Randal não estava verdadeiramente
animado com a missão que lhe foi dada.
Entendeu
que Desmond, apesar de já ter usufruído de seus serviços de inteligência e
músculo anteriormente, sentia que ele ainda o considerava incapaz de executar
jornadas perigosas ou de maior relevância.
Apesar
de ter demonstrado reverência na presença de Sonam, Randal não compreendia os
hábitos e motivações do monge. Conta-se que ele desgarrou-se do seu templo em
busca de conhecimento e iluminação. Sua jornada, em grande parte, incluiu os
outros membros de Amlugnehtar. Entretanto, Sonam investiu em diversas
empreitadas absolutamente sozinho, inclusive quando contava com a ajuda incondicional de seus companheiros.
Isto feria quase completamente as convicções de Randal.
Quando
Randal era mais novo, ainda em Hlath, teve uma criação convencional, com seus
pais e irmãos em uma pequena casa. Seus pais produziam pães para a venda; por
isto, Randal teve sempre a casa farta, tanto de comida quanto de pessoas. Ele e seus irmãos ajudavam na confecção dos
pães, que sua mãe trançava das mais variadas formas. O aroma do pão no forno à
lenha é uma das quatro lembranças mais vívidas que Evenwood guarda em sua
memória.
Quando tornou-se um rapazote um pouco mais
desenvolvido, resolveu alistar-se para a guarda da cidade. Seu pai mostrou-se
incrivelmente orgulhoso. Costumava expor a coragem e vivacidade do filho mais
velho sem falsa modéstia para toda a vizinhança. Randal sentiu-se acanhado com
a demonstração de orgulho de seu pai, mas na vida adulta percebeu que o apoio
demonstrado por ele o moldou positivamente.
Sua
mãe, entretanto, parecia muito amedrontada com a possibilidade de ter seu
primogênito exposto a riscos, mesmo durante os treinamentos. Recebera
treinamento em diversas técnicas de combate, mas frequentemente expunha (ainda
que orgulhosamente) cortes e hematomas decorrentes dos treinos e lutas.
Os
códigos de honra da guarda de Hlath não eram particularmente rígidos, mas
Randal empunhava a espada com temor e respeito à bandeira. Seu uniforme com
faixas vermelhas e amarelas sobre a armadura de placas metálicas estava sempre
impecável. Apesar do gênero masculino, sua mãe transmitira a Randal todas as
habilidades e conceitos de higiene, cozinha, limpeza e organização do ambiente.
Independente,
Evenwood sentiu que sua casa, cheia de irmãos que alcançavam a adolescência
estava ficando apertada demais. Com os conhecimentos que sua mãe lhe dera e a
segurança que o emprego na guarda lhe provinha, Evenwood decidira morar
sozinho.
Em
um terreno próximo à casa de seus pais, com a ajuda de seus dois irmãos mais
novos, ergueu uma pequena e sólida casa de pedra. Mudou-se para lá no dia em
que completava dezenove anos.
De
personalidade reclusa, mas agradável, Evenwood raramente participava de ocasiões
sociais. Apesar disso, sua casa estava situada às bordas de uma praça, que
costumava servir de espaço para feiras, comemorações, mercados itinerantes e
até alguns espetáculos.
Em
um final de tarde de primavera, caminhava de volta para casa sem pressa, depois
de um dia tranquilo de trabalho. O ar ainda estava gelado do inverno recém
findado, mas suas narinas foram abalroadas por um intenso aroma floral quando
ele se aproximou da praça. Ele conseguira desvencilhar-se da patrulha na feira
da Primavera, mas morava bem em frente a onde ela estava montada. Cruzou a praça sem prestar muita
atenção às barracas de flores.
Ele
não se sentia absolutamente alheio à feira, mas não se interessava
verdadeiramente pela multidão gargalhante e colorida. Quase à frente de sua
casa, um mastro era o meio de uma dança animada que trançava fitas coloridas no
pau. Com uma bela trança clara entremeada por flores primaveris, Lana girava, gargalhando em seu vestido leve,
verde como os olhos dela. Os pés descalços sujos da terra vermelha completavam
a imagem quase angelical.
Mais
ainda do que o dia em que se casaram, Randal tinha como segunda lembrança vívida
esta primeira vez que a vira, todo o frescor juvenil tornando-a perfeita. Ainda, depois de anos dividindo a mesma cama,
Randal conseguia sentir em seus cabelos o aroma das flores que haviam sido
trançadas ali naquele dia.
Seus
pais estiveram presentes no casamento, mas não estavam vivos para acompanhar o
nascimento da primeira neta. Uma gripe levara a mãe de Evenwood. Pouco depois,
seu pai, ainda devastado pela perda da esposa, morreu ao cobrar uma dívida
antiga. O devedor decidiu que uma facada no abdômen poderia resolver seu
problema financeiro mais efetivamente do que tentar quitá-lo.
Sarah
nasceu, carregando os olhos verdes da mãe e o olhar profundo do pai. Uma menina
saudável, bela e sagaz que cresceu muito rápido, muito mais velozmente do que os
pais puderam perceber. Sarah aos três anos abraçando as pernas da mãe enquanto
Lana estendia lençois muito brancos no quintal enquanto a brisa insistia em atrapalhá-la
é a terceira lembrança vívida de Evenwood.
Como todo pai,
Randal ainda via Sarah como uma criança quando ela completou quinze anos,
comemorando da mesma forma que a mãe; com flores trançadas no cabelo e pau de
fitas.
Nesta mesma época,
a guerra comercial com Iljak tomou proporções grandes. A companhia liderada por
Randal recebeu a informação de que deveria conter uma emboscada que estava
sendo planejada pela outra cidade. Iljak, apesar do pacifismo de Hlath, era uma
cidade beligerante e um pouco desonesta em seus ataques. A informação era de que uma grande companhia
de elite de Iljak tentava flanquear a cidade, vindas de adjacências das duas
mais importantes estradas. Deslocando quase toda a força expressiva do exército,
as companhias de elite e de infantaria de Hlath foram enviadas pelo comandante
para surpreenderem as companhias inimigas.
Ao deixarem a
cidade desprotegida, o verdadeiro exército de Iljak aguardava em outro lugar, já
muito mais próximo da cidade. Com forças ainda recebidas por mar, Iljak causou danos
irreparáveis em Hlath, levando centenas de vidas das mulheres, crianças e idosos
deixados para trás quando as companhias foram deslocadas.
Assim que chegaram
ao local onde estariam as tropas se preparando para a emboscada, as companhias
perceberam que haviam recebido falsas informações. Os seis dias de viagem de
ida e volta custaram a Hlath quase todas as vidas que ficaram para trás. A quarta
memória vívida que Evenwood guarda é a visão de um pedaço de tecido verde, rasgado
e preso à porta de sua casa. Nele, uma mancha de sangue esguichado já seco tornava
a visão de desolação real e tangível.
O silêncio
mais absoluto imperava na cidade quando Randal começou a vasculhar o que
restara de sua casa. Ao contrário da
maioria de seus companheiros de Guarda, não encontrou sua esposa e filha mortas.
Sua casa havia sido incendiada, mas aparentemente a chuva apagou o fogo antes
que ele causasse muitos danos. Havia uma parede caída, móveis destruídos, mas a
casa ainda estava de pé. Decidiu procurar
em outros lugares frequentados por sua família.
Dentre os
destroços da casa de seus pais, identificou dois de seus irmãos. Uma outra irmã
jazia morta em sua própria casa, também vizinha dos pais como a dele. Os dois
filhos bebês dela ainda em seus braços, decompostos e inumanos. Seu cunhado, ao
ver a esposa com o crânio exposto e deitado em uma poça de sangue putrefato,
pareceu enlouquecer ali mesmo. Tomou um de seus filhos no colo. Seu grito de
pesar pôde ser ouvido a centenas de metros de distância.
Randal
e alguns dos seus companheiros persistiram em procurar rastros, culpados, motivos.
Eram poucos demais para a tarefa. Alguns meses depois, ainda sem respostas,
moveram-se para um vilarejo próximo que havia resistido. Seus companheiros e
ele passaram a aceitar trabalhos como mercenários. Para Randal, eram uma fonte
de renda fácil, em que ele podia utilizar suas habilidades e força. Além disso,
se mostravam uma maneira eficaz de desviar a mente do horror que vivera; outros
amigos haviam tido a chance de enterrar suas famílias. Evenwood não tinha tanta
sorte. Em cada esquina, atrás de cada árvore, em cada cabeleira feminina vista
pelas costas, Randal enxergava sua esposa. Em qualquer criança brincando, independente
da idade, via sua filha.
Seu
temor máximo se concretizara lentamente, quando ele esqueceu do rosto das duas,
e só conseguia se lembrar se incluísse a família em alguma memória real; se
tentasse lembrar de como era a risada, a voz e o rosto pela manhã de sua
esposa, era o branco absoluto. De sua filha, ainda lembrava da voz, mas tinha
muitos problemas em reconhecer a altura e a idade em que ela realmente se
encontrava.
O
trauma levara de Randal a capacidade de rir verdadeiramente. Sorria, claro.
Conversava, bebia, ia a bares, tinha amigos. Focava-se em suas missões e
tentava viver um dia depois do outro. Procurava aceitar que não veria jamais
sua família e não teria a chance de dar-lhes um enterro digno.
Sua
mácula, então, o tornava incapaz de entender como Sonam pôde deliberadamente
abandonar seus iguais para expor-se a tamanho risco. Randal não tinha mais nada
a perder; aos olhos dele, Sonam tinha tudo. Quando de fato teve seu templo
atacado, o monge estava tão longe que não conseguiu mais do que vasculhar
entulho. Ele tinha tudo a perder e perdeu, e agora enviava um desconhecido para
recobrar qualquer lembrança que poderia ter restado.
Randal
ponderou que se tivesse a chance novamente, nunca mais abandonaria sua família,
nem mesmo por um dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário