terça-feira, 3 de novembro de 2015

3 – A Donzela e o Centauro


Phidain estava cansado de ficar sentado por tanto tempo. Seu olhar havia examinado cuidadosamente cada tapeçaria e decoração do belo cômodo intimista da taverna. O teto era coberto de tecidos que pendiam em curvas graciosas, e ao lado das mesas haviam almofadas, tudo em tons de vermelho, laranja e amarelo. Ele sabia que sua empreitada para o final da educação de Siana ainda precisaria de mais informações, mas a partida abrupta da feiticeira secara sua boca e suas esperanças.

A presença de Sonam era inesperada, assim como a de Desmond. Nenhum dos dois fixou residência em Águas Profundas. Apesar de toda a taverna conter decoração em homenagem a todos os membros de Amlugnehtar, Sonam e Desmond decidiram investir em empreitadas sozinhos, pela fé ou por conveniência.

Phidain e Siana se dirigiram à passagem central, Ao olhar para baixo, os discos translúcidos permitiam enxergar um extenso túnel, que passava por eles e continuava para cima. O andar de Nyx ficava mais ou menos no meio da torre. Decidiram embarcar em um dos discos e deixar que a magia permanente os levasse para algum outro andar.

Ao descer mais dois pisos, o disco parou, e os dois bardos desembarcaram. O andar que haviam encontrado se parecia um pouco mais com uma taverna normal, com mais mesas, música e dança. Estava lotado. Num balcão, um rapaz franzino tentava encher canecas de cerveja, mas a tarefa parecia ser mais árdua do que ele conseguiria realizar com a rapidez necessária. Os cabelos do taverneiro colavam-se à testa, dando a ele uma aparência ainda mais jovem do que ele provavelmente era. Mulheres bem vestidas com roupas reveladoras circulavam entre as mesas, em flertes constantes. Ocasionalmente sentavam-se no colo de alguns dos presentes, que as recebiam calorosamente, levando as mãos aos seios ou nádegas. Elas respondiam com risadas altas. Três bardos, num dos cantos, cantarolavam e tocavam músicas tradicionais, convidando os clientes a tagarelarem e sacudirem seus pés no ritmo da música. Havia tanta gente no local, que não parecia haver lugar para dança.

A característica mais marcante da sala, no entanto, não era a animação ou a música. Nas paredes, troféus de caça tomavam quase cada centímetro, mostrando as mais estranhas e exóticas espécies de criaturas de Faerûn. Numa das paredes, duas cabeças de dragões negros jovens ladeavam um escudo feito de escamas de dragão branco. Outras criaturas inteiras empalhadas, escamas, dentes, mandíbulas e penas decoravam o local. Os clientes não pareciam espantados nem incomodados, pois as histórias de Phalos, o Bárbaro certamente o precediam.

Com um dos pés em uma cadeira, e outro em cima da mesa, um draconato falava alto, gesticulando. Estava sem camisa, e sua pele escamosa e vermelha brilhava à luz mágica do ambiente. As pernas eram cobertas por uma calça de pele, e botas que combinavam. Na cintura, um belo cinturão decorado brilhava levemente, como se carregasse magia.

“E então, eu peguei o falo decepado e acertei em cheio o outro ogro! PAAAAAAAAU! Eu acho que foi a maior atividade que aquele membro já viu na vida! Há há há há!”

Os integrantes da mesa gargalharam com o final da história animadíssima. Brindaram, encontrando suas canecas no ar. Cerveja espalhou-se por toda a mesa e respingou no draconato, que emitiu um som gutural, semelhante a um urro de guerra, bateu no peito nu e emendou o som com uma gargalhada, tão alta que sobrepujou até o som da percussão. O bardo que batia num bumbo, abaixou o volume e pareceu um pouco mais tímido.

O draconato tirou o pé da mesa e desceu da cadeira, estapeando carinhosamente as costas dos integrantes da conversa. Com a caneca na mão, se dirigiu ao taverneiro e disse algo inaudível.

