“ME TIRA
DAQUI, PHIDAIN!!!”, gritava Siana, repetidamente. “ME TIRA DAQUI!!!”
Calmamente,
o bardo persistia sentado no chão, logo ao lado de fora do quarto onde a
trancara. Através da porta, podia ouvir os brados inflamados da pupila, entremeados
pelos socos repetidos na porta.
“Siana...
se acalme. É pro seu bem.”, ele dizia, mas Siana ficava cada vez mais
enfurecida. “Eu vou embora agora. Quando você se acalmar a gente conversa.” Siana
ouviu passos se distanciando da porta.
Siana socou
a porta e berrou por mais alguns segundos, até perceber que de fato Phidain não
estava mais ali. Olhou ao redor mais uma vez: uma cama muito velha, com marcas
em toda a madeira; um colchão muito fino de palha com muitos insetos; um balde,
presumivelmente para ser usado como latrina; uma janela pequena, fechada com
tábuas de madeira; um pequeno criado mudo, sem nada nem em cima nem na única
gaveta.
Ela achava
que estava ali há mais ou menos duas horas. Enquanto investigava o pequeno
banheiro daquele dormitório no templo de Mielikki, Siana fora surpreendida por
Phidain. Antes de conseguir exprimir qualquer reação, Phidain a tomara pelo
braço e eles foram teleportados para este lugar.
Apareceram
ali mesmo no quarto, mas não tiveram tempo para conversar. Ainda atordoada pela
magia, Siana ouviu Phidain dizer “Desculpe, desculpe... é para o seu bem. Você
precisa ficar longe de tudo aquilo...”
Phidain virou
as costas e saiu do quarto. Antes de trancar a porta, se desculpou mais uma vez.
Siana não percebeu o que estava acontecendo até que ouviu o barulho da chave
girando e da barra sendo afixada do lado externo da porta.
“Não... não...
NÃO!!! Não me deixe aqui, Phidain!”, ela gritou, apenas para ter como resposta
o silêncio. “Phidain... por favor... o que está acontecendo... Phidain...”
Nas duas
horas seguintes, Siana alternou seus protestos num ciclo entre gritos e intimidações,
como “SE VOCÊ NÃO ME TIRAR DAQUI AGORA EU VOU CAÇAR VOCÊ E MATAR VOCÊ ENQUANTO VOCÊ
DORME”, charme, como “Phidain... por favor... você sabe que eu tenho muito medo
de ficar sozinha...”e períodos de razão, como “Phidain, me tire daqui e vamos
conversar e resolver isso juntos. ”
A
passividade do antigo mestre deixava Siana insegura, sem entender o que ele realmente
pretendia quando ele a privou da liberdade. Phidain às vezes assobiava, às
vezes batucava na porta. Raras vezes ele respondia aos clamores de Siana, mas
quando o fazia, tentava manter o tom mais vago possível. “É para o seu bem,
Siana... apenas para o seu bem...”
Então, ao
finalmente ouvir os passos de Phidain indubitavelmente se afastando, ela
abaixou os braços e parou de lutar. Sabia que a porta era muito mais forte do
que ela, e que forçar não era a maneira mais efetiva de sair de seu cativeiro.
Continuava a inventariar os objetos que tinha disponíveis naquele ambiente. Sua
mente pouco inventiva não permitia que extraísse com eficácia usos pouco convencionais
dos móveis e objetos do recinto.
Sentou-se
com as costas contra a porta, seus longos cabelos ondulados de cor castanha clara
como amêndoas caindo ao redor do rosto e dos ombros. Siana dobrou seus joelhos
e os trouxe para perto do corpo, apoiando o queixo sobre as pernas dobradas. Tomou
em seus dedos a ponta de um dos cachos largos e começou a enrolá-lo, como costumava
fazer em horas de estresse ou medo.
Depois de
algum tempo tentando achar alguma solução, foi até a janela e tentou puxar as tábuas
que a cobriam. Não conseguiu. Feriu os dedos nos pregos e terminou com as mãos
cobertas de farpas da madeira de má qualidade e pobremente trabalhada. Sentou-se
novamente, repetindo a posição muito encolhida, procurando por conforto.
