Randal Evenwood sentou-se numa
das cadeiras de um dos andares da taverna. Esticou suas pernas sobre outra delas,
vazia. Tanto quanto ficar mais confortável, esperava que seus pés sujos de lama
intimidassem alguém que resolvesse sentar-se ao seu lado.
O andar onde
estava era dedicado a Desmond, o ladino. Na época que os Amlugnehtar brilharam,
Randal ainda tinha outra vida. Conseguira salvar sua família e seu vilarejo dos
ataques do culto, quando ainda tinha uma patente alta na guarda militar da
cidade. Teve a chance de intervir em um ataque iminente, depois de conseguir
informações provindas do serviço de inteligência da cidade. Mesmo que o
departamento fosse de um homem só, o ladino responsável produziu informações
vitais e a companhia do Culto que pretendia emboscar Hlath foi interceptada a
quilômetros do destino.
Por isso,
Evenwood tinha grande admiração pela ladinagem. Apesar de famoso de nome,
Desmond, o ladino, mantinha sua imagem em relativa discrição. Utilizava-se de
disfarces e personalidades alternativas para se locomover entre as cidades e
interagir, já que a verdadeira identidade de um ladino, se conhecida, pode
colocar em risco suas atividades.
Desmond e Evenwood
já haviam trabalhado juntos. Em algumas ocasiões, Randal o contatara em Luskan
para obter informações e passagem livre para resolver missões e problemas. Desde
que saíra de Hlath, Evenwood não mais se envolvera com o militarismo, e
manteve-se apenas como mercenário.
Nas paredes
daquela sala não havia muita decoração. Ao contrário dos andares dedicados à Nyx
e Phalos, o andar de Desmond tinha uma pequena exposição de armas,
principalmente bestas, arcos, adagas e uma rapieira. Alguns quadros discretos
mostravam uma seleção de feitos do ladino, como executar inimigos de grande
poder com apenas ataques furtivos. Os quadros eram escusos em relação à sua
aparência, tando exibindo informações conflitantes ou simplesmente o
caracterizando como uma figura misteriosa sob um manto negro.
Este manto
parecia muito diferente dos mantos normais, e deixaria dúvidas quanto à sua
representação artística se não estivesse pendurado, exposto sob uma redoma de vidro
em um dos cantos da sala. Era um manto perfeitamente negro, de aparência
semelhante a couro. Na gola, duas protuberâncias bem demarcadas completavam a
imagem, que parecia claramente inspirada na anatomia de uma raia manta.
Randal bebeu mais
um grande gole da cerveja que haviam servido. Sobre o armário atrás do balcão,
uma pequena plataforma dourada expunha uma bela caneca decorada. A cerveja em
sua própria caneca era fresca, de sabor forte e pungente.
“Você sabe que
caneca é aquela, não sabe, Rrrrrandal?”, disse Desmond, estendendo o “r” como
costumava fazer, por brincadeira. Em sua voz, o sorriso podia ser ouvido, antes
mesmo de ser visto por Evenwood.
“Desmond!
Sabia que ia te achar aqui. Você fala que fica em Luskan mas não vai embora de Águas
Profundas.”
“Nyx me leva e
traz, ela nos teleporta em segundos... e assim posso passar um tempo com ela,
se é que me entende, he he he he”
“Ah, entendo
sim! Não a conheço, mas pelos desenhos, uuuuf! Ela parece... quente, HÁ HÁ HÁ HÁ!”
“Quente é a palavra
exata, Randal, hahaha. Mas me diga, você sabe que caneca é aquela?”
“É aquela
mesma que você roubou daquela taverna, que você me contou daquela outra vez?”
“Ela mesma! Acabei
ficando para trás do resto do pessoal e eles foram para o castelo voador encontrar
os Gigantes. Phalos acabou ficando para trás comigo e fomos voando de Wyvern
atrás da galera depois. Quase que aquelas monstras derrubam a gente, mas cara!
Valeu a pena!”
