Randal já estava há uma hora abraçado aos corpos inertes de
sua esposa e filha. As lágrimas já haviam cessado, mas a expressão de desespero
ainda permanecia estampada em seu rosto.
Navere
decidiu que não suportava mais aquilo.
“Randal.
Elas se foram. Precisamos ir embora.”, falou, abaixando-se e tocando no ombro
de Randal.
“Não vou
deixá-las aqui”, respondeu o mercenário com a voz baixa e rouca. “É minha
família.”
“Nós
sabemos, Randal. Mas... é muito perigoso ficar aqui.”, disse Askáth.
“Não.”
“E se nós
fizéssemos um enterro digno para elas?”,
interrompeu Thaal.
“Aqui?
Nesse lugar infernal?”
“Eu posso
abençoar o solo aonde vamos colocá-las.”, disse Thaal.
“Eu... acho
que isso seria justo.”, Randal finalmente cedeu.
Ele
permaneceu ali, abraçado aos corpos decrépitos delas por mais alguns minutos,
enquanto os outros abriam duas covas do lado de fora da casa. Utilizando paus e
outros destroços encontrados nas outras construções, os outros quatro demoraram
bastante tempo para conseguirem cavar fundo o suficiente.
De uma das
casas, Thaal resgatou dois lençóis que talvez tenham sido brancos um dia, mas
atualmente estavam cobertos de fuligem e esburacados por traças. Ainda assim,
foi o melhor que puderam fazer.
Enquanto
Navere, Askáth e Desmond terminavam as covas, Thaal ajudou Randal a se
levantar. Deitaram os corpos no chão, ajeitando os cabelos e os farrapos de
roupas. Estenderam os lençóis, acomodando as duas de forma a enrolar o lençol
por todo o corpo. Por fim, antes de cobrirem os rostos, Thaal iniciou uma
bênção em cada uma delas. Ele ajoelhou e começou a orar silenciosamente ao lado
dos dois cadáveres.
Navere
entrou silenciosamente de volta na sala da casa de Randal. O bardo estava muito
sujo de terra negra, que permanecia aderida à pele dele por causa da umidade do
lugar.
“Está
pronto”, disse ele, baixa e respeitosamente.
Thaal
levantou a cabeça e acenou. Eles voltaram para dentro, tomaram os corpos nas
mãos, Askáth e Desmond levando Lana e Navere e Thaal levando Sarah. Depositaram
os dois cadáveres ao lado de cada uma das covas.
Thaal
iniciou: “Estas almas foram levadas de forma cruel e injusta. Que Torm abra as
portas do paraíso para que elas possam viver eternamente em paz.”
“Que elas
possam desfrutar de dias quentes e fartura, pores do sol eternos e campos
floridos onde se deitar”, continuou.
“Que Torm e
todos os outros deuses bondosos as acolham na vida eterna, onde aguardarão por
Randal quando chegar a sua hora. Eu abençoo este solo que as receberá para o
descanso eterno. Eu abençoo estas almas para que sigam em paz.”, disse ele.
Randal
caminhou até Lana. Pegou a ponta do lençol que ainda estava aberta,
posicionada, e a colocou sobre o rosto da esposa morta. Tocou sua testa através
do tecido. Levantou-se e fez o mesmo com a filha.
Utilizando
alguns trapos longos e pedaços de corda que recuperaram das casas, desceram
cuidadosamente ambos os corpos para dentro das covas recém-cavadas. Enquanto
Randal ainda observava em silêncio e Thaal permanecia rezando, Desmond, Askáth
e Navere cobriram as covas com a terra que tinham tirado. Com longos pedaços de
madeira marcaram as covas, deixando que os toscos marcadores guardassem apenas
o primeiro nome de cada uma delas gravado na madeira.
Randal
parecia um pouco mais calmo e conseguiu se afastar das tumbas assim que Thaal o
abraçou e caminhou lentamente para fora da cidade.
Já estava
anoitecendo e eles precisavam decidir o que fariam. Sentaram-se numa pequena clareira
no bosque e acenderam uma fogueira.
“Precisamos
conversar friamente”, disse Desmond. “Eu só sei que estamos em Shadowfell e que
meus amigos estão em um lugar chamado Evernight.”
“Eu não sei
nem o que você quer dizer com estamos em
Shadowfell”, disse Askáth.
“Shadowfell
é como um espelho distorcido de Faerûn. Esta aqui é Hlath... ou a gêmea dela
nesta dimensão profana. Não há como sair daqui... e eu não tenho ideia de como
chegamos. Por isso, Randal...”, disse ele, inseguro e abaixando o tom da voz,
como se falasse carregado de vergonha, “talvez aquelas nem fossem a sua Sarah e
Lana.”
Randal
arregalou os olhos. Levantou-se de supetão, atravessou o círculo que tinham se
posto e acertou Desmond com um soco muito forte no rosto. “Você... me diz isso... AGORA???”
“SE ACALME,
RANDAL!”, gritou Desmond, limpando o sangue do canto da boca. “Eu não sei! Eu
não sei de nada... o que sei que é que este é um lugar maldito e estamos
absolutamente perdidos de termos vindo parar aqui.”
“Se aquela
não era minha família, Desmond... eu não sei como você pode ter sido cruel assim
e ter deixado que eu passasse por tudo aquilo.”
“Aquela ERA
sua família! E não era... entende?”
“Não.”, ele
respondeu, tentando recuperar a calma.
