segunda-feira, 30 de novembro de 2015

50.000!

Não vou mentir e dizer que não achei que fosse conseguir. Eu sou teimosa que nem um bode e quando enfiei isso na cabeça eu não ia conseguir NÃO fazer.

Então, eu escrevi um livro. Contra todas as minhas crenças, consegui escrever algo maior do que um conto. Sinceramente, ainda não terminei. 50000 foi pouco e estou nos momentos finais, mas ainda não consegui concluir.

E isso é maravilhosamente ótimo. A ideia do NaNoWriMo não é que seja bom. É que seja feito. E foi.
Infelizmente não é publicável, não é bom e não é pra todo mundo (é feito grande parte de conteúdo gerado em situações muito estranhas), então minha conquista serviu para me provar que eu posso SIM desenvolver uma história longa, cheia de personagens, lugares, e... coisos (gastei o vocabulário todo, HAHAH).


Valeu pelo apoio, gente. Emoticon smile Sem vocês eu não teria conseguido, Pedro, Kiwi , Pada, Breno e Thadeu. 


30 – Apenas quatro

            Detrás da enorme figura vestida em armadura completa, saíram mais três humanoides. Um deles estava vestido com roupas de viagem, em tons vermelhos e marrons. Em seu peito, pendurado em uma tira de couro negro, exibia um pingente com a insígnia do Culto do Dragão. A cor das roupas era muito destoante do resto do ambiente, que parecia ter sido roubado de todas as cores exceto branco, negro e cinzento. Os outros dois, entretanto, vestiam-se com trapos decrépitos e restos de armaduras. Sob as roupas esfarrapadas, a carne deles estava ainda mais podre, acinzentada. Nas cabeças, cabelos negros e compridos muito embaraçados encimavam os rostos monstruosos como coroas. As órbitas, em vez de abrigar olhos, tinham apenas espaços vazios muito profundos.
            “Ora ora, que encontramos aqui!”, disse o cultista. Era um elfo, diferente da maioria dos outros cultistas que tinham encontrado. Em suas costas, uma aljava grande carregava dezenas de flechas com penas negras e suas mãos levantavam um arco armado na direção deles; a flecha estava posicionada, mas ele ainda não puxava o cordão. “Vejam, vejam! O pedaço que faltava daqueles nojentos!”, falou, olhando diretamente para Desmond.
            Desmond observava de olhos arregalados. Askáth, Navere, Thaal e Randal estavam com muito medo, mas o ladino experiente parecia compreender com mais clareza o que significava a presença daqueles membros do culto naquele lugar. Askáth e Navere sacaram as adagas e apontaram para os intrusos. O cultista e os mortos vivos não esboçaram reação.
            “E estes... são aqueles que também estavam atrapalhando tudo?”, falou um dos mortos vivos.
            “É... são aqueles que fizeram aquela desgraça no templo. Temos que levar todos.”, respondeu o outro.
            “Certo... vamos. O caminho é longo.”, disse o cultista, com um tom autoritário e definitivo.
            “Eu me rendo.”, disse Desmond, em voz baixa.
            “O que disse, ladrãozinho?”, perguntou o primeiro morto vivo, com os dentes apodrecidos e pontudos se expondo sob um sorriso maligno.
            “EU ME RENDO!”, repetiu o ladino, gritando.
            “Mas você não entendeu... não é uma opção sua. Nós estamos levando vocês de qualquer jeito, há há há há...”
            “Eu sei que vocês precisam de mim vivo”, disse Desmond. Rapidamente sacando uma das adagas de sua cintura, levou-a à própria garganta. “Eu posso acabar com isso agora mesmo e vocês não vão poder me sacrificar... e eu sei o quanto sou valioso para vocês. Afinal, sou Amlugnehtar, matador de dragões, aquele que impediu Tiamat de retornar”
            Os três membros do culto ficaram muito surpresos e não foram capazes de falar nada. A figura gigantesca de armadura estava tão imóvel que nem movimentos de inspiração e expiração eram perceptíveis sob o peitoral da armadura.
            “Eu vou com vocês, sem lutar.”, continuou Desmond, “ se vocês os deixarem ir embora.”
            “Desmond, Desmond... você é tão engraçado!”, disse um dos mortos vivos. “Acha mesmo que você vale tanto assim para nós? Você é apenas carne!”
            “Não, Desmond! Não faça isso!”, alarmou-se Thaal.
            “A escolha é de vocês”, respondeu Desmond, enfiando a ponta da adaga na carne macia de seu pescoço, fazendo com que um filete de sangue escorresse e alcançasse sua camisa.”
            “Não!”, gritou o cultista elfo, interrompendo o movimento da mão de Desmond, que já iniciava o alargamento do ferimento. O arqueiro profano pareceu legitimamente preocupado com a segurança de Desmond. “Está certo. Vamos embora. Seus amigos podem ficar aqui.”
            Sem mais palavra, Desmond deixou que amarras mágicas fossem envolvidas ao redor de seu corpo. A corda dourada brilhava pouco naquele ambiente escuro, mas não havia dúvida de que ele não seria capaz de escapar. As amarras encantadas só soltariam se aquele que as amarrou permitisse.
            Enquanto a enorme figura de armadura o levantava de forma bruta pelas amarras, os companheiros de Desmond permaneciam desconcertados, incapazes de proferir palavra. Desmond olhou para trás mais uma vez, enquanto os mortos vivos o empurravam para fora da casa. O cultista seguia atrás, ainda com o arco empunhado. Virou-se e dirigiu-lhes a palavra. 
            “Vocês valem muito pouco. Levar vocês através do continente custaria muito mais do que vocês poderiam oferecer de sangue para o Culto. Shadowfell fará com que vocês tenham o destino que merecem depois do que fizeram para nós. ”, disse. “Espero que vocês tentem nos seguir. Vai ser muito engraçado poder observar vocês morrendo. ”
            “Vamos apostar? Eu acho que será de fome”, falou o morto vivo que segurava Desmond pelos cabelos, em tom de desdém.
            “Pois eu acho que eles serão comidos vivos por uma horda de mortos vivos. Há há há há!”, respondeu o outro. A risada sobrenatural que ecoou da garganta apodrecida enrijeceu os pelos do corpo de todos eles.
            Os dois terminaram de levar Desmond para fora. O ladino não lutava, mas relutava em cooperar, e seguia lentamente, recebendo tapas periódicos dos lacaios mortos para que continuasse a andar. O elfo seguia de perto, pronto para agir a qualquer momento. Randal caminhou até a porta da construção, encostou-se no batente e observou os dois magos e a criatura humanoide gigantesca levando Desmond até a curva na estrada que passava pelo vilarejo. Seguiram numa direção que os cinco haviam descartado quando escolheram o caminho anteriormente. Durante todo o tempo em que os observou, Randal não viu o elfo abaixar o arco em nenhum momento.
            “E quando vamos iniciar a viagem? ”, disse Askáth, quebrando o silêncio. O tom casual de sua voz não conseguiu mascarar o verdadeiro desespero que crescia em seu peito.
            “Assim que terminarmos de olhar o que temos por aqui”, respondeu Thaal, curiosamente interessado em resgatar objetos daquele ambiente. Ele soava mais calmo do que Askáth, mas o ladino suspeitava que era apenas autocontrole, não frieza ou falta de compreensão.  “Não podemos dar a eles o gosto de morrermos tentando. Temos que conseguir encontrar Desmond e os Amlugnehtar. ”
            “E Siana. ”, lembrou Randal.
            “E Phidain. ”, acrescentou Navere. “Nem que seja para esclarecermos isso tudo de uma vez por todas. ”
            Por mais alguns minutos, reviraram todos os armários e baús daquele pequeno quartel. Encontraram, no que parecia ser um refeitório antigo, barris com carne seca e queijos com uma aparência péssima, mofada e muito antiga. Guardaram o achado como quem guarda pedras preciosas. Entre os quatro, calcularam que a quantidade de comida, se racionada, poderia durar até dois meses. De um armário, recuperaram uma espada suja que parecia um pouco melhor do que a arma que Randal utilizava, uma lança, algumas mochilas e sacos de dormir. Uma pilha de cobertores cinzentos úmidos foi desfeita e cada um deles enrolou uma coberta e a colocou sobre a mochila, prendendo com cordas antigas e desfiadas que estavam embaraçadas na parte de baixo do armário. Alguns outros equipamentos de viagem e exploração puderam ser aproveitados e foram amontoados nas mochilas. Todas elas fediam a queijo velho. Saíram do quartel e encheram os cantis em um poço de água muito suja do lado de fora.