Siana logo percebeu que aquele provavelmente era Phalos, o bárbaro. As histórias mencionavam seus feitos, mas não muitas os prepararam para um draconato expansivo, conversador e que gostava bastante de beber. A combinação era bem curiosa e surpreendeu os dois bardos por completo.

“Phidain, estou com sede. Vamos beber alguma coisa? Afinal, estamos aqui numa taverna há algum tempo e ainda não experimentei essa cerveja de que o pessoal fala tanto! Aquele vinho lá em cima era muito bom, mas eu preciso de alguma coisa... de verdade”. Siana mal completou a sentença, e já caminhou até o balcão. Não esperou a resposta de Phidain. Sentia-se como se a animação do local fosse mais forte que ela. O peso da conversa com Nyx era lentamente erguido de suas costas e seu sorriso era agora espontâneo e sincero.

Phidain acenou com a cabeça, apenas a tempo de ver que Siana já havia saído. A música e as risadas provocavam uma cacofonia quase insuportável, mas seu espírito era como aquele das pessoas ao redor. Não ouviu com clareza o que Siana disse, mas concordou mesmo assim. Seus pés já se moviam ao ritmo da música, e seus lábios ensaiavam um assobio. A música era tradicional, e falava sobre uma donzela que abandonara o futuro marido para casar-se com um centauro.

Quando aprendeu a música, ainda na infância, não identificava o duplo sentido das frases. Agora, na vida adulta, a música o divertia e fazia muitos de seus espectadores rirem. Seus lábios não resistiram e cantaram junto com os outros bardos: 



Era a donzela mais querida

Mais cobiçada era a donzela

Satine era seu nome, era, tão belo!

Tão bela era a donzela!



Para Jonas Pym foi prometida

Do marinheiro, era a donzela

Seu amor era tão puro, tão belo!

Tão doce era a donzela!



Ninguém sabia que era fingida

O casamento ela só protela

A promessa tão nobre, tão bela!

Tão safa era a donzela!



Sem perceber, à floresta foi seguida

Por Jonas Pym, na escapadela

Com o centauro a encontrou, duelo!

Tão falsa era a donzela!



Centauro macho não me intimida

Com Jonas Pym não se amarela

Lute comigo, sinta o martelo!

Na fuga ia a donzela!



Centauro com a lança o pobre liquida

Jonas Pym se foi com a espetadela

Morra, homem, com ela eu me atrelo!

Tão linda era a donzela!



E Jonas Pym, em contrapartida

Do além voltou, que novela!

Viu o casamento, que flagelo!

Com centauro casou a donzela...! 


A música foi ficando mais rápida. As pessoas ao redor começaram a se levantar. As mesas foram sendo empurradas displicentemente e um espaço ao meio, contra todas as expectativas, foi se abrindo. Copos rolaram ao chão e cerveja empoçava-se penetrando entre as ripas de madeira do assoalho. Mãos começaram a se juntar, e uma grande roda foi formada, que acolhia uma roda menor, ambas concêntricas. As rodas começaram a girar em sentidos opostos. A música estava cada vez mais alta e hipnotizante. Phidain estava completamente tomado pela animação, mas Siana conseguia vislumbrar um pouco da realidade. 


Para Jonas Pym foi prometida

Do marinheiro, era a donzela

Seu amor era tão puro, tão belo!

Tão doce era a donzela!



Estava se divertido, entre um meio orc e um outro meio elfo na roda mais externa. Quanto mais rápido a roda girava, mais Siana tinha a sensação de que aquilo não poderia ser natural. Phidain rodava, compensando suas pernas curtas movendo-as duas vezes mais rápido. Siana conseguiu soltar-se da roda, e as mãos do meio orc e do meio elfo se juntaram quase instantaneamente. A música continuava se repetindo, com o tempo ficando cada vez mais frenético. 



Centauro macho não me intimida

Com Jonas Pym não se amarela

Lute comigo, sinta o martelo!

Na fuga ia a donzela!



Siana contornou a roda, que já quase não permitia que as feições dos dançarinos fossem distinguidas. 

Ao centro da roda interna, uma luz vermelha começou a formar um anel, inicialmente muito fraco e translúcido, mas que em alguns segundos já brilhava como o fogo. 


E Jonas Pym, em contrapartida

Do além voltou, que novela!

Viu o casamento, que flagelo!


O centro brilhou mais, e então a luz pareceu concentrar-se, como se implodisse.


Com centauro casou a donzela...! 


Após o último verso, a música, que até então se repetia, foi interrompida abruptamente. Um som que parecia um estalo que antecederia um relâmpago tomou a sala. A luminosidade que implodia estourou, fazendo aparecer o draconato, que saudou os presentes com os braços para cima e uma ruidosa gargalhada.

Parecendo-se desvencilhar-se de um feitiço, Phidain, junto a todos os presentes, aplaudiu o truque veementemente, seus olhos arregalados de espanto e prazer. Suor escorria agora de todas as testas, não só mais a do pobre e franzino taverneiro. 

Siana avaliava silenciosamente o que havia acontecido. As pessoas começaram a se dispersar, grande parte delas se dirigindo à passagem central. Algumas rearranjaram as mesas de forma desleixada e sentaram, ainda ofegantes. Mais cervejas foram pedidas. 

A barda dirigiu-se ao seu mestre, ainda desconcertada. Ele bebia uma cerveja que provavelmente não era dele a grandes goles.

“Puxa, Siana, mas que sede! Parece que eu poderia engolir o mar inteiro e os navios junto, tal minha sede de Kraken!”

“Krakens provavelmente não sentem sede, Phidain”, respondeu ela, séria. “O que aconteceu aqui?”

“Como assim? Dançamos! E como eu não dançava desde a juventude!”

“Eu não consigo compreender como esta dança pode ser normal. Fiquei um pouco preocupada com o comportamento súbito das pessoas.”

“Preocupada? Menina, solte essas amarras, você parece tão retraída quanto um elfo com prisão de ventre!”
“Por favor, não ofenda metade de minha ancestralidade, Phidain.”, disse Siana, finalmente abrindo um sorriso amedrontado.

“Ha ha ha ha! Certo! Não se preocupe, pequena! Da próxima vez, tente apenas se divertir!”

As pessoas foram esvaziando a sala cada vez mais. Em menos de uma hora, viram-se sozinhos, com apenas o taverneiro e o draconato, que bebericava uma caneca enquanto observava uma das cabeças de dragão. Quando ele percebeu que apenas uma meia elfa e um halfling haviam restado, o draconato decidiu abordá-los. 

“Espero que tenham se divertido esta noite!”

“Oh sim, sim, SIM! Muito obrigado, senhor Phalos! É uma enorme honra poder compartilhar de sua enorme bondade e talento!”, disse Phidain, recobrando a euforia recuperada durante a hora de descanso que tiveram. 

“O prazer é todo meu, senhor Phalos! Sua taverna é realmente… impressionante.”, disse Siana, tentando parecer calma. 

Phidain observou a pupila de soslaio e notou, curiosamente, que a presença e comportamento de Phalos desconcertavam Siana muito mais do que a aura amedrontadora e opressiva de Nyx. Mesmo que a feiticeira estivesse banhada em polidez e sarcasmo educado, seus olhos eram cruéis e insanos. Phalos parecia infantil e afetado, e sua personalidade exagerada pareciam fazer Siana perder-se. O mestre lamentou, preocupando-se com o sucesso de sua pupila. Afinal, bardos têm como dever provocar o êxtase, a felicidade e soltar amarras; Siana, por sua vez, parecia mais e mais inteiramente constrita, nervosa e profundamente apavorada.

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