“Bem, não
temos tempo para isso agora, já nos expusemos muito ficando aqui. Precisamos de
abrigo.”, disse Desmond, atiçando o fogo com um graveto. A atmosfera gelada e úmida
não ajudava a manter o fogo aceso e o corpo deles quente. Mesmo a uma distância
muito pequena da fogueira, eles ainda continuavam com frio.
“Acho que
esta noite estamos presos aqui. E este lugar não parece nada seguro.”, disse
Thaal.
“Não parece
porque não é mesmo.”, respondeu Navere. Em sua voz, a melancolia era flagrante.
“Eu... não acho que tenha nada que possamos fazer. Vamos morrer aqui.”
“Não, não
vamos. Vamos agir e resolver essa encrenca”, respondeu Askáth, um pouco mais
esperançoso.
“Não vamos.
Acho inclusive que eu deveria acabar com isso agora mesmo”, disse Navere, observando
o brilho da fogueira na lâmina da adaga que tinha nas mãos.
“Nem pense
nisso!”, disse Thaal. “Vamos dormir. Em turnos. Eu fico no primeiro. Askáth,
você fica comigo?”, perguntou ele.
Askáth
pareceu surpreso por ter sido o escolhido. Thaal não parecia se sentir à
vontade com a presença dele até agora. Aceitou.
O ladino e
o clérigo não conversaram durante três das quatro horas da vigília. Na última,
depois de ouvirem um barulho e não constatarem perigo após procurarem juntos,
engataram uma conversa banal sobre o que fariam a partir dali.
Randal demorou
mais de uma hora, mas eventualmente a exaustão o levou ao sono. Desmond e Navere
conseguiram dormir, embora várias vezes durante a vigília Thaal tinha flagrado
Navere com os olhos abertos, fitando o céu do mais profundo negro.
O céu
daquele lugar não tinha estrelas. Um negro surreal permeava por entre as nuvens
e a lua minguante alaranjada que estava perto do horizonte, atrás de névoa, não
era capaz de oferecer nenhum tipo de iluminação natural.
Askáth acordou
Navere e Desmond. Concordaram em deixar Randal descansar; ele agora roncava
ruidosamente e parecia precisar de mais descanso do que todos. O resto da noite
passou-se com o silêncio pesando entre eles, sem nem que grilos fossem capazes
de permear a atmosfera de desolação daquele lugar.
Com a
chegada da luz, perceberam que o clima nebuloso era provavelmente a constante. O
sol não era capaz de atravessar as nuvens e não havia radiação atingindo o solo
para que produzisse calor. Mais uma vez, o tempo era frio, úmido e insalubre.
Escolheram
uma direção. Decidiram em grupo que precisavam alcançar a cidade de Evernight,
mas não tinham nenhuma indicação da direção para a qual seguirem.
Quando a
fome ficou forte demais, não sabiam o que comer. Tentaram procurar embaixo de
pedras e buracos por pequenos animais, mas encontraram apenas vermes. Desistiram.
Caminharam
o dia todo, ultrapassando o vale, o rio lodoso, o bosque. Seguiram uma estrada
com pavimentação precária. Do que parecia um dia ter sido uma estrada de cascalho,
sobravam apenas pequenos pedriscos ocasionais, enterrados entre a lama negra do
chão.
Quando
acamparam mais uma vez, a fome era quase insuportável. Os cantis que carregavam,
que tinham levado para a curta expedição ao templo já estavam no fim, mesmo com
o pesado racionamento que estavam fazendo.
Naquela
noite, enquanto Thaal, Randal e Askáth dormiam, Desmond e Navere caçaram vermes
sob as pedras mais próximas do acampamento e os tostaram na fogueira. Os bichos
sibilaram quando a água de dentro do corpo deles ferveu e secou,
transformando-os em pequenos pedaços ressecados e queimados de carne. Engoliram-nos
sem terem tempo nem energia para sentir nojo.
Quando os acordaram,
entregaram alguns vermes torrados a eles, que não questionaram e acabaram
comendo também.
A proteína
dos vermes pareceu mantê-los vivos por tempo suficiente para seguirem viagem. Conseguiram
alcançar um outro vilarejo mais para frente na estrada.
Este
parecia um pouco menos destruído do que o que se assemelhava à cidade de Hlath.
Randal explicou que aquele poderia ser a duplicata da cidade vizinha a Hlath, e
que se fosse, ele conheceria os lugares, quem sabe conseguiriam abrigo ou
comida. Seguindo as instruções dadas por Randal, foram até o pequeno abrigo da
guarda da cidade, onde, segundo o mercenário, haveria um mapa dos arredores.
Ao
entrarem, descobriram que o ambiente parecia quase bem cuidado, apesar de ainda
carregar a atmosfera de perdição do que tinham visto até agora. Na parede, um
mapa rabiscado em tinta negra era confuso e não parecia confiável, mas mesmo
assim, Randal pegou-o, enrolou-o e guardou o pergaminho em sua mochila. Enquanto
observavam os armários de armas da guarda, procurando algo que lhes fosse útil,
ouviram passos. Atrás deles, o som inconfundível de alguém utilizando uma
armadura completa caminhando lentamente denunciou que alguém se aproximava.
Viraram as
cabeças e encararam uma figura de mais de dois metros de altura, muito forte,
que portava no peito sobre a armadura completa o símbolo do Culto do Dragão.
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