sexta-feira, 27 de novembro de 2015

27 – Alguns Projéteis Mágicos

            Siana tentava se concentrar o mais profundamente possível. Ainda assim, conseguira pouco mais do que o borrifo de ácido que já sabia. Segurava em sua mão esquerda um pequeno pedaço de pergaminho, enquanto que com a direita tentava produzir fogo. Era seu primeiro dia, mas ela já se mostrava relativamente bem ambientada. Usava os robes roxos da escola, e mantinha os cabelos ondulados longos presos em um coque frouxo no alto da cabeça. Algumas mechas caíam em seus olhos, dando-a uma aparência displicente, mas charmosa. O mago a havia deixado por algumas horas nesta sala, estudando alguns pergaminhos e livros básicos sobre a magia arcana.
Siana não compreendia a razão de ter sido deixada sozinha logo em seu primeiro dia de treinamento, mas pretendia mostrar a Garek que era uma aluna excelente. Além de ler os livros que ele recomendara, estava decidida a demonstrar um truque básico que aprendera durante o estudo.             De sua testa, uma gota de suor descera lentamente.
            “Siana”, disse Garek, entrando no ambiente sem ser percebido pela jovem aprendiz. “Você não pode pensar tanto. A magia vem sim da concentração, mas não é daqui...”, ele apontou para o cérebro. “É... como se fosse uma expiração. Veja, tente. Respire fundo agora.”
Ela inspirou, sentindo o ar parado da sala antiga de estudo penetrando profundamente em seus pulmões.
“Segure... isso. Agora tente soltar, mantendo a expiração por alguns segundos.”
Siana o fez, ainda confusa com o ponto que Garek tentava provar.
“Viu? Você inspirou e soltou quando quis. É esse o nível de concentração que precisa manter. Não mais, não menos do que isso. Se você usar demais o seu cérebro, não compreenderá as situações externas que lhe fizeram recorrer à magia em primeiro lugar.”
            Siana não conseguiu responder, mas demonstrou compreensão com um acenar leve de cabeça. Ainda não havia retomado a respiração ao modo automático. Pensando quando deveria inspirar e respirar, percebeu que mesmo se concentrando naquilo conseguia ouvir e ponderar sobre a lição que Garek lhe passava.
            “Acho que você entendeu um pouco, certo? Imagine comigo: você está caminhando pela floresta, colhendo belos morangos silvestres, suculentos, os primeiros do outono. Então, enquanto voltava para a escola, você é surpreendida por alguns goblins, que lhe insultam do jeito grosseiro dos goblins e lhe atacam. Não lhe resta nenhuma alternativa além de revidar. Pense, eles agem tão rápido que sua reação é revidar com um tiro ígneo bem na direção deles, ao mesmo tempo que um deles lhe atira uma flecha e outro tenta te acertar com uma espada. Olhe só, se você estiver pensando com tamanho afinco, você pode até fazer a magia, mas será atingida pela flecha e pela espada. E o pior, ainda vai derrubar a sua cesta cheia dos mais belos morangos!”
            Siana abriu um sorriso.
            “Se você for capaz de conjurar feitiços utilizando apenas a mesma concentração que usa para expirar quando quiser, você fica muito menos vulnerável e com muito mais morangos! Você só terá a ganhar! Agora, imagine outra coisa. Você está com os mesmos goblins, e conseguiu desviar dos dois ataques porque decidiu levitar. Apesar de você estar ilesa, pelas suas costas um goblin que havia se escondido numa moita para fazer coisas que goblins fazem em moitas resolveu atacar você e lhe atirou uma adaga nas costas. Trágico! Pense, se a sua concentração estiver na sua cabeça, você se distrairá imediatamente e cairá ao chão como um belo saco de batatas que estava levitando. Se você apenas expirar, apenas... soltar o conhecimento como se assoprasse um dente de leão, você pode ser atingida por quantas adagas quiser que você se manterá levitando. Com morangos.”
            “Talvez... eu não devesse ser atingida por muitas adagas. Se eu morrer, não comerei os morangos.”, disse Siana, sorrindo largamente.
            Garek soltou uma gargalhada alta. “Gostei de você, menina, você é sagaz! Agora veja, veja como você vai conseguir incendiar esse pobre pedaço de pergaminho!”
            Siana retomou a posição de segurar o pergaminho. Em menos de um segundo, Siana liberou da palma de sua mão um pequeno raio ígneo que atingiu o pergaminho em cheio. Ela o soltou. Antes de atingir o chão a fibra do pergaminho já tinha se desfeito em pequenas fagulhas e cinzas.
            “Viu! É isso mesmo, menina! Vejo em você um excelente potencial! Conseguiu obliterar um ameaçador pergaminho em apenas algumas horas de estudo,   há há há há!”, ele disse, parecendo legitimamente impressionado, apesar da piada sarcástica. “Vamos, você precisa de uma pausa e alguns morangos.”
            Sentados numa mesa grande de madeira simples. Garek, Siana e o mago que a recebera dividiram uma bela cesta de frutas frescas, pão, vinho e um vistoso bolo de maçã. “Siana, o Douglas aqui faz ótimos bolos com as frutas que os magos derrubam quando são atingidos por goblins ao colhê-las na floresta! Experimente este aqui.”
            Siana concordou sinceramente que Douglas realmente havia assado um dos melhores bolos que ela já tinha experimentado. Depois de meia hora de conversas banais e leves, Garek a convidou para voltar a estudar. Ela já se sentia um pouco mais segura. Durante a conversa, contemplara os ensinamentos que recebera e se sentia pronta para treinar mais um pouco.
            Durante a tarde, aprendeu como direcionar melhor seus projéteis mágicos, como produzir uma mão espectral que conseguia mover objetos à distância (“Ótima para carregar cestas de morangos!”, segundo Garek) e como encantar objetos para que produzissem luz por algum tempo. Siana, ao contrário do previsto pelos magos da torre que havia procurado em Águas Profundas, se mostrou uma ótima e promissora aprendiz.
No final da tarde, recebeu congratulações sinceras de Garek. Quando chegara na tarde do dia anterior, recebera um minúsculo quarto para si, com uma cama simples, um pequeno baú para seus pertences e um criado mudo. Ele levou-a até lá. Quando se retirou, garantiu que assim que o sol se mostrasse ele a ensinaria a produzir mísseis mágicos que jamais errariam o alvo.
Ao fechar a porta, Siana sentou-se na cama, afrouxando o nó que amarrava o robe. Não trancou o baú nem se preocupou em amarrar a chave no pescoço. Não tinha nenhum pertence importante. A roupa que estava usando quando chegara à torre estava dobrada cuidadosamente dentro do baú. Além dela, havia apenas uma pequena bolsa com um cantil e algumas adagas simples que pegara na casa de Askáth antes de explorarem o templo.
Siana deitou-se, observando o teto de pedra. A torre antiga era uma construção sólida. Não ouvia quase som algum de dentro da própria torre. A pequena janela circular que tinha no quarto estava fechada, bloqueando também a maior parte dos sons externos.
            Permaneceu com os olhos abertos por muito tempo, alcançando sentimentos que estavam guardados, ponderando sobre suas escolhas e a grande reviravolta que sua vida sofrera no dia anterior e neste. Na segunda noite deitada naquele colchão, suas costas e membros ainda tentavam se acostumar. Tentou calcular há quanto tempo não via seus pais. Garek a havia informado que ainda estavam no mesmo mês de quando fora levada pelo illithid, Eleasis, então não poderiam ter decorrido mais de duas semanas.
            Desde o sequestro pelo illithid, Siana perdera a noção de tempo. Sentia muita saudade de seus pais e estava muito preocupada com a saúde e segurança deles. Sabia que provavelmente estava sendo procurada à exaustão. Pensou nos companheiros, que mesmo em tão pouco tempo, haviam se mostrado de extrema confiança. Com Navere, Siana compartilhara perigos, conhecimento, história. A Randal, considerava como um segundo pai. Askáth era um exemplo de praticidade e desenvoltura, com muitos truques para ensinar. Thaal era a pessoa mais correta que Siana já tinha conhecido.
            Siana não conseguiu segurar as lágrimas que pressionavam os cantos de seus olhos. Depois da primeira e da segunda, outras dezenas escorreram abundantemente, tornando ainda mais palpável a solidão, o desespero e o medo que ela sentia. Prometeu que completaria seu treinamento o mais rápido possível e se juntaria novamente ao seu recém formado grupo de amigos, e que com eles buscaria Phidain e ajudaria Desmond a resgatar os Amlugnehtar.
            Percebeu que o pesar pela distância da família e insegurança que eles provavelmente estavam sentindo era a base de seu desespero. Levantou a cabeça, limpou as lágrimas e saiu de seu quarto. Mesmo durante a noite, conseguiu se locomover com facilidade na torre escura por causa de seus olhos élficos. Entrou na sala de estudo onde tinha incendiado o pergaminho e achou um pedaço parecido. Com as mãos lhe faltando firmeza, escreveu:

Estou inteira e bem. Voltarei. Por favor, não me procurem. Muita saudade.
S.


            Sem saber como enviar o recado à sua família em Águas Profundas, Siana guardou o pergaminho de volta nos robes que pendiam sobre seus ombros por causa do nó afrouxado. Decidiu que pediria a Garek para enviá-lo assim que o sol raiasse.

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