quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

37 - A maça, o rubi e a obsidiana

            Siana largou o pergaminho no chão. Ao terminar de recitar os versos em runas antigas da magia, a escrita mágica desapareceu, deixando apenas marcas queimadas no lugar. Era um pergaminho muito bem feito, raríssimo, de uma magia muito poderosa.
            A maga era jovem e inexperiente. Mesmo assim, esta era uma magia tão rara que mesmo os magos mais poderosos ainda se sentiriam sobrepujados pelo poder que ela podia sentir. O tempo havia parado, e ela estava livre.
            Siana correu para a passagem de onde tinha vindo a dracolich e os outros monstros. Pelo mapa, sabia exatamente onde deveria ir. E sabia também que teria de agir muito rapidamente, porque as ações dela seriam extremamente limitadas pela duração da magia.
            Entrando na sala indicada pelo mapa, conseguiu ver o que buscava assim que passou pela porta. Em cima de um pedestal, ao lado de outras gemas gigantescas, estava o rubi que buscava. A gema brilhava pulsando, viva. Emitia calor e um tamborilar baixo, constante, como o ronronar de um gato. Ao lado, em outros pedestais, outras gemas descansavam imóveis, sem brilho. Não pareciam ainda ter recebido a essência de nenhum dragão.
            Siana, enfiando a mão na bolsa que carregava, retirou uma maça pesada, com detalhes em ouro. Empunhando-a acima da cabeça, golpeou fortemente o rubi, estilhaçando-o em infinitos cacos pontiagudos. O tempo voltou a passar normalmente assim que Siana atingira a superfície da gema. Ao redor de Siana, a poeira recomeçou a cair como antes, e a batalha na sala anterior voltou a produzir sons ensurdecedores. À percepção dos outros, Siana tinha desaparecido.
Phidain, ao ver que a maga não estava mais no lugar para onde estava olhando, sabia que esta era sua deixa, como o combinado. Imediatamente, com a rapidez de quem tinha sido um ladino muito experiente, empunhou a besta e atirou a única seta encantada que conseguira. A seta, por causa do ótimo posicionamento de Phidain, acertou em cheio o olho direito da fera. O dragão putrefato urrou mais uma vez, desta vez demonstrando dor. A outra órbita vazia da dracolich fazia com que o monstro parecesse cego, mas ela não parecia ser incapaz de enxergar. Virou-se violentamente, fitando Phidain diretamente, com o focinho a poucos centímetros do rosto do bardo. O olho vazio e o olho perfurado ainda eram capazes de transmitir a fúria do dragão vermelho morto. Em apenas uma fração de segundo, quando Phidain começava a contrair suas pernas para fugir, a bocarra pavorosa se abriu. Junto ao urro veio um sopro de temperaturas impensáveis, que envolveu Phidain em labaredas mortais. Siana ainda abaixava a maça e os cacos ainda caíam no chão quando Phidain tragou a chama, na tentativa nula de gritar.
            Alguns segundos depois, Siana alcançou a porta e começou a correr de volta ao salão, já com o segundo pergaminho nas mãos. A enorme besta pareceu perceber que sua essência tinha sido dissipada da filactéria, e urrou mais uma vez, enfurecido. O ferimento no olho deixava escorrer sangue negro apodrecido, tornando a aparência do monstro ainda mais aterradora.
           
            Siana chegou à passagem altíssima por onde tinha saído do salão. Em vez do dragão morto vivo, a primeira coisa que avistou foi um pequeno corpo carbonizado, exatamente onde Phidain havia se posicionado quando ela saíra.
            Levantou os olhos e alcançou o rosto do dragão, que a havia visto. A dracolich iniciou marcha enfurecida em direção a ela. Siana teve tempo de ler o pergaminho que já estava em sua mão, com apenas uma palavra em língua antiga estava escrita nele a tinta de ouro e desenhos decorativos intrincados nas margens. A única palavra, dita com pesar, por olhos que começavam a se encher de lágrimas observando diretamente o monstro que avançava ferozmente em sua direção pareceu funcionar imediatamente. Sem nenhum aviso, mais nenhum urro, nenhuma resistência, a dracolich simplesmente caiu com os músculos completamente relaxados. A inércia provocada pela velocidade em que se movia fez com que o corpanzil cavasse uma trincheira até que o movimento cessasse, deixando uma série de pedaços de carne apodrecida pela extensão do buraco.
            Se o dragão vivesse e tivesse ainda pupilas, elas estariam dilatadas, imóveis.
            O pergaminho caiu das mãos de Siana, que não conseguia reagir. Deixou seu corpo cair de joelhos, com os olhos ainda fixos no pequeno monte de carne queimada que ela tinha certeza que havia sido Phidain poucos momentos antes.
Os Amlugnehtar e os outros recomeçaram o ataque aos illithids, ao beholder e aos mortos vivos, correndo em direção a eles. Alguns momentos depois, Nyx conseguiu se recuperar o suficiente para se levantar. Criaturas morriam em grandes números nas mãos dos Amlugnehtar e dos outros. Askáth recebeu um largo ferimento no abdômen, mas conseguiu estancar o sangue com as mãos. Sentou-se ao lado de Nyx e esperou por ajuda. Quando Orsin percebeu, correu até ele e fechou o rasgo utilizando sua poderosa magia divina de cura.  Thaal curou ainda em batalha um largo ferimento na perna de Randal, que esguichava sangue.
Siana se levantou, tentando recompor-se e terminar de executar sua parte no plano. De sua bolsa retirou o último pergaminho. Leu em voz alta as pequenas rimas rúnicas. O chão começou a tremer furiosamente, enquanto gigantescos pedaços de rocha flamejante atingiam os grupos de inimigos, esmagando-os e carbonizando-os. Os meteoros pareciam sair do teto do salão, desafiando o senso comum. Por algum motivo provavelmente mágico, os enormes pedregulhos em chamas não atingiram nenhum dos companheiros de Siana, que apenas testemunharam a batalha que travavam terminar abruptamente.
O silêncio que se seguiu era quebrado apenas pelo som das chamas que ainda queimavam nos meteoros caídos. O ambiente estava muito iluminado pela luz alaranjada que vinha das brasas e das chamas produzidas pela magia, tornando a visão da enorme dracolich morta ainda mais sobrenatural. Siana caminhou silenciosamente até o corpo de Phidain, passando por todos os outros no caminho. Ninguém proferiu palavra por muito tempo, apenas sons de respirações ofegantes no ar cheio de fumaça e cheiro de carne queimada. Os mortos vivos que cozinhavam nas chamas produziam um odor insuportável, quase tóxico, pela queima de sua carne podre.
Siana ignorou a dracolich morta, agachando-se ao lado do antigo mestre. Seus restos estavam fumegantes e muito quentes, com partes ainda em brasa. A forma era vagamente humanoide, muito menor do que o halfling havia sido em vida. A maga permitiu-se chorar, soluçante.


Juntos, fizeram o caminho de volta, utilizando a passagem das sombras que ficava a alguns dias de viagem. Todos falaram muito pouco. Siana levava o corpo de Phidain num disco flutuante mágico, enrolado em um cobertor.
Quando alcançaram Águas Profundas finalmente, Siana foi calorosamente recebida pelos pais. Sepultaram Phidain em uma cerimônia simples, que teve seu silêncio quebrado apenas pelas curtas palavras de Navere, finalmente perdoando o mestre morto.
Os Amlugnehtar retomaram a Taverna, insistindo que os outros cinco sempre seriam bem-vindos. A reputação lendária dos Amlugnehtar não foi abalada, mas não receberam nenhum reconhecimento por terem erradicado o Culto em Shadowfell. Em Águas Profundas, muito tempo havia se passado e as atividades do Culto não haviam sido expressivas o suficiente para que fossem notados.
Siana, Askáth, Navere, Randal e Thaal continuaram absolutamente desconhecidos, com apenas a certeza de que aquele tinha sido apenas o primeiro dos horrores que enfrentariam juntos dali para a frente.

FIM

Epílogo

            Enquanto o pequeno gnomo se escondia, ninguém notara. Seu corpo frágil fora imobilizado pelo tempo parado, mesmo que ele não tenha percebido; seus pequenos pés foram sacudidos pelo enorme corpo da dracolich atingindo o chão durante a morte súbita à qual foi submetida; sua compleição pálida fora iluminada pelas chamas dos meteoros.
            Durante tudo isso, o gnomo permanecera absolutamente encolhido, dentro de uma pequena rachadura na parede ao lado da grande passagem.
            Quando tudo terminara, observou os atacantes irem embora lentamente, carregando o corpo do halfling que matara Vellath, o dragão morto-vivo. Finalmente, pôde se esgueirar para fora da pequena rachadura. Conseguiu observar o campo de batalha, o grande salão que tinha servido de palco para a transformação do dragão e que teria abrigado outros sacrifícios, se o Culto não tivesse sido obliterado pelos invasores.
            Apesar de sua aparência, o gnomo era uma criatura extremamente inteligente, que havia sido cuidadosamente treinado para aquele momento. Não acreditava que teria que aplicar seus conhecimentos tão cedo, mas Nabara deixara sua missão detalhada. Nabara aceitara sua natureza svirfneblin como ninguém jamais havia, e respeitara seus costumes e habilidades. O gnomo das profundezas costumava esconder sua cabeça sem cabelos sob um pequeno manto negro. Ao lado de Nabara, suas habilidades necromantes se desenvolveram brilhantemente, e ela havia confiado a ele a mais importante das tarefas.
            Caminhando até o corpo da mestra morta, tentou levantá-la, mas não conseguiu. Mesmo o corpo leve da elfa era pesado demais para o gnomo. Decidiu começar ali mesmo o ritual.
            Sentou-se ao lado do corpo e por mais de duas horas proferiu uma série de rimas em uma língua morta. Se alguém estivesse ali e fosse capaz de compreender os versos alienígenas, teria ouvido cânticos de paz e vingança, de vida e morte, do valor do sangue e do conhecimento.
            De dentro do bolso costurado em seu manto, retirou uma obsidiana lapidada, perfeita e muito brilhante. Sua superfície lisa era negra arroxeada e quase gélida. Pousando a gema sobre o peito de Nabara, permaneceu produzindo as estrofes por mais duas horas.
            Ao final das longas rimas, uma fraca névoa escura emanou do peito de Nabara, penetrando a pedra como se esta sugasse o ar ao seu redor. A gema brilhou, deixando seu interior exposto, com um brilho arroxeado.

            O svirfneblin sorriu largamente quando Nabara abriu os olhos, com as pupilas completamente dilatadas.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