            “Eu tenho que admitir. Estou com medo.”, disse Randal.
            “Eu também. Mas não temos escolha. Podemos morrer aqui, ou podemos morrer tentando. Acho importante que não nos enganemos. Não vamos sair dessa vivos”, falou Navere, firmemente, mas sem esperança.
            “Pois eu acho que vamos sair vivos. Temos que tentar, temos que resgatá-los. E nós vamos nos manter respirando e inteiros.”, afirmou Thaal, demonstrando segurança.
            A firmeza de Thaal pareceu reassegurá-los. Entre eles, carregavam mais de cinquenta quilos de queijos em peças redondas enegrecidas e pedaços retangulares de carne seca mofada. Além disso, todo o equipamento que resgataram e a água faziam com que cada mochila pesasse mais de vinte quilos. Askáth estava com dificuldade para mantê-la nas costas, mas Thaal tomou um pouco do peso da mochila dele para si, deixando a bagagem do tiefling um pouco mais suportável para ele. Askáth não pôde esconder a surpresa em seus olhos. Thaal apenas respondeu com um sorriso. Puseram-se a caminhar cerca de quarenta minutos da saída dos cultistas com Desmond.
            A estrada era extremamente malcuidada e não parecia ser utilizada nunca, então o grupo que seguia na frente produzia muitos rastros, fáceis de serem localizados por Askáth. Além disso, eles suspeitavam que os cultistas não estavam tentando esconder seu caminho. Chegaram à conclusão que eles pareciam querer que fossem seguidos por eles, provavelmente para ver o grupo inexperiente morrer.
            Durante dois dias e meio de viagem, eles não encontraram ninguém. Na metade do segundo dia, foram descobertos pelo que pareceu uma procissão de clérigos mortos vivos que transitava perpendicularmente à estrada que seguiam. Os quatro se puseram em posição de ataque, mas a procissão cadavérica apenas cruzou o caminho deles, produzindo um cântico quase inaudível por entre as mandíbulas expostas. Os corpos estavam cobertos por robes negros velhíssimos e eles seguiam em fila, com os passos coordenados. Eram mais de cinquenta.
            Durante o primeiro dia haviam acelerado o ritmo para que diminuíssem a distância entre eles e Desmond. Ao acamparem na primeira noite, já conseguiam avistar a pequena fogueira que os sequestradores do ladino tinham produzido. Agora, três dias depois, a planície permitia calcularem com segurança que estavam a cerca de três quilômetros de distância dos cultistas.
            A própria fogueira que acendiam era pobre, pequena, como se o ambiente não permitisse que grandes fogueiras fossem produzidas. Eles tinham criado o hábito de tentarem se esconder dos cultistas. Hoje, por causa da extensão da planície descampada onde estavam, conseguiram apenas se entrincheirarem em uma pequena irregularidade na estrada, acentuada por um buraco raso que cavaram assim que a noite caiu.  O calor produzido pela fogueira era insuficiente, e apenas conseguiram esquentar a comida o bastante para tentarem matar os fungos que haviam sobre o queijo e a carne.
            A magreza deles era flagrante e progressiva. Askáth já exibia grandes covas nas bochechas e a largura dos ombros de Randal se reduzia a olhos vistos.
            Enquanto conversavam em voz baixa, tentavam impedir o vento gelado e úmido de apagar a fogueira minguante.
            Askáth, ao olhar para a estrada, teve a impressão de ver alguém caminhando ao longe, na direção de onde vieram. Alertou os outros, que pararam de falar e começaram a observar. Ao longe, a figura era pouco mais de uma silhueta. Após alguns minutos, os passos da pessoa já eram audíveis, ritmados, mas sem pressa. Mais alguns minutos e a figura mostrou-se diminuta, menor do que um humano médio. Dez minutos depois, a luz da lua minguante alaranjada, somada à visão noturna deles e à fogueira fraca revelou o inesperado.
            A cerca de trinta metros, o halfling de feições conhecidas se aproximava cautelosamente, expondo as mãos vazias e o rosto pacífico.

