescas, pão, vinho e um vistoso bolo de maçã. “Siana,
o Douglas aqui faz ótimos bolos com as frutas que os magos derrubam quando são
atingidos por goblins ao colhê-las na floresta! Experimente este aqui.”
Siana
concordou sinceramente que Douglas realmente havia assado um dos melhores bolos
que ela já tinha experimentado. Depois de meia hora de conversas banais e
leves, Garek a convidou para voltar a estudar. Ela já se sentia um pouco mais segura.
Durante a conversa, contemplara os ensinamentos que recebera e se sentia pronta
para treinar mais um pouco.
Durante a
tarde, aprendeu como direcionar melhor seus projéteis mágicos, como produzir uma
mão espectral que conseguia mover objetos à distância (“Ótima para carregar
cestas de morangos!”, segundo Garek) e como encantar objetos para que
produzissem luz por algum tempo. Siana, ao contrário do previsto pelos magos da
torre que havia procurado em Águas Profundas, se mostrou uma ótima e promissora
aprendiz.
No final da tarde, recebeu
congratulações sinceras de Garek. Quando chegara na tarde do dia anterior, recebera
um minúsculo quarto para si, com uma cama simples, um pequeno baú para seus
pertences e um criado mudo. Ele levou-a até lá. Quando se retirou, garantiu que
assim que o sol se mostrasse ele a ensinaria a produzir mísseis mágicos que
jamais errariam o alvo.
Ao fechar a porta, Siana
sentou-se na cama, afrouxando o nó que amarrava o robe. Não trancou o baú nem
se preocupou em amarrar a chave no pescoço. Não tinha nenhum pertence
importante. A roupa que estava usando quando chegara à torre estava dobrada cuidadosamente
dentro do baú. Além dela, havia apenas uma pequena bolsa com um cantil e
algumas adagas simples que pegara na casa de Askáth antes de explorarem o
templo.
Siana deitou-se, observando o
teto de pedra. A torre antiga era uma construção sólida. Não ouvia quase som
algum de dentro da própria torre. A pequena janela circular que tinha no quarto
estava fechada, bloqueando também a maior parte dos sons externos.
Permaneceu
com os olhos abertos por muito tempo, alcançando sentimentos que estavam
guardados, ponderando sobre suas escolhas e a grande reviravolta que sua vida
sofrera no dia anterior e neste. Na segunda noite deitada naquele colchão, suas
costas e membros ainda tentavam se acostumar. Tentou calcular há quanto tempo não
via seus pais. Garek a havia informado que ainda estavam no mesmo mês de quando
fora levada pelo illithid, Eleasis, então não poderiam ter decorrido mais de duas
semanas.
Desde o
sequestro pelo illithid, Siana perdera a noção de tempo. Sentia muita saudade
de seus pais e estava muito preocupada com a saúde e segurança deles. Sabia que
provavelmente estava sendo procurada à exaustão. Pensou nos companheiros, que
mesmo em tão pouco tempo, haviam se mostrado de extrema confiança. Com Navere,
Siana compartilhara perigos, conhecimento, história. A Randal, considerava como
um segundo pai. Askáth era um exemplo de praticidade e desenvoltura, com muitos
truques para ensinar. Thaal era a pessoa mais correta que Siana já tinha
conhecido.
Siana não
conseguiu segurar as lágrimas que pressionavam os cantos de seus olhos. Depois
da primeira e da segunda, outras dezenas escorreram abundantemente, tornando
ainda mais palpável a solidão, o desespero e o medo que ela sentia. Prometeu
que completaria seu treinamento o mais rápido possível e se juntaria novamente
ao seu recém formado grupo de amigos, e que com eles buscaria Phidain e
ajudaria Desmond a resgatar os Amlugnehtar.
Percebeu
que o pesar pela distância da família e insegurança que eles provavelmente estavam
sentindo era a base de seu desespero. Levantou a cabeça, limpou as lágrimas e
saiu de seu quarto. Mesmo durante a noite, conseguiu se locomover com
facilidade na torre escura por causa de seus olhos élficos. Entrou na sala de
estudo onde tinha incendiado o pergaminho e achou um pedaço parecido. Com as mãos
lhe faltando firmeza, escreveu:
Estou inteira e bem.
Voltarei. Por favor, não me procurem. Muita saudade.
S.
Sem saber como enviar o recado à
sua família em Águas Profundas, Siana guardou o pergaminho de volta nos robes
que pendiam sobre seus ombros por causa do nó afrouxado. Decidiu que pediria a
Garek para enviá-lo assim que o sol raiasse.
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