36 - Desatam-se as amarras

            Nyx recebeu ali mesmo os cuidados de Thaal e Orsin. Assim que fora retirada da parede, a perna esfolada começara a sangrar mais. Orsin, o primeiro a ser descido da prisão vertical, não hesitou. O paladino anão dispensou magia e cuidados para si, simplesmente esfregando as mãos onde as amarras estiveram antes e pondo-se a trabalhar. Nyx apenas recobrou a consciência quando Thaal e Orsin produziram magias suficientes para que sua perna recobrasse a pele. Seu corpo nu fora coberto com um manto que Siana vestia. Observava suas novas e extremamente extensas cicatrizes em silêncio. Siana percebeu que mesmo o rosto impassível de Nyx demonstrava medo e desespero, principalmente quando seus olhos alcançaram o pequeno amontoado de pele de sua perna que tinha ficado no chão.
            Orsin, ao ter certeza que Nyx estava fora de perigo, dirigiu-se a Phalos. O bárbaro se recusava a abrir a boca. Askáth e Navere permaneciam ao seu lado, tentando convencê-lo a deixar que Orsin e Thaal avaliassem a extensão dos danos.
            Para Thaal, o processo de cura de todos era muito exaustivo, mas a oportunidade de trabalhar ao lado de alguém tão talentoso como Orsin era de valor inestimável. Quando sua mente se enevoava de cansaço, a benevolência nos olhos e nos gestos do paladino ferido o revigoravam.
            Phalos ainda não obedecia, e Orsin decidiu que ele precisaria de algum tempo. Dirigiu-se a Sonam, enquanto Thaal permaneceu ao lado de Phalos.
            O monge, assim que fora libertado das amarras, recobrou a consciência. Em silêncio, arrancou um pedaço das roupas em frangalhos que haviam restado em seu corpo, enrolou em uma bandagem e amarrou sobre suas órbitas vazias. Seus olhos arrancados foram postos em um canto da sala. À frente deles, Sonam permanecia em posição de meditação.
            Orsin tinha pressa para curar Sonam. Assim que o encontrara, percebera que seus olhos tinham sido arrancados há mais tempo do que as mutilações com os outros, e que as chances de restauração eram muito pequenas. Não se lembrava de quase nada do que acontecera antes de serem encontrados. Não presenciara as agressões com os outros. Suspeitava que os olhos de Sonam tivessem sido arrancados de forma ritualística.
            “Sonam... eu sinto muito”, disse Orsin.
            “Esse é meu destino, paladino. Não se sinta mal.”
            “Ainda existe uma chance... mas você precisa tirá-los da terra, Sonam... a cada minuto, as chances de você recobrar sua visão são cada vez menores...”
            “Eu não recuperarei a visão, Orsin. Este é meu destino. Meu caminho agora será trilhado na escuridão física e na iluminação da alma. Vá, cuide dos outros. Eu estou em paz.”
            Orsin não sentiu necessidade de prolongar a conversa. As chances de conseguir recuperar os olhos do monge eram realmente tão pequenas que talvez fosse menos nocivo que ele não cultivasse falsas esperanças. O paladino desejou internamente que o processo de aceitação da cegueira viesse com calma, constante e com sucesso.
            Voltando a Phalos, Orsin percebera que Thaal, enquanto ele trocara palavras com Sonam, havia conseguido que o bárbaro finalmente abrisse a boca. Examinando mais de perto, o paladino percebeu que os dentes haviam sido arrancados por completo, com raiz e tudo, um a um. Certamente, Phalos passara por um sofrimento sem tamanho. Os dentes não haviam sido perfurados para a confecção tosca do colar, apenas enrolados em um barbante sangrento.
            “Sua boca ainda está sangrando, Phalos. Posso colocar seus dentes de volta. Infelizmente, isso vai ser muito dolorido. Você quer que eu faça assim mesmo?”
            Phalos não tentou produzir som, mas acenou com a cabeça, abrindo mais a boca. Enquanto Thaal desenrolava os dentes do colar, um por um, Orsin foi recolocando-os nos buracos da gengiva do bárbaro. A anatomia diferente do draconato era desafiadora para Orsin, mas ele conseguiu, como se montasse um quebra-cabeças, encaixar todos os dentes exatamente onde estavam antes. Utilizando-se de magia divina complexa e poderosa, restaurou a boca completamente, deixando apenas algumas cicatrizes para trás.
            Phalos agradeceu intensamente o amigo paladino, abraçando-o emocionalmente. Sua alegria durou apenas alguns segundos, quando percebeu que todos haviam sido mutilados e que Sonam, ao contrário dos outros, não ficaria tão bem assim.
            Sonam levantou-se depois de quase duas horas de meditação. Nyx ainda não conversava. Phalos permanecia cabisbaixo. Orsin finalmente estancara seu próprio sangue do ferimento no peito. De todos, era o menos grave. O paladino suspeitava que provavelmente aquele tinha sido só o primeiro ritual.  Ele fora levado de sua cela na mesma hora que Phalos, mas sua mutilação fora conduzida em uma sala separada. Sozinho com apenas um cultista, suas vestes foram arrancadas e com uma adaga pouco afiada, aquele dragão fora desenhado.
            “Eu sinto que podemos ir”, disse Sonam. Seu tom de voz estava diferente. Outrora calado e falando baixo, o monge parecia mais certo de sua própria opinião e participação. A cabeça permanecia erguida.
            “Eu acho que é uma boa ideia. Estamos muito próximos de conseguir finalmente acabar com o Culto. Estão todos bem? Nyx? Você consegue andar?”, perguntou Siana.
            “Estou pronta”, disse ela, finalmente falando depois de tanto tempo em silêncio. Ao contrário de Sonam, Nyx parecia muito abalada. Teve dificuldade em se erguer, manifestando medo de apoiar a perna esfolada no chão. A pele que se formara por cima dos músculos expostos era muito branca, brilhante, como a que se forma depois de uma queimadura extensa. Não era mais uma bela perna, como outrora, mas parecia funcional. Orsin parecia demonstrar pesar, como se se sentisse culpado por não ter conseguido restaurar a beleza de Nyx da mesma forma como restaurou a saúde.
            Todos eles se juntaram. Phidain, Siana, Navere, Thaal, Randal e Askáth, e os Amlugnehtar mais uma vez reunidos, Orsin, Phalos, Desmond, Nyx e Sonam.
            Avançaram em fila, liderados por Siana, que havia estudado o caminho. A sala onde estavam presos os Amlugnehtar parecia ser uma indicada por um “T” no mapa que Siana possuía. A única porta que a sala continha parecia levar a um corredor longo.
            Tentando não se desviar muito do caminho que haviam estudado, entraram em uma das portas no corredor, acertando exatamente o ponto central do caminho que percorreriam dentro da construção. Em várias salas pelas quais atravessaram haviam depósitos de recursos, como comida, valores e até pessoas. Passaram por um grande ambiente repleto de gaiolas grandes, cada uma contendo cerca de dez prisioneiros emaciados, subnutridos e muito pálidos. Seus rostos demonstravam medo profundo e aceitação da morte iminente. Prometeram a todos que voltariam para libertá-los assim que conseguissem parar Nabara e o Culto.
            Siana insistiu para que todos fossem libertados naquele momento, mas Nyx pontuou que não poderiam arcar com o risco de os prisioneiros se comportarem de forma errática, por medo, e alertarem o Culto de alguma forma.
            Durante o trajeto, Desmond teve que assassinar seis guardas. De todos eles, o ladino cortou as gargantas de surpresa, atacando-os por trás sorrateiramente. Os outros não eram mais capazes de sentir mais o choque ao assistir outras pessoas sendo mortas. É como se a vida desses guardas fosse apenas dano colateral, como um arranhão ao fazer um trabalho braçal.
            Sonam se locomovia com fluidez e não parecia estar particularmente abalado pela perda dos olhos. Assim como todos os outros, ele não iniciava conversas e apenas respondia o estritamente necessário. Um olhar desatento não perceberia que o monge tinha uma faixa cobrindo as órbitas vazias.
            Ultrapassaram todas as salas, obstáculos e desvios até chegarem ao salão onde os batedores haviam testemunhado o sacrifício ritual do dragão. Uma grande porta em madeira trabalhada fechava a passagem. A porta parecia nova, e tinha, em baixo relevo, a representação de Tiamat. Nyx sentiu um calafrio que ascendeu da base de sua coluna até sua nuca. Decidiram abrir a porta de súbito.
            O enorme salão correspondia às descrições compostas pelos batedores. O salão tinha o pé direito muito alto e as paredes pouco trabalhadas, parecendo feitas de pedra nua. Ao centro, uma mesa de pedra, como um altar, fazia as vezes de mesa ritualística. A superfície estava suspensa por pedras colocadas como pés da mesa. As descrições não mencionavam nenhum altar, portanto, presumia-se que era uma adição recente. Antes, naquele espaço, o dragão havia sido acomodado durante o ritual de transformação.
            Dentro do salão, sobre a mesa, havia um corpo provavelmente humano. Ao redor da mesa, vários mortos vivos se enfileiravam. À frente deles, diretamente atrás da mesa, estava a elfa dos cabelos muito negros que imaginavam ser Nabara, a atual líder do culto.
            “Afinal, vocês chegaram cedo!”, disse ela.
            Nenhum deles foi capaz de responder.
            “Venham, vamos participar da festa. Tragam nossos anfitriões, nossos convidados de honra chegaram!”, continuou Nabara.
            Um dos mortos vivos atravessou uma grande passagem escura, de mais de dez metros de altura. Enquanto Nabara observava o morto vivo se distanciando, a parte lateral do seu rosto ficara exposta. Nyx não hesitou. De suas mãos, um raio de luz avermelhada e escura, parecendo ser feita de calor puro, atingiu Nabara na mandíbula, pescoço e bochecha direita. O ferimento fumegante deixara expostos ossos, tendões e músculos da face da elfa.