Desmond ainda
não tinha sentado, e foi até o balcão. Pediu ao taverneiro que lhe desse a
caneca. Ele se esticou depois de subir em um pequeno banco de madeira, resgatou
a caneca do topo da plataforma dourada e entregou-a a Desmond.
“Vamos, Randal,
experimente. Você sabe que quer.”
Evenwood
bebericou a cerveja. Gelada e saborosa. “Agora entendo por que você vive bêbado,
Desmond! Há há há há!”
“Ora, vamos,
isso não é verdade... sempre... há há há há. E então, velho amigo... o que lhe
traz aqui? Você está bem longe de casa.”
“Desmond, estou
longe de casa desde que ela foi destruída em Hlath. Não há como ficar próximo
de algo que não existe.”
O ladino pareceu
reduzir o sorriso e sua testa demonstrou um pouco menos de leveza.
“Não se preocupe
com isso, Desmond. Você sabe que foi há muito tempo”, reassegurou Randal. “Minha
menina faria 16 esse ano. Enfim, o que me trouxe aqui foram rumores de que um
novo problema pode estar acontecendo em Neverwinter, e eu gostaria de saber se
você sabe de alguma coisa sobre isso.”
“Ouvi falar de
algo. Talvez... talvez eu saiba de uma ou duas coisas.”
“E essas uma
ou duas coisas envolvem quem possa querer minha ajuda por lá? Estou precisando
de dinheiro.”
“Randal, você sabe
que eu posso ajudar você, né?”, ofereceu Desmond.
“Preciso
de sustento, não caridade, amigo. Você não me ofende com a proposta, mas nunca
mais fale nada remotamente parecido.”
“He
he he, está certo!”, disse Desmond. “Talvez eu tenha um trabalho ou dois pra
você, mas por aqui mesmo. Venha, vou te apresentar um amigo.”
Desmond
esperou que Randal se levantasse, e puseram-se a caminhar em direção à passagem
central. A postura imponente de Evenwood era impressionante. Uma cicatriz grande
acompanhava a lateral de seu rosto, e várias outras menores cobriam seus braços
descobertos. As roupas estavam gastas de viagem, mas isso não maculava sua imagem
viril. Seus olhos transmitiam profundidade e pesar, mas seu andar era decidido
e seus passos firmes.
Embarcaram
em um dos discos, ultrapassaram um pavimento fechado, outro que continha apenas
um corredor circular com portas equidistantes ao longo da circunferência, o
andar de Nyx, mais um andar com portas, mas desta vez apenas com duas. Ultrapassaram
o pavimento com a sala a Phalos, onde altas risadas puderam ser ouvidas. Mais
um pavimento com apenas uma porta, e depois outro. Acima destes, o silêncio já
era quase tangível. Chegaram a uma sala quase vazia, sem cadeiras e mesas. Não
era um bar.
Os cantos tinham
leves bancos estreitos, com almofadas finas acolchoando-os. No chão, um belíssimo
mosaico azul e branco mostrava um punho fechado. O chão tinha um córrego,
margeado por pedras redondas dispostas uniformemente. Algumas plantas e bonsais
bem cuidados estavam dispostos de maneira simétrica em jardins próximos ao perímetro
da sala, intercalando-se com os bancos.
Janelas largas
e com vitrais trabalhados com formas geométricas e concêntricas circundavam a
torre. O ambiente era bem iluminado, e transmitia muita paz. No centro da sala,
um pequeno gazebo de mármore, encimado não por um telhado, mas por um toldo de
veludo azul, apoiado sobre as colunas finas do gazebo. Sob a cobertura, um anão
careca sentava-se com as pernas cruzadas.
As roupas do
anão eram brancas e deixavam o peito forte descoberto. Ele parecia absorto em
seus pensamentos, provavelmente meditando.
Desmond e
Randal avançaram pisando com cuidado, evitando o córrego e o jardim. Chegaram solenemente
à base do gazebo. Desmond feriu o silêncio que antes era maculado apenas pelo
som singelo da água no córrego. “Sonam.”
O monge abriu
os olhos, mas não fez menção de se levantar.