            “Phidain.”, disse Navere. 

domingo, 29 de novembro de 2015

29 – Mais duas covas

Randal já estava há uma hora abraçado aos corpos inertes de sua esposa e filha. As lágrimas já haviam cessado, mas a expressão de desespero ainda permanecia estampada em seu rosto.
            Navere decidiu que não suportava mais aquilo.
            “Randal. Elas se foram. Precisamos ir embora.”, falou, abaixando-se e tocando no ombro de Randal.
            “Não vou deixá-las aqui”, respondeu o mercenário com a voz baixa e rouca. “É minha família.”
            “Nós sabemos, Randal. Mas... é muito perigoso ficar aqui.”, disse Askáth.
            “Não.”
            “E se nós fizéssemos um enterro digno para  elas?”, interrompeu Thaal.
            “Aqui? Nesse lugar infernal?”
            “Eu posso abençoar o solo aonde vamos colocá-las.”, disse Thaal.
            “Eu... acho que isso seria justo.”, Randal finalmente cedeu.
            Ele permaneceu ali, abraçado aos corpos decrépitos delas por mais alguns minutos, enquanto os outros abriam duas covas do lado de fora da casa. Utilizando paus e outros destroços encontrados nas outras construções, os outros quatro demoraram bastante tempo para conseguirem cavar fundo o suficiente.
            De uma das casas, Thaal resgatou dois lençóis que talvez tenham sido brancos um dia, mas atualmente estavam cobertos de fuligem e esburacados por traças. Ainda assim, foi o melhor que puderam fazer.
            Enquanto Navere, Askáth e Desmond terminavam as covas, Thaal ajudou Randal a se levantar. Deitaram os corpos no chão, ajeitando os cabelos e os farrapos de roupas. Estenderam os lençóis, acomodando as duas de forma a enrolar o lençol por todo o corpo. Por fim, antes de cobrirem os rostos, Thaal iniciou uma bênção em cada uma delas. Ele ajoelhou e começou a orar silenciosamente ao lado dos dois cadáveres.
            Navere entrou silenciosamente de volta na sala da casa de Randal. O bardo estava muito sujo de terra negra, que permanecia aderida à pele dele por causa da umidade do lugar.
            “Está pronto”, disse ele, baixa e respeitosamente.
            Thaal levantou a cabeça e acenou. Eles voltaram para dentro, tomaram os corpos nas mãos, Askáth e Desmond levando Lana e Navere e Thaal levando Sarah. Depositaram os dois cadáveres ao lado de cada uma das covas.
            Thaal iniciou: “Estas almas foram levadas de forma cruel e injusta. Que Torm abra as portas do paraíso para que elas possam viver eternamente em paz.”
            “Que elas possam desfrutar de dias quentes e fartura, pores do sol eternos e campos floridos onde se deitar”, continuou.
            “Que Torm e todos os outros deuses bondosos as acolham na vida eterna, onde aguardarão por Randal quando chegar a sua hora. Eu abençoo este solo que as receberá para o descanso eterno. Eu abençoo estas almas para que sigam em paz.”, disse ele.
            Randal caminhou até Lana. Pegou a ponta do lençol que ainda estava aberta, posicionada, e a colocou sobre o rosto da esposa morta. Tocou sua testa através do tecido. Levantou-se e fez o mesmo com a filha.
            Utilizando alguns trapos longos e pedaços de corda que recuperaram das casas, desceram cuidadosamente ambos os corpos para dentro das covas recém-cavadas. Enquanto Randal ainda observava em silêncio e Thaal permanecia rezando, Desmond, Askáth e Navere cobriram as covas com a terra que tinham tirado. Com longos pedaços de madeira marcaram as covas, deixando que os toscos marcadores guardassem apenas o primeiro nome de cada uma delas gravado na madeira.
            Randal parecia um pouco mais calmo e conseguiu se afastar das tumbas assim que Thaal o abraçou e caminhou lentamente para fora da cidade.
            Já estava anoitecendo e eles precisavam decidir o que fariam. Sentaram-se numa pequena clareira no bosque e acenderam uma fogueira.
            “Precisamos conversar friamente”, disse Desmond. “Eu só sei que estamos em Shadowfell e que meus amigos estão em um lugar chamado Evernight.”
            “Eu não sei nem o que você quer dizer com estamos em Shadowfell”, disse Askáth.
            “Shadowfell é como um espelho distorcido de Faerûn. Esta aqui é Hlath... ou a gêmea dela nesta dimensão profana. Não há como sair daqui... e eu não tenho ideia de como chegamos. Por isso, Randal...”, disse ele, inseguro e abaixando o tom da voz, como se falasse carregado de vergonha, “talvez aquelas nem fossem a sua Sarah e Lana.”
            Randal arregalou os olhos. Levantou-se de supetão, atravessou o círculo que tinham se posto e acertou Desmond com um soco muito forte no rosto.  “Você... me diz isso... AGORA???”
            “SE ACALME, RANDAL!”, gritou Desmond, limpando o sangue do canto da boca. “Eu não sei! Eu não sei de nada... o que sei que é que este é um lugar maldito e estamos absolutamente perdidos de termos vindo parar aqui.”
            “Se aquela não era minha família, Desmond... eu não sei como você pode ter sido cruel assim e ter deixado que eu passasse por tudo aquilo.”
            “Aquela ERA sua família! E não era... entende?”
            “Não.”, ele respondeu, tentando recuperar a calma.
            “Bem, não temos tempo para isso agora, já nos expusemos muito ficando aqui. Precisamos de abrigo.”, disse Desmond, atiçando o fogo com um graveto. A atmosfera gelada e úmida não ajudava a manter o fogo aceso e o corpo deles quente. Mesmo a uma distância muito pequena da fogueira, eles ainda continuavam com frio.
            “Acho que esta noite estamos presos aqui. E este lugar não parece nada seguro.”, disse Thaal.
            “Não parece porque não é mesmo.”, respondeu Navere. Em sua voz, a melancolia era flagrante. “Eu... não acho que tenha nada que possamos fazer. Vamos morrer aqui.”
            “Não, não vamos. Vamos agir e resolver essa encrenca”, respondeu Askáth, um pouco mais esperançoso.
            “Não vamos. Acho inclusive que eu deveria acabar com isso agora mesmo”, disse Navere, observando o brilho da fogueira na lâmina da adaga que tinha nas mãos.
            “Nem pense nisso!”, disse Thaal. “Vamos dormir. Em turnos. Eu fico no primeiro. Askáth, você fica comigo?”, perguntou ele.
            Askáth pareceu surpreso por ter sido o escolhido. Thaal não parecia se sentir à vontade com a presença dele até agora. Aceitou.
            O ladino e o clérigo não conversaram durante três das quatro horas da vigília. Na última, depois de ouvirem um barulho e não constatarem perigo após procurarem juntos, engataram uma conversa banal sobre o que fariam a partir dali.
            Randal demorou mais de uma hora, mas eventualmente a exaustão o levou ao sono. Desmond e Navere conseguiram dormir, embora várias vezes durante a vigília Thaal tinha flagrado Navere com os olhos abertos, fitando o céu do mais profundo negro.