Siana
lembrou-se dos poucos dias que passara tentando aprender com os magos daquela
ordem. Recebera algumas lições, mas ela não era boa em executá-las. Grande parte
das vezes em que tentava conjurar alguma magia arcana, alcançava apenas a falha,
ou efeitos inesperados. Apesar disso, trouxera consigo conhecimentos que os
outros bardos não tinham. Seus olhos se acenderam ao lembrar.
Durante sua
estadia com os magos, uma das primeiras conjurações que ela teve contato e
algum sucesso foi a criação de um pequeno borrifo de ácido. Ela nunca tinha
achado que esta pequena façanha pudesse trazer grandes resultados até agora. Se
sentindo um pouco mais esperançosa, se levantou e foi até a porta. Concentrou-se,
colocando suas mãos em concha na direção da fechadura da porta. Com uma palavra
de poder, um esguicho de ácido viscoso saiu do espaço entre as palmas de suas mãos
e atingiu a fechadura. Siana conseguiu enxergar o ácido corroendo a parte de
dentro da fechadura com um som baixo e bolhoso.
Esperou
ansiosamente enquanto o ácido agia em contato com o metal da porta. Assim que
achou que o dano havia sido suficiente, empurrou a porta. Desta vez, em vez de
resistência, a porta ofereceu não mais do que a sensação de estar levemente
emperrada e depois abriu com um rangido característico.
Siana
viu-se livre e observou ao redor. Não estava na casa de Phidain, nem em nenhum
outro lugar que lhe fosse familiar. A sala onde saíra continha algumas
estantes, uma mesa de jantar, uma lareira e uma escrivaninha. Era um ambiente
bem decorado e que transmitia algum luxo, embora tudo parecesse muito velho e
abandonado. As outras janelas da sala estavam barradas com tapumes de madeira,
tais qual a janela do quarto onde estava.
Apanhou um
candelabro simples de prata que estava em cima da mesa de jantar. Empunhou-o
como uma arma de contusão, embora ele não parecesse ser particularmente efetivo
contra alguém, já que era pouco mais que um suporte fino para uma única vela.
Siana
investigou o resto da construção, descobrindo uma cozinha, uma latrina, outro
quarto, uma sala de banhos com uma enorme tina de madeira e estanho muito
antiga. O aparato tinha uma considerável camada de pó acumulado no fundo.
Não parecia
haver mais ninguém na sala além dela, então Siana decidiu sair. Sorrateiramente,
abriu a porta principal. Viu-se no que parecia ser uma pequena rua charmosa,
com árvores e pavimento de pedra. A casa onde estava tinha outras semelhantes
geminadas dos dois lados e estas se repetiam longamente, fazendo a rua ser ladeada
por muitas casas semelhantes e em sequência, formando um longo corredor único.
Siana
continuava empunhando seu candelabro como uma arma, mas dentro de sua cabeça já
preparava outras magias de defesa ou ataque se fosse necessário. Como bardo,
durante o treinamento com Phidain, aprendera todas as magias comuns aos bardos
e mais algumas um pouco mais complexas. Não se sentia absolutamente indefesa,
mas a insegurança e a falta de reconhecimento do lugar a causavam ansiedade. A
própria ansiedade lhe fazia questionar se as magias que sabia eram boas,
efetivas ou ainda, se ela as lembraria de utilizá-las.
A rua concluiu-se
naturalmente ao alcançar uma praça singela, característica dos pequenos
vilarejos. Ao contrário dos pequenos vilarejos, a praça continha mais de um
templo. Além dos comuns, para Lathander e Chauntea, haviam templos de vários
outros deuses. Além disso, numa ponta um pouco mais afastada e dentro de um
grande terreno, havia uma pequena torre de pedra malcuidada, com limo crescendo
entre os pedregulhos e falhas no que deveria ser uma circunferência perfeita. Acima
da porta de madeira dupla à frente da torre, um símbolo em uma bandeira que tremulava
chamava a atenção: sete estrelas azuladas rodeando uma névoa vermelha que serpenteava
em direção ao céu.
