terça-feira, 10 de novembro de 2015

10 – Lana e o Vestido Verde

Randal não estava verdadeiramente animado com a missão que lhe foi dada.
                Entendeu que Desmond, apesar de já ter usufruído de seus serviços de inteligência e músculo anteriormente, sentia que ele ainda o considerava incapaz de executar jornadas perigosas ou de maior relevância.
                Apesar de ter demonstrado reverência na presença de Sonam, Randal não compreendia os hábitos e motivações do monge. Conta-se que ele desgarrou-se do seu templo em busca de conhecimento e iluminação. Sua jornada, em grande parte, incluiu os outros membros de Amlugnehtar. Entretanto, Sonam investiu em diversas empreitadas absolutamente sozinho, inclusive quando contava com a  ajuda incondicional de seus companheiros. Isto feria quase completamente as convicções de Randal.
                Quando Randal era mais novo, ainda em Hlath, teve uma criação convencional, com seus pais e irmãos em uma pequena casa. Seus pais produziam pães para a venda; por isto, Randal teve sempre a casa farta, tanto de comida quanto de pessoas.  Ele e seus irmãos ajudavam na confecção dos pães, que sua mãe trançava das mais variadas formas. O aroma do pão no forno à lenha é uma das quatro lembranças mais vívidas que Evenwood guarda em sua memória.
                 Quando tornou-se um rapazote um pouco mais desenvolvido, resolveu alistar-se para a guarda da cidade. Seu pai mostrou-se incrivelmente orgulhoso. Costumava expor a coragem e vivacidade do filho mais velho sem falsa modéstia para toda a vizinhança. Randal sentiu-se acanhado com a demonstração de orgulho de seu pai, mas na vida adulta percebeu que o apoio demonstrado por ele o moldou positivamente.
                Sua mãe, entretanto, parecia muito amedrontada com a possibilidade de ter seu primogênito exposto a riscos, mesmo durante os treinamentos. Recebera treinamento em diversas técnicas de combate, mas frequentemente expunha (ainda que orgulhosamente) cortes e hematomas decorrentes dos treinos e lutas.
                Os códigos de honra da guarda de Hlath não eram particularmente rígidos, mas Randal empunhava a espada com temor e respeito à bandeira. Seu uniforme com faixas vermelhas e amarelas sobre a armadura de placas metálicas estava sempre impecável. Apesar do gênero masculino, sua mãe transmitira a Randal todas as habilidades e conceitos de higiene, cozinha, limpeza e organização do ambiente.
                Independente, Evenwood sentiu que sua casa, cheia de irmãos que alcançavam a adolescência estava ficando apertada demais. Com os conhecimentos que sua mãe lhe dera e a segurança que o emprego na guarda lhe provinha, Evenwood decidira morar sozinho.
                Em um terreno próximo à casa de seus pais, com a ajuda de seus dois irmãos mais novos, ergueu uma pequena e sólida casa de pedra. Mudou-se para lá no dia em que completava dezenove anos.
                De personalidade reclusa, mas agradável, Evenwood raramente participava de ocasiões sociais. Apesar disso, sua casa estava situada às bordas de uma praça, que costumava servir de espaço para feiras, comemorações, mercados itinerantes e até alguns espetáculos.
                Em um final de tarde de primavera, caminhava de volta para casa sem pressa, depois de um dia tranquilo de trabalho. O ar ainda estava gelado do inverno recém findado, mas suas narinas foram abalroadas por um intenso aroma floral quando ele se aproximou da praça. Ele conseguira desvencilhar-se da patrulha na feira da Primavera, mas morava bem em frente a onde ela estava montada. Cruzou a praça sem prestar muita atenção às barracas de flores.
                Ele não se sentia absolutamente alheio à feira, mas não se interessava verdadeiramente pela multidão gargalhante e colorida. Quase à frente de sua casa, um mastro era o meio de uma dança animada que trançava fitas coloridas no pau. Com uma bela trança clara entremeada por flores primaveris, Lana  girava, gargalhando em seu vestido leve, verde como os olhos dela. Os pés descalços sujos da terra vermelha completavam a imagem quase angelical.
                Mais ainda do que o dia em que se casaram, Randal tinha como segunda lembrança vívida esta primeira vez que a vira, todo o frescor juvenil tornando-a perfeita.  Ainda, depois de anos dividindo a mesma cama, Randal conseguia sentir em seus cabelos o aroma das flores que haviam sido trançadas ali naquele dia.
                Seus pais estiveram presentes no casamento, mas não estavam vivos para acompanhar o nascimento da primeira neta. Uma gripe levara a mãe de Evenwood. Pouco depois, seu pai, ainda devastado pela perda da esposa, morreu ao cobrar uma dívida antiga. O devedor decidiu que uma facada no abdômen poderia resolver seu problema financeiro mais efetivamente do que tentar quitá-lo.
