Quando Siana abriu a carta,
surpreendeu-se. Apesar de muito bondosa e dedicada, a inocência dela não
tornava o cultivo de amizades uma tarefa fácil. O bilhete, que parecia ter sido
escrito às pressas, trazia num pedaço amassado de pergaminho as seguintes
palavras:
Você não está vendo nada de errado. Ele está escondendo algo de
você, e ele está em perigo. Venha me encontrar à meia noite na doca do Velho
Pescador.
Siana
não permitiu que sua mãe lesse a mensagem. Sabia que provavelmente não
resistiria à vontade de seguir as instruções e encontrar o remetente
misterioso, e se sua mãe soubesse de seus planos jamais a permitiria sair tão
tarde e sozinha. Infelizmente, Siana era
uma péssima mentirosa. Sua tentativa de convencer sua mãe de que era a carta de
um rapaz que havia se interessado por ela teria sido imensuravelmente malsucedida,
se sua mãe não fosse ainda mais inocente do que ela.
Satisfeita
com a decisão da filha de engajar-se em um relacionamento, Halyna fez algumas
perguntas sobre quem era o rapaz, e pediu encarecidamente que ela o trouxesse
para que o conhecessem. Disse também para que não seguissem o exemplo dos pais
e não ultrapassassem carinhos simples como apertos de mãos e abraços. Siana
ficou desconfortável e enrubescida ao relembrar sua história de nascimento.
Halyna, apesar de encorajar um relacionamento puro e livre de tentações,
entendia que Siana e o namorado eram muito novos e não os recriminaria se
cedessem às urgências da juventude.
Fingindo
cansaço, Siana despediu-se de seus pais e anunciou que se deitaria. A hora era
pouco depois das onze. Illithor e Halyna observaram a filha fechar a porta de
seu quarto e conversaram por alguns momentos sobre como “nossa menininha está
crescida”. Quinze minutos depois,
estavam profundamente adormecidos.
Siana
decidiu que estaria no local quinze minutos antes do horário combinado. Assim
que ouviu o ronco de sua mãe, vestiu um manto escuro e surrado que costumava
usar no inverno, calçou suas botas mais silenciosas e pulou a janela de seu
quarto. No lugar de seu corpo, acomodou cobertores e seu alaúde como simulacro
de sua presença na cama com colchão de palha.
Após
vinte minutos de caminhada rápida, a doca do Velho Pescador estava à vista.
Procurou algum lugar para se esconder, e decidiu que algumas caixas com cordas
de amarrar barcos poderiam servir como um precário abrigo. Escondeu-se o melhor
que pôde e aguardou a chegada do remetente da mensagem.
Tão
logo cobriu-se com a última volta de corda e ficou completamente imóvel, ouviu,
vindo do lado de fora da caixa, uma voz melodiosa: “Olá-áá-“
Siana
não esperava que fosse descoberta. Por entre as ripas da caixa, avistou um
grande olho muito azul, que parecia quase negro à luz do luar.
“Eu
vi você. Não adianta, você se esconde muito mal.”
Ela
não se moveu. O comportamento dele era muito estranho e ela se sentiu
intimidada. Numa tentativa fútil e inevitavelmente falha, prendeu a respiração
e ficou completamente imóvel, na esperança que ela estivesse alucinando e
aquela figura não existisse.
Antes
que ela perdesse o fôlego, as cordas foram tiradas de cima dela, e sua imagem
foi banhada pela luz forte da lua cheia. “Siana, vamos. É hora de parar de
brincar de esconde-esconde. Buuuu, já
te achei. Agora saia, precisamos conversar.”
Siana
não conseguiu decifrar outra forma de escapar. Resolveu, mais uma vez, assumir sua
falha em se esconder. Levantou-se, ergueu suas costas e esforçou-se para não
demonstrar medo.
“Certo,
saí. Agora quem é você, como sabe onde eu moro e meu nome?”
“Menina,
me pergunte como eu NÃO sei alguma coisa, e talvez seja um pouco mais fácil de
responder isso. Meu nome é Navere, e temos um... amigo em comum.”
“Navere...
não, não conheço você. E quem é esse amigo em comum?”
“Ora,
não se faça de sonsa! Phidain! E você sabe muito bem disso.”, respondeu Navere,
sorrindo, mas transmitindo alguma consternação.
“Okay,
realmente, dessa eu já sabia. Mas você mencionou no bilhete que havia algo que
ele estava escondendo de mim. Fale mais sobre isso.”
“Phidain
é um homem de coração muito bom. Ele realmente gosta de ajudar os outros e
realmente se preocupa com você. Eu não quero que você duvide disso jamais.
Promete para mim?”
“Claro...
ele pode ser um pouco inconveniente e piadista, mas é como família para mim. Eu
realmente estou pensando em sua segurança.”
“Certo.
Acho que devo começar pelo começo. Phidain era meu mestre, assim como é seu.”
“Jura?”,
perguntou Siana. “Eu achava que ele já não tinha pupilos já há muito tempo.”
“E
não tem. Já não estou mais sob a asa de Phidain há sete anos. O conheci a
caminho de Águas Profundas, aqui treinamos e aqui ficamos. Se não fosse por
Phidain, eu provavelmente estaria morto, ou passando fome.”
Navere
exibia belas orelhas pontudas como as de Siana, não tão agudas como as de um
elfo, mas inegavelmente inumanas. Siana sabia que Navere era um meio elfo como
ela, mas a cor de sua pele, principalmente sob a falha luz da lua, parecia
irreal. Sua visão noturna permitia que formas e distâncias fossem vistas com
clareza, mas as cores perdiam-se com muita facilidade na ausência da luz
diurna.
As
roupas do meio elfo eram coloridas, de veludo arroxeado e com detalhes em
dourado. A calça que usava era muito apertada, e as botas tinham pontas curvas.
Ele usava um chapéu fofo com uma bela pluma que o encimava; tinha um bandolim
nas costas, que não deixava dúvidas de que seguira à risca os ensinamentos de
Phidain.
“Sabe,
Siana, quando eu era mais novo, a única coisa que eu tinha era minha voz. Veja,
ela não é encantadoraaa-aaa-aaa-aaaaa?”, disse Navere, cantarolando a última
palavra em uma perfeita escala de notas ascendentes. “Houve um tempo na minha
vida em que eu viajei com o circo. Acredita que me apresentei por toda Faerûn?”
“Sério?
Eu nunca viajei para mais longe do que Daggerford... e só fui lá para visitar
meus avós. Depois que eles faleceram nos ataques do Culto, eu nunca mais voltei
para lá.”
“É
uma pena, Siana. Ninguém gosta de perder a família.”, disse Navere, reduzindo
consideravelmente seu sorriso.
O
meio elfo conduzia um passeio redundante pelo píer onde estavam, em formato de
um longo “8”. Suas pernas finas pareciam
dar ainda mais elegância ao andar. Sua linguagem corporal parecia poética e
musical, como se seus músculos se movessem em um ritmo próprio e cadenciado. Suas
costas arqueavam-se com graça. Enquanto conversavam, Navere ocasionalmente trocava
o pé que ia na frente do outro, dando pequenos pulos.
“Mas...
Navere, estou preocupada e curiosa com Phidain. Será que pode me contar o que há
de errado?”
“É
muito simples, Siana. Phidain envolveu-se com quem não devia, há muito tempo, e
não sabe como sair desta. Ele deve informações, e de forma vitalícia. Enquanto
ele viver, têm de informar a alguém sobre alguma coisa.”
“Ele
me disse que era um problema de família... uma prima grávida, ou algo assim.”
“Phidain
não tem ninguém. A família dele somos eu, você e quem mais ele resolver
ensinar. Veja, eu aprendi muito com ele...”
O
sorriso de Navere se alargou, exibindo belos dentes brancos e bem cuidados. Obviamente,
Siana assustou-se. Belos dentes eram raridade em Faerûn, principalmente depois
dos ataques do Culto. As cidades ainda estavam se reerguendo, e muitas pessoas
não conseguiam se alimentar corretamente e não tinham acesso à higiene.
Navere
pareceu relembrar alguma coisa, e abriu um meio sorriso. À luz da lua, estendeu
o braço e pegou seu bandolim. Sentou no chão, recostando-se na caixa que havia
servido de esconderijo para Siana e iniciou um belo dedilhado. Ainda sorrindo, acompanhou
a música com um assobio afinado. Apesar de estar produzindo sons, parecia tomar
cuidado para que não ultrapassasse o volume de uma conversa contida. A caixa,
ao contrário do que fez por Siana, parecia cobrir sua imagem. A música acalentadora
vinha da sombra da caixa, e alguém à distância poderia não notar a presença de
Navere ali.
Siana
sentou-se ao lado dele, e enquanto ele dedilhava seu bandolim, ela permitiu-se
fechar os olhos e apreciar a música. Seu alaúde ainda era um mistério para ela,
e ainda não conseguira produzir sons agradáveis. A música parecia aquecer seu coração
e ela encolheu suas pernas e abraçou-as. Batucava levemente em seus joelhos no
ritmo da música. Entendeu ali, naquele momento, que Navere era uma boa pessoa e
o elo que os unia a partir dali era Phidain e sua segurança. Assumiu a
responsabilidade para si e decidiu que levaria Navere e suas habilidades consigo,
para que pudesse usufruir dele em benefício do mestre.
A
música parecia durar pela eternidade. Siana sorria. Quando finalmente cessou o
assobio, a ausência de conclusão da canção a despertou do estado de transe em
que estava. Navere estava calado, e suas mãos, imóveis. Na lateral do corpo
dele, a parte de trás de uma seta aparecia apenas uma polegada para fora de
suas costelas.
Siana
não ouviu a seta fincando-se no tórax de Navere, mas agora podia ver de onde
tinham saído. Uma figura vestida de negro estava parada no limite do píer, do
lado da água. As roupas encharcadas pareciam ainda mais negras, e poças se
formavam rapidamente sob seus pés. O intruso empunhava uma besta leve, e já
terminava de recarregá-la.
Siana,
conhecendo magias simples, sabia o que deveria fazer. Com a mão direita, arrancou
a seta do tórax de Navere, que respirou ao sentir o objeto saindo. Ele olhou
para o buraco que esguichava sangue com olhos assustados, mas Siana, com a mão
esquerda, tocou no ferimento e murmurou algumas palavras. Sua mão cobria o furo,
e uma luz fraca emanou de sua palma. O sangramento estancou. A figura vestida
de negro disparou outra seta.
Quando
Navere finalmente conseguiu levantar, viu que Siana estava caída ao seu lado,
com a seta enfiada bem no centro de sua garganta.
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