sexta-feira, 27 de novembro de 2015

26 – A fuga de Siana


            “ME TIRA DAQUI, PHIDAIN!!!”, gritava Siana, repetidamente. “ME TIRA DAQUI!!!”
            Calmamente, o bardo persistia sentado no chão, logo ao lado de fora do quarto onde a trancara. Através da porta, podia ouvir os brados inflamados da pupila, entremeados pelos socos repetidos na porta.
            “Siana... se acalme. É pro seu bem.”, ele dizia, mas Siana ficava cada vez mais enfurecida. “Eu vou embora agora. Quando você se acalmar a gente conversa.” Siana ouviu passos se distanciando da porta.
            Siana socou a porta e berrou por mais alguns segundos, até perceber que de fato Phidain não estava mais ali. Olhou ao redor mais uma vez: uma cama muito velha, com marcas em toda a madeira; um colchão muito fino de palha com muitos insetos; um balde, presumivelmente para ser usado como latrina; uma janela pequena, fechada com tábuas de madeira; um pequeno criado mudo, sem nada nem em cima nem na única gaveta.
            Ela achava que estava ali há mais ou menos duas horas. Enquanto investigava o pequeno banheiro daquele dormitório no templo de Mielikki, Siana fora surpreendida por Phidain. Antes de conseguir exprimir qualquer reação, Phidain a tomara pelo braço e eles foram teleportados para este lugar.
            Apareceram ali mesmo no quarto, mas não tiveram tempo para conversar. Ainda atordoada pela magia, Siana ouviu Phidain dizer “Desculpe, desculpe... é para o seu bem. Você precisa ficar longe de tudo aquilo...”
            Phidain virou as costas e saiu do quarto. Antes de trancar a porta, se desculpou mais uma vez. Siana não percebeu o que estava acontecendo até que ouviu o barulho da chave girando e da barra sendo afixada do lado externo da porta.
            “Não... não... NÃO!!! Não me deixe aqui, Phidain!”, ela gritou, apenas para ter como resposta o silêncio. “Phidain... por favor... o que está acontecendo... Phidain...”
            Nas duas horas seguintes, Siana alternou seus protestos num ciclo entre gritos e intimidações, como “SE VOCÊ NÃO ME TIRAR DAQUI AGORA EU VOU CAÇAR VOCÊ E MATAR VOCÊ ENQUANTO VOCÊ DORME”, charme, como “Phidain... por favor... você sabe que eu tenho muito medo de ficar sozinha...”e períodos de razão, como “Phidain, me tire daqui e vamos conversar e resolver isso juntos. ”
            A passividade do antigo mestre deixava Siana insegura, sem entender o que ele realmente pretendia quando ele a privou da liberdade. Phidain às vezes assobiava, às vezes batucava na porta. Raras vezes ele respondia aos clamores de Siana, mas quando o fazia, tentava manter o tom mais vago possível. “É para o seu bem, Siana... apenas para o seu bem...”
            Então, ao finalmente ouvir os passos de Phidain indubitavelmente se afastando, ela abaixou os braços e parou de lutar. Sabia que a porta era muito mais forte do que ela, e que forçar não era a maneira mais efetiva de sair de seu cativeiro. Continuava a inventariar os objetos que tinha disponíveis naquele ambiente. Sua mente pouco inventiva não permitia que extraísse com eficácia usos pouco convencionais dos móveis e objetos do recinto.  
            Sentou-se com as costas contra a porta, seus longos cabelos ondulados de cor castanha clara como amêndoas caindo ao redor do rosto e dos ombros. Siana dobrou seus joelhos e os trouxe para perto do corpo, apoiando o queixo sobre as pernas dobradas. Tomou em seus dedos a ponta de um dos cachos largos e começou a enrolá-lo, como costumava fazer em horas de estresse ou medo.
            Depois de algum tempo tentando achar alguma solução, foi até a janela e tentou puxar as tábuas que a cobriam. Não conseguiu. Feriu os dedos nos pregos e terminou com as mãos cobertas de farpas da madeira de má qualidade e pobremente trabalhada. Sentou-se novamente, repetindo a posição muito encolhida, procurando por conforto.