Mystra. A
deusa da magia de Faerûn contava com templos e escolas de magia espalhadas por
todos os continentes, com um grande contingente de adeptos. Este parecia ser
mais um dos locais onde Mystra era cultuada, ou uma escola onde seus ensinamentos
de benevolência e magia eram transmitidos.
Naquele momento,
Siana decidiu que tentaria mais uma vez. Não sabia onde estava, quem poderia
atentar contra sua segurança, de quem teria que se esconder ou o que teria que
provar. Sentia profundamente a presença de Mystra, de uma forma que jamais
sentira com os outros deuses. Totalmente ciente de que não soava uma escolha sábia,
Siana começou a andar em direção ao templo.
A cada
passo, percebia o quão perdida estava, há quanto tempo não via seus pais, o quão
abandonada Phidain a havia feito se sentir. Sabia que sua família provavelmente
estava muito preocupada por causa de seu desaparecimento. Ainda assim, Siana
caminhava. A cada passo, a certeza de que deveria tentar mais uma vez o
treinamento na magia arcana. Sabia que depois de tudo o que lhe havia
acontecido, era outra pessoa. Se sentia mais inteira, mais capaz, mais
confiante. Parecia sentir a mão espectral de Mystra a guiando pelos ombros, não
permitindo que Siana se desviasse mais de seu próprio destino.
Quando
chegou à porta da torre esticou a mão para bater, mas antes que pudesse
produzir qualquer som a porta se abriu.
“Sim?”,
disse o homem em robes roxos. Era um homem novo, pouco mais velho do que Siana.
Tinha cabelos ruivos à altura do queixo, um pouco mal cuidados e mal penteados.
Seu rosto era cheio de sardas sobre sua pele muito branca, e seus olhos verdes
transmitiam bondade.
“Eu...
queria saber... se...”, começou Siana, de forma desajeitada.
“Queria
saber se pode se juntar a nós, né. Eu sei. Venha, nosso superior está esperando
você.”
“Como assim
me esperando? Isso não faz sentido, eu... eu nem sei onde estou e...”
“Você está na
cidade de Mandon, seu nome é Siana e estamos esperando você.”
“Mas...
mas... mas...”
“Bem, não
temos o dia todo. Você vem ou não vem?”
“Eu...
vou... mas...”
“Então
entre!”
Sem pronunciar
palavra, Siana obedeceu ao jovem mago. Entrou cautelosamente na torre, seguindo
os passos do anfitrião. O mago a conduziu para o andar superior, onde um vestíbulo
aconchegante dava passagem para várias salas, todas com portas roxas fechadas. Em
uma delas o jovem mago bateu três vezes e a porta se abriu. Atrás de uma mesa
grande, cheia de papéis e pergaminhos amontoados, havia a figura inconfundível e
estereotípica de um velho mago, com longos cabelos brancos e uma barba cheia da
mesma cor. Seus olhos eram como os do mago jovem, extremamente benevolentes. A
boca do velho virou-se em um sorriso sincero assim que viu Siana. Ao contrário
dele, Siana demonstrava confusão e consternação pela recepção inesperada. Sentia-se
um pouco invadida, não esperava que aquela fosse ser a reação de alguém ao
abrir aquela porta.
“Siana! Que
maravilha! Finalmente você chegou”, cumprimentou o mago idoso.
“Oi...eu...como
você sabe quem eu sou?”, indagou ela.
“Oras, já
estamos te esperando há tanto tempo! Oh, que cabeça a minha! Meu nome é Garek
Whitebeard, e eu vou ensinar você aquilo que você mais necessita e gostaria de
aprender.”
“Eu...”,
Siana tentou, mas as palavras fugiam de seus lábios como coelhos de raposas
famintas.
“Você não
quer ser maga? Pois bem, vamos trabalhar nisso! Temos um longo caminho!”, disse
ele antes que Siana pudesse gastar mais alguns segundos constrangedores tentando
encontrar o que responder.
Garek saiu
de trás da mesa com alguma dificuldade. Seus robes eram roxos como os do jovem
mago. O homem parecia tão velho e encurvado que de pé ele era pouco mais alto
que Siana. Aproximou-se dela, pegou sua mão e a conduziu para fora da sala.
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