                Sarah nasceu, carregando os olhos verdes da mãe e o olhar profundo do pai. Uma menina saudável, bela e sagaz que cresceu muito rápido, muito mais velozmente do que os pais puderam perceber. Sarah aos três anos abraçando as pernas da mãe enquanto Lana estendia lençois muito brancos no quintal enquanto a brisa insistia em atrapalhá-la é a terceira lembrança vívida de Evenwood.
Como todo pai, Randal ainda via Sarah como uma criança quando ela completou quinze anos, comemorando da mesma forma que a mãe; com flores trançadas no cabelo e pau de fitas.
Nesta mesma época, a guerra comercial com Iljak tomou proporções grandes. A companhia liderada por Randal recebeu a informação de que deveria conter uma emboscada que estava sendo planejada pela outra cidade. Iljak, apesar do pacifismo de Hlath, era uma cidade beligerante e um pouco desonesta em seus ataques.  A informação era de que uma grande companhia de elite de Iljak tentava flanquear a cidade, vindas de adjacências das duas mais importantes estradas. Deslocando quase toda a força expressiva do exército, as companhias de elite e de infantaria de Hlath foram enviadas pelo comandante para surpreenderem as companhias inimigas.
Ao deixarem a cidade desprotegida, o verdadeiro exército de Iljak aguardava em outro lugar, já muito mais próximo da cidade. Com forças ainda recebidas por mar, Iljak causou danos irreparáveis em Hlath, levando centenas de vidas das mulheres, crianças e idosos deixados para trás quando as companhias foram deslocadas.
Assim que chegaram ao local onde estariam as tropas se preparando para a emboscada, as companhias perceberam que haviam recebido falsas informações. Os seis dias de viagem de ida e volta custaram a Hlath quase todas as vidas que ficaram para trás. A quarta memória vívida que Evenwood guarda é a visão de um pedaço de tecido verde, rasgado e preso à porta de sua casa. Nele, uma mancha de sangue esguichado já seco tornava a visão de desolação real e tangível.
O silêncio mais absoluto imperava na cidade quando Randal começou a vasculhar o que restara de sua casa.  Ao contrário da maioria de seus companheiros de Guarda, não encontrou sua esposa e filha mortas. Sua casa havia sido incendiada, mas aparentemente a chuva apagou o fogo antes que ele causasse muitos danos. Havia uma parede caída, móveis destruídos, mas a casa ainda estava de pé.  Decidiu procurar em outros lugares frequentados por sua família.
Dentre os destroços da casa de seus pais, identificou dois de seus irmãos. Uma outra irmã jazia morta em sua própria casa, também vizinha dos pais como a dele. Os dois filhos bebês dela ainda em seus braços, decompostos e inumanos. Seu cunhado, ao ver a esposa com o crânio exposto e deitado em uma poça de sangue putrefato, pareceu enlouquecer ali mesmo. Tomou um de seus filhos no colo. Seu grito de pesar pôde ser ouvido a centenas de metros de distância.
                Randal e alguns dos seus companheiros persistiram em procurar rastros, culpados, motivos. Eram poucos demais para a tarefa. Alguns meses depois, ainda sem respostas, moveram-se para um vilarejo próximo que havia resistido. Seus companheiros e ele passaram a aceitar trabalhos como mercenários. Para Randal, eram uma fonte de renda fácil, em que ele podia utilizar suas habilidades e força. Além disso, se mostravam uma maneira eficaz de desviar a mente do horror que vivera; outros amigos haviam tido a chance de enterrar suas famílias. Evenwood não tinha tanta sorte. Em cada esquina, atrás de cada árvore, em cada cabeleira feminina vista pelas costas, Randal enxergava sua esposa. Em qualquer criança brincando, independente da idade, via sua filha.
                Seu temor máximo se concretizara lentamente, quando ele esqueceu do rosto das duas, e só conseguia se lembrar se incluísse a família em alguma memória real; se tentasse lembrar de como era a risada, a voz e o rosto pela manhã de sua esposa, era o branco absoluto. De sua filha, ainda lembrava da voz, mas tinha muitos problemas em reconhecer a altura e a idade em que ela realmente se encontrava.
                O trauma levara de Randal a capacidade de rir verdadeiramente. Sorria, claro. Conversava, bebia, ia a bares, tinha amigos. Focava-se em suas missões e tentava viver um dia depois do outro. Procurava aceitar que não veria jamais sua família e não teria a chance de dar-lhes um enterro digno.
                Sua mácula, então, o tornava incapaz de entender como Sonam pôde deliberadamente abandonar seus iguais para expor-se a tamanho risco. Randal não tinha mais nada a perder; aos olhos dele, Sonam tinha tudo. Quando de fato teve seu templo atacado, o monge estava tão longe que não conseguiu mais do que vasculhar entulho. Ele tinha tudo a perder e perdeu, e agora enviava um desconhecido para recobrar qualquer lembrança que poderia ter restado.

                Randal ponderou que se tivesse a chance novamente, nunca mais abandonaria sua família, nem mesmo por um dia.

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