            Siana lembrou-se dos poucos dias que passara tentando aprender com os magos daquela ordem. Recebera algumas lições, mas ela não era boa em executá-las. Grande parte das vezes em que tentava conjurar alguma magia arcana, alcançava apenas a falha, ou efeitos inesperados. Apesar disso, trouxera consigo conhecimentos que os outros bardos não tinham. Seus olhos se acenderam ao lembrar.
            Durante sua estadia com os magos, uma das primeiras conjurações que ela teve contato e algum sucesso foi a criação de um pequeno borrifo de ácido. Ela nunca tinha achado que esta pequena façanha pudesse trazer grandes resultados até agora. Se sentindo um pouco mais esperançosa, se levantou e foi até a porta. Concentrou-se, colocando suas mãos em concha na direção da fechadura da porta. Com uma palavra de poder, um esguicho de ácido viscoso saiu do espaço entre as palmas de suas mãos e atingiu a fechadura. Siana conseguiu enxergar o ácido corroendo a parte de dentro da fechadura com um som baixo e bolhoso.
            Esperou ansiosamente enquanto o ácido agia em contato com o metal da porta. Assim que achou que o dano havia sido suficiente, empurrou a porta. Desta vez, em vez de resistência, a porta ofereceu não mais do que a sensação de estar levemente emperrada e depois abriu com um rangido característico.
            Siana viu-se livre e observou ao redor. Não estava na casa de Phidain, nem em nenhum outro lugar que lhe fosse familiar. A sala onde saíra continha algumas estantes, uma mesa de jantar, uma lareira e uma escrivaninha. Era um ambiente bem decorado e que transmitia algum luxo, embora tudo parecesse muito velho e abandonado. As outras janelas da sala estavam barradas com tapumes de madeira, tais qual a janela do quarto onde estava.
            Apanhou um candelabro simples de prata que estava em cima da mesa de jantar. Empunhou-o como uma arma de contusão, embora ele não parecesse ser particularmente efetivo contra alguém, já que era pouco mais que um suporte fino para uma única vela.
            Siana investigou o resto da construção, descobrindo uma cozinha, uma latrina, outro quarto, uma sala de banhos com uma enorme tina de madeira e estanho muito antiga. O aparato tinha uma considerável camada de pó acumulado no fundo.
            Não parecia haver mais ninguém na sala além dela, então Siana decidiu sair. Sorrateiramente, abriu a porta principal. Viu-se no que parecia ser uma pequena rua charmosa, com árvores e pavimento de pedra. A casa onde estava tinha outras semelhantes geminadas dos dois lados e estas se repetiam longamente, fazendo a rua ser ladeada por muitas casas semelhantes e em sequência, formando um longo corredor único.
            Siana continuava empunhando seu candelabro como uma arma, mas dentro de sua cabeça já preparava outras magias de defesa ou ataque se fosse necessário. Como bardo, durante o treinamento com Phidain, aprendera todas as magias comuns aos bardos e mais algumas um pouco mais complexas. Não se sentia absolutamente indefesa, mas a insegurança e a falta de reconhecimento do lugar a causavam ansiedade. A própria ansiedade lhe fazia questionar se as magias que sabia eram boas, efetivas ou ainda, se ela as lembraria de utilizá-las.
            A rua concluiu-se naturalmente ao alcançar uma praça singela, característica dos pequenos vilarejos. Ao contrário dos pequenos vilarejos, a praça continha mais de um templo. Além dos comuns, para Lathander e Chauntea, haviam templos de vários outros deuses. Além disso, numa ponta um pouco mais afastada e dentro de um grande terreno, havia uma pequena torre de pedra malcuidada, com limo crescendo entre os pedregulhos e falhas no que deveria ser uma circunferência perfeita. Acima da porta de madeira dupla à frente da torre, um símbolo em uma bandeira que tremulava chamava a atenção: sete estrelas azuladas rodeando uma névoa vermelha que serpenteava em direção ao céu.
            Mystra. A deusa da magia de Faerûn contava com templos e escolas de magia espalhadas por todos os continentes, com um grande contingente de adeptos. Este parecia ser mais um dos locais onde Mystra era cultuada, ou uma escola onde seus ensinamentos de benevolência e magia eram transmitidos.
            Naquele momento, Siana decidiu que tentaria mais uma vez. Não sabia onde estava, quem poderia atentar contra sua segurança, de quem teria que se esconder ou o que teria que provar. Sentia profundamente a presença de Mystra, de uma forma que jamais sentira com os outros deuses. Totalmente ciente de que não soava uma escolha sábia, Siana começou a andar em direção ao templo.
            A cada passo, percebia o quão perdida estava, há quanto tempo não via seus pais, o quão abandonada Phidain a havia feito se sentir. Sabia que sua família provavelmente estava muito preocupada por causa de seu desaparecimento. Ainda assim, Siana caminhava. A cada passo, a certeza de que deveria tentar mais uma vez o treinamento na magia arcana. Sabia que depois de tudo o que lhe havia acontecido, era outra pessoa. Se sentia mais inteira, mais capaz, mais confiante. Parecia sentir a mão espectral de Mystra a guiando pelos ombros, não permitindo que Siana se desviasse mais de seu próprio destino.
            Quando chegou à porta da torre esticou a mão para bater, mas antes que pudesse produzir qualquer som a porta se abriu.
            “Sim?”, disse o homem em robes roxos. Era um homem novo, pouco mais velho do que Siana. Tinha cabelos ruivos à altura do queixo, um pouco mal cuidados e mal penteados. Seu rosto era cheio de sardas sobre sua pele muito branca, e seus olhos verdes transmitiam bondade.
            “Eu... queria saber... se...”, começou Siana, de forma desajeitada.
            “Queria saber se pode se juntar a nós, né. Eu sei. Venha, nosso superior está esperando você.”
            “Como assim me esperando? Isso não faz sentido, eu... eu nem sei onde estou e...”
            “Você está na cidade de Mandon, seu nome é Siana e estamos esperando você.”
            “Mas... mas... mas...”
            “Bem, não temos o dia todo. Você vem ou não vem?”
            “Eu... vou... mas...”
            “Então entre!”
            Sem pronunciar palavra, Siana obedeceu ao jovem mago. Entrou cautelosamente na torre, seguindo os passos do anfitrião. O mago a conduziu para o andar superior, onde um vestíbulo aconchegante dava passagem para várias salas, todas com portas roxas fechadas. Em uma delas o jovem mago bateu três vezes e a porta se abriu. Atrás de uma mesa grande, cheia de papéis e pergaminhos amontoados, havia a figura inconfundível e estereotípica de um velho mago, com longos cabelos brancos e uma barba cheia da mesma cor. Seus olhos eram como os do mago jovem, extremamente benevolentes. A boca do velho virou-se em um sorriso sincero assim que viu Siana. Ao contrário dele, Siana demonstrava confusão e consternação pela recepção inesperada. Sentia-se um pouco invadida, não esperava que aquela fosse ser a reação de alguém ao abrir aquela porta.
            “Siana! Que maravilha! Finalmente você chegou”, cumprimentou o mago idoso.
            “Oi...eu...como você sabe quem eu sou?”, indagou ela.
            “Oras, já estamos te esperando há tanto tempo! Oh, que cabeça a minha! Meu nome é Garek Whitebeard, e eu vou ensinar você aquilo que você mais necessita e gostaria de aprender.”
            “Eu...”, Siana tentou, mas as palavras fugiam de seus lábios como coelhos de raposas famintas.
            “Você não quer ser maga? Pois bem, vamos trabalhar nisso! Temos um longo caminho!”, disse ele antes que Siana pudesse gastar mais alguns segundos constrangedores tentando encontrar o que responder.

            Garek saiu de trás da mesa com alguma dificuldade. Seus robes eram roxos como os do jovem mago. O homem parecia tão velho e encurvado que de pé ele era pouco mais alto que Siana. Aproximou-se dela, pegou sua mão e a conduziu para fora da sala.

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