domingo, 8 de novembro de 2015

8 – A Missão de Randal Evenwood

Randal Evenwood sentou-se numa das cadeiras de um dos andares da taverna. Esticou suas pernas sobre outra delas, vazia. Tanto quanto ficar mais confortável, esperava que seus pés sujos de lama intimidassem alguém que resolvesse sentar-se ao seu lado.
O andar onde estava era dedicado a Desmond, o ladino. Na época que os Amlugnehtar brilharam, Randal ainda tinha outra vida. Conseguira salvar sua família e seu vilarejo dos ataques do culto, quando ainda tinha uma patente alta na guarda militar da cidade. Teve a chance de intervir em um ataque iminente, depois de conseguir informações provindas do serviço de inteligência da cidade. Mesmo que o departamento fosse de um homem só, o ladino responsável produziu informações vitais e a companhia do Culto que pretendia emboscar Hlath foi interceptada a quilômetros do destino.             
Por isso, Evenwood tinha grande admiração pela ladinagem. Apesar de famoso de nome, Desmond, o ladino, mantinha sua imagem em relativa discrição. Utilizava-se de disfarces e personalidades alternativas para se locomover entre as cidades e interagir, já que a verdadeira identidade de um ladino, se conhecida, pode colocar em risco suas atividades.
Desmond e Evenwood já haviam trabalhado juntos. Em algumas ocasiões, Randal o contatara em Luskan para obter informações e passagem livre para resolver missões e problemas. Desde que saíra de Hlath, Evenwood não mais se envolvera com o militarismo, e manteve-se apenas como mercenário.
Nas paredes daquela sala não havia muita decoração. Ao contrário dos andares dedicados à Nyx e Phalos, o andar de Desmond tinha uma pequena exposição de armas, principalmente bestas, arcos, adagas e uma rapieira. Alguns quadros discretos mostravam uma seleção de feitos do ladino, como executar inimigos de grande poder com apenas ataques furtivos. Os quadros eram escusos em relação à sua aparência, tando exibindo informações conflitantes ou simplesmente o caracterizando como uma figura misteriosa sob um manto negro.
Este manto parecia muito diferente dos mantos normais, e deixaria dúvidas quanto à sua representação artística se não estivesse pendurado, exposto sob uma redoma de vidro em um dos cantos da sala. Era um manto perfeitamente negro, de aparência semelhante a couro. Na gola, duas protuberâncias bem demarcadas completavam a imagem, que parecia claramente inspirada na anatomia de uma raia manta.
Randal bebeu mais um grande gole da cerveja que haviam servido. Sobre o armário atrás do balcão, uma pequena plataforma dourada expunha uma bela caneca decorada. A cerveja em sua própria caneca era fresca, de sabor forte e pungente.
“Você sabe que caneca é aquela, não sabe, Rrrrrandal?”, disse Desmond, estendendo o “r” como costumava fazer, por brincadeira. Em sua voz, o sorriso podia ser ouvido, antes mesmo de ser visto por Evenwood.
“Desmond! Sabia que ia te achar aqui. Você fala que fica em Luskan mas não vai embora de Águas Profundas.”
“Nyx me leva e traz, ela nos teleporta em segundos... e assim posso passar um tempo com ela, se é que me entende, he he he he”
“Ah, entendo sim! Não a conheço, mas pelos desenhos, uuuuf! Ela parece... quente, HÁ HÁ HÁ HÁ!”
“Quente é a palavra exata, Randal, hahaha. Mas me diga, você sabe que caneca é aquela?”
“É aquela mesma que você roubou daquela taverna, que você me contou daquela outra vez?”
“Ela mesma! Acabei ficando para trás do resto do pessoal e eles foram para o castelo voador encontrar os Gigantes. Phalos acabou ficando para trás comigo e fomos voando de Wyvern atrás da galera depois. Quase que aquelas monstras derrubam a gente, mas cara! Valeu a pena!”
Desmond ainda não tinha sentado, e foi até o balcão. Pediu ao taverneiro que lhe desse a caneca. Ele se esticou depois de subir em um pequeno banco de madeira, resgatou a caneca do topo da plataforma dourada e entregou-a a Desmond.
“Vamos, Randal, experimente. Você sabe que quer.”
Evenwood bebericou a cerveja. Gelada e saborosa. “Agora entendo por que você vive bêbado, Desmond! Há há há há!”
“Ora, vamos, isso não é verdade... sempre... há há há há. E então, velho amigo... o que lhe traz aqui? Você está bem longe de casa.”
“Desmond, estou longe de casa desde que ela foi destruída em Hlath. Não há como ficar próximo de algo que não existe.”
O ladino pareceu reduzir o sorriso e sua testa demonstrou um pouco menos de leveza.
“Não se preocupe com isso, Desmond. Você sabe que foi há muito tempo”, reassegurou Randal. “Minha menina faria 16 esse ano. Enfim, o que me trouxe aqui foram rumores de que um novo problema pode estar acontecendo em Neverwinter, e eu gostaria de saber se você sabe de alguma coisa sobre isso.”
“Ouvi falar de algo. Talvez... talvez eu saiba de uma ou duas coisas.”
“E essas uma ou duas coisas envolvem quem possa querer minha ajuda por lá? Estou precisando de dinheiro.”
“Randal, você sabe que eu posso ajudar você, né?”, ofereceu Desmond.         
                “Preciso de sustento, não caridade, amigo. Você não me ofende com a proposta, mas nunca mais fale nada remotamente parecido.”
                “He he he, está certo!”, disse Desmond. “Talvez eu tenha um trabalho ou dois pra você, mas por aqui mesmo. Venha, vou te apresentar um amigo.”
                Desmond esperou que Randal se levantasse, e puseram-se a caminhar em direção à passagem central. A postura imponente de Evenwood era impressionante. Uma cicatriz grande acompanhava a lateral de seu rosto, e várias outras menores cobriam seus braços descobertos. As roupas estavam gastas de viagem, mas isso não maculava sua imagem viril. Seus olhos transmitiam profundidade e pesar, mas seu andar era decidido e seus passos firmes.
                Embarcaram em um dos discos, ultrapassaram um pavimento fechado, outro que continha apenas um corredor circular com portas equidistantes ao longo da circunferência, o andar de Nyx, mais um andar com portas, mas desta vez apenas com duas. Ultrapassaram o pavimento com a sala a Phalos, onde altas risadas puderam ser ouvidas. Mais um pavimento com apenas uma porta, e depois outro. Acima destes, o silêncio já era quase tangível. Chegaram a uma sala quase vazia, sem cadeiras e mesas. Não era um bar.
Os cantos tinham leves bancos estreitos, com almofadas finas acolchoando-os. No chão, um belíssimo mosaico azul e branco mostrava um punho fechado. O chão tinha um córrego, margeado por pedras redondas dispostas uniformemente. Algumas plantas e bonsais bem cuidados estavam dispostos de maneira simétrica em jardins próximos ao perímetro da sala, intercalando-se com os bancos.
Janelas largas e com vitrais trabalhados com formas geométricas e concêntricas circundavam a torre. O ambiente era bem iluminado, e transmitia muita paz. No centro da sala, um pequeno gazebo de mármore, encimado não por um telhado, mas por um toldo de veludo azul, apoiado sobre as colunas finas do gazebo. Sob a cobertura, um anão careca sentava-se com as pernas cruzadas.
As roupas do anão eram brancas e deixavam o peito forte descoberto. Ele parecia absorto em seus pensamentos, provavelmente meditando.
Desmond e Randal avançaram pisando com cuidado, evitando o córrego e o jardim. Chegaram solenemente à base do gazebo. Desmond feriu o silêncio que antes era maculado apenas pelo som singelo da água no córrego. “Sonam.”
O monge abriu os olhos, mas não fez menção de se levantar.
“Desmond. Vejo que tem companhia.”, disse o monge, com uma voz profunda e mais eloquente do que a maioria dos anões que Evenwood tinha conhecido.
“Este é Randal Evenwood. O trouxe para que ele possa te ajudar com o que você precisa fazer.”
“Certo. Olá, Randal. Você sabe quem eu sou?”
                “Não sou bom fisionomista, mas pelas histórias acho que consigo deduzir. Você é Sonam, o monge.”
                “Sim. As histórias talvez pintem meu retrato de outra forma, mas acho que em essência, ainda sou o mesmo. Desmond, você acha este homem pode ajudar em minha busca?”
                “Eu acredito que sim. Ele tem alguma experiência em utilizar inteligência para conseguir feitos memoráveis. Não tanto quanto nós... he he he he.”
                Sonam não riu. O rosto do monge parecia impassível. Suas mãos permaneciam relaxadas em seu colo, e suas pernas cruzadas.
                “Randal Evenwood, eu não o conheço, mas respeito a confiança que Desmond deposita em você. Espero que você se mostre centrado e valoroso e que complete sua missão com louvor. Eu preciso que você visite um local.”
                Desmond explicou com detalhes a queda de seu templo, causada por um ataque do Culto do Dragão. Mencionou enormes listas de desaparecidos e mortos; descreveu com clareza a anatomia do local depois da destruição.
                A visita de Randal ao tempo seria motivada pela necessidade de Sonam de encontrar respostas a perguntas que perturbavam sua mente desde que ele deixara o abrigo do templo e se juntara a Amlugnehtar. Evenwood deveria vasculhar entre os destroços, à procura de esqueletos, objetos e arte. Mais importante do que tudo, Randal deveria encontrar uma carta.
                Antes de morrer, o mestre de Sonam havia confeccionado uma carta em resposta a outra, enviada pelo pupilo algum tempo antes. Esta carta não era de conhecimento de Sonam, que acreditava que o mestre tinha morrido muito antes de conseguir responder aos seus questionamentos de caráter e fé. Em meditação, porém, havia percebido que a carta estaria lá, ao lado de seu mestre, sob os escombros. A visita que ele fez ao longo destes anos e a reconstrução de outro templo nas proximidades do destruído não haviam dado frutos para esta busca.
A dor de procurar entre tanto entulho por algo tão pequeno e dolorido havia causado trauma e pesadelos em Sonam, que perduravam ainda depois de tantos anos. O templo que ele havia construído, a mais ou menos dois quilômetros do primeiro, concentrava muitos seguidores. Ele era o monge mais importante e mais sábio, mas sua constante ausência o fez designar outro para que ficasse no lugar de guru do templo. Ele não costumava visitar o local da queda, e não permitiu até aquele momento que grandes buscas fossem realizadas. Pela ausência de material muito precioso dentre os destroços, não haviam registros de pilhagens e roubos no lugar.
Randal se mostrou preocupado com a natureza da missão, pois era de cunho muito diferente do que estava acostumado; ele não deveria matar, roubar ou espancar ninguém desta vez. Era uma jornada puramente espiritual, que nem o monge que o convocava julgava ter paz suficiente para suportar. Logicamente, ele aceitou.
“Você será recompensado largamente”, prometeu Sonam. O preço do sono tranquilo do meu coração é inestimável.

            Randal permitiu-se invadir o centro da sala, esticar o braço e cumprimentar o contratante. “Cumprirei a missão com dedicação e louvor, senhor.”, disse Evenwood, com reverência. Ao apertar a mão do mercenário, Sonam sentiu firmeza, seriedade e decisão. Acreditou, naquele momento, que tinha escolhido a pessoa certa.

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