            A elfa emitiu um som agudo e virou-se imediatamente. Nyx foi atingida por energia necrótica concentrada, diretamente no peito. Seu corpo, normalmente pálido, transcendeu a palidez e tornou-se tão branco quanto algodão. Seus olhos perderam o brilho. O ferimento de Nabara se fechava progressivamente enquanto ela mantinha o fluxo de energia, como se sugasse a vitalidade da feiticeira. Quando o feixe de energia finalmente cessou, o corpo de Nyx caiu inerte no chão.
            Ao contrário do que pretendia, Nabara cessou o feixe vampírico não porque seu ferimento havia se curado, mas porque outro lhe fora causado entre as costelas. Utilizando-se da distração causada por Nyx, Desmond se moveu rápida e furtivamente até Nabara, a atingindo pelas costas com a adaga entre as costelas.
            A concentração de Nabara perdeu-se com a dor lancinante, ainda pior do que a que Nyx lhe causara.
            Quando Nyx atacou Nabara, os mortos vivos reagiram. Askáth, Navere, Sonam e Orsin se encarregaram de mantê-los ocupados, acertando as cabeças com setas, flechas e ataques de espada. Sonam parecia seguro o suficiente para permear a pequena horda e acertar múltiplos ataques manuais letais nas cabeças e corpos decrépitos. Desviou de todos os ataques direcionados a ele, permanecendo ileso por ainda mais tempo do que costumava conseguir.
            Nabara perdeu o equilíbrio e deixou seu corpo flácido. Desmond retirou violentamente a adaga do tórax da elfa. Aproveitando a perda de controle de Nabara, Desmond a golpeou mais uma vez. O corpo terminou de cair, morto.
            Assim que Nabara atingiu o chão, de dentro da passagem escura um urro ensurdecedor foi emitido por mandíbulas profanas. Um enorme jato de fogo invadiu o salão, precedendo patas pesadas marchando enraivecidamente em direção a eles.
            O dragão vermelho irrompeu, soprando fogo para todos os lados. Como se estivesse completamente fora de controle, varria o chão com suas labaredas, queimando mortos vivos de seu exército tanto quanto os invasores. Atrás dele, seguiram cultistas, illithids e o próprio monstro que tinham visto na saída do templo, o beholder cego.
            O dragão abocanhou cegamente um punhado de mortos vivos que lutavam com Sonam. Mesmo cego, o monge conseguiu desviar da bocarra apodrecida do dragão, deixando que apenas seis mortos vivos fossem levados entre o dente. O dragão mastigou superficialmente duas ou três vezes, depois terminou de engolir os próprios soldados mortos vivos do culto.  A pele do monstro pendia em abas, pedaços de couro com escamas pendurados fracamente na carne em decomposição. A morte do dragão havia acontecido de forma ritual, mas é como se o processo de putrefação fosse comum, como o que atinge todos os animais. Uma parte do crânio estava exposta, deixando a face do dragão transformado em dracolich ainda mais feroz e desfigurada. Um de seus olhos estava ausente, com o crânio esbranquiçado insistindo em aparecer sob a pele friável. Quando o monstro fazia um movimento violento, pedaços de carne atingiam o chão e os combatentes. A cada ataque, os ossos do dragão tentavam se desprender da carne, como uma borboleta deixando seu casulo.
            Os illithids, o beholder e a dracolich partiram em direção dos Amlugnehtar.  Nyx ainda permanecia caída no chão, inerte. Orsin, continuava cortando cabeças em longas sequências de golpes certeiros, enquanto Sonam corria novamente para perto dos companheiros para protegê-los. Phalos, atacava com a boca recém regenerada, além de cravar a espada em peitos putrefatos de mortos vivos também em sequência memorável de acertos.
            Desmond correu, largando Nabara onde caíra. O reagrupamento era parte do plano. Siana havia desenhado cuidadosamente cada passo daquela batalha, então sabia que agora era a hora que deveriam finalmente acabar com a dracolich, os illithids e o beholder. O único que não se esforçava para se juntar aos outros era Phidain, que se locomovia furtivamente em direção à dracolich. Seus pés hábeis do bardo, outrora ladino, foram capazes de fazê-lo alcançar quase o espaço imediatamente à direita da enorme pata apodrecida do monstro.
            Quando viu todos os companheiros se agruparem ao redor dela, Siana abriu o pergaminho que segurava e leu as runas em voz alta. Enquanto lia, aproveitou uma vírgula para conferir o posicionamento de Phidain.
Imediatamente, após o fonema final da última palavra, o sopro da dracolich em direção aos invasores cessou, como se as chamas congelassem.  Projéteis, raios de energia mágica, correntes de vento pararam no ar. Ninguém respirava, nada se movia. Tudo estava absolutamente quieto, indiscutivelmente silencioso, imensuravelmente imóvel, da poeira do chão até o Plano por completo.

            Exceto Siana.