“Desmond. Vejo
que tem companhia.”, disse o monge, com uma voz profunda e mais eloquente do
que a maioria dos anões que Evenwood tinha conhecido.
“Este é Randal
Evenwood. O trouxe para que ele possa te ajudar com o que você precisa fazer.”
“Certo. Olá,
Randal. Você sabe quem eu sou?”
“Não
sou bom fisionomista, mas pelas histórias acho que consigo deduzir. Você é
Sonam, o monge.”
“Sim.
As histórias talvez pintem meu retrato de outra forma, mas acho que em essência,
ainda sou o mesmo. Desmond, você acha este homem pode ajudar em minha busca?”
“Eu
acredito que sim. Ele tem alguma experiência em utilizar inteligência para
conseguir feitos memoráveis. Não tanto quanto nós... he he he he.”
Sonam
não riu. O rosto do monge parecia impassível. Suas mãos permaneciam relaxadas
em seu colo, e suas pernas cruzadas.
“Randal
Evenwood, eu não o conheço, mas respeito a confiança que Desmond deposita em
você. Espero que você se mostre centrado e valoroso e que complete sua missão
com louvor. Eu preciso que você visite um local.”
Desmond
explicou com detalhes a queda de seu templo, causada por um ataque do Culto do
Dragão. Mencionou enormes listas de desaparecidos e mortos; descreveu com
clareza a anatomia do local depois da destruição.
A
visita de Randal ao tempo seria motivada pela necessidade de Sonam de encontrar
respostas a perguntas que perturbavam sua mente desde que ele deixara o abrigo
do templo e se juntara a Amlugnehtar. Evenwood deveria vasculhar entre os
destroços, à procura de esqueletos, objetos e arte. Mais importante do que
tudo, Randal deveria encontrar uma carta.
Antes
de morrer, o mestre de Sonam havia confeccionado uma carta em resposta a outra,
enviada pelo pupilo algum tempo antes. Esta carta não era de conhecimento de
Sonam, que acreditava que o mestre tinha morrido muito antes de conseguir
responder aos seus questionamentos de caráter e fé. Em meditação, porém, havia percebido
que a carta estaria lá, ao lado de seu mestre, sob os escombros. A visita que
ele fez ao longo destes anos e a reconstrução de outro templo nas proximidades
do destruído não haviam dado frutos para esta busca.
A dor de procurar
entre tanto entulho por algo tão pequeno e dolorido havia causado trauma e
pesadelos em Sonam, que perduravam ainda depois de tantos anos. O templo que
ele havia construído, a mais ou menos dois quilômetros do primeiro, concentrava
muitos seguidores. Ele era o monge mais importante e mais sábio, mas sua constante
ausência o fez designar outro para que ficasse no lugar de guru do templo. Ele
não costumava visitar o local da queda, e não permitiu até aquele momento que
grandes buscas fossem realizadas. Pela ausência de material muito precioso
dentre os destroços, não haviam registros de pilhagens e roubos no lugar.
Randal se
mostrou preocupado com a natureza da missão, pois era de cunho muito diferente
do que estava acostumado; ele não deveria matar, roubar ou espancar ninguém desta
vez. Era uma jornada puramente espiritual, que nem o monge que o convocava julgava
ter paz suficiente para suportar. Logicamente, ele aceitou.
“Você será
recompensado largamente”, prometeu Sonam. O preço do sono tranquilo do meu
coração é inestimável.
Randal permitiu-se invadir o centro da sala, esticar o braço e cumprimentar o contratante. “Cumprirei a missão com dedicação e louvor, senhor.”, disse Evenwood, com reverência. Ao apertar a mão do mercenário, Sonam sentiu firmeza, seriedade e decisão. Acreditou, naquele momento, que tinha escolhido a pessoa certa.
Randal permitiu-se invadir o centro da sala, esticar o braço e cumprimentar o contratante. “Cumprirei a missão com dedicação e louvor, senhor.”, disse Evenwood, com reverência. Ao apertar a mão do mercenário, Sonam sentiu firmeza, seriedade e decisão. Acreditou, naquele momento, que tinha escolhido a pessoa certa.
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