            O céu daquele lugar não tinha estrelas. Um negro surreal permeava por entre as nuvens e a lua minguante alaranjada que estava perto do horizonte, atrás de névoa, não era capaz de oferecer nenhum tipo de iluminação natural.
            Askáth acordou Navere e Desmond. Concordaram em deixar Randal descansar; ele agora roncava ruidosamente e parecia precisar de mais descanso do que todos. O resto da noite passou-se com o silêncio pesando entre eles, sem nem que grilos fossem capazes de permear a atmosfera de desolação daquele lugar.
            Com a chegada da luz, perceberam que o clima nebuloso era provavelmente a constante. O sol não era capaz de atravessar as nuvens e não havia radiação atingindo o solo para que produzisse calor. Mais uma vez, o tempo era frio, úmido e insalubre.
            Escolheram uma direção. Decidiram em grupo que precisavam alcançar a cidade de Evernight, mas não tinham nenhuma indicação da direção para a qual seguirem.
            Quando a fome ficou forte demais, não sabiam o que comer. Tentaram procurar embaixo de pedras e buracos por pequenos animais, mas encontraram apenas vermes. Desistiram.
            Caminharam o dia todo, ultrapassando o vale, o rio lodoso, o bosque. Seguiram uma estrada com pavimentação precária. Do que parecia um dia ter sido uma estrada de cascalho, sobravam apenas pequenos pedriscos ocasionais, enterrados entre a lama negra do chão.
            Quando acamparam mais uma vez, a fome era quase insuportável. Os cantis que carregavam, que tinham levado para a curta expedição ao templo já estavam no fim, mesmo com o pesado racionamento que estavam fazendo.
            Naquela noite, enquanto Thaal, Randal e Askáth dormiam, Desmond e Navere caçaram vermes sob as pedras mais próximas do acampamento e os tostaram na fogueira. Os bichos sibilaram quando a água de dentro do corpo deles ferveu e secou, transformando-os em pequenos pedaços ressecados e queimados de carne. Engoliram-nos sem terem tempo nem energia para sentir nojo.
            Quando os acordaram, entregaram alguns vermes torrados a eles, que não questionaram e acabaram comendo também.
            A proteína dos vermes pareceu mantê-los vivos por tempo suficiente para seguirem viagem. Conseguiram alcançar um outro vilarejo mais para frente na estrada.
            Este parecia um pouco menos destruído do que o que se assemelhava à cidade de Hlath. Randal explicou que aquele poderia ser a duplicata da cidade vizinha a Hlath, e que se fosse, ele conheceria os lugares, quem sabe conseguiriam abrigo ou comida. Seguindo as instruções dadas por Randal, foram até o pequeno abrigo da guarda da cidade, onde, segundo o mercenário, haveria um mapa dos arredores.
            Ao entrarem, descobriram que o ambiente parecia quase bem cuidado, apesar de ainda carregar a atmosfera de perdição do que tinham visto até agora. Na parede, um mapa rabiscado em tinta negra era confuso e não parecia confiável, mas mesmo assim, Randal pegou-o, enrolou-o e guardou o pergaminho em sua mochila. Enquanto observavam os armários de armas da guarda, procurando algo que lhes fosse útil, ouviram passos. Atrás deles, o som inconfundível de alguém utilizando uma armadura completa caminhando lentamente denunciou que alguém se aproximava.

            Viraram as cabeças e encararam uma figura de mais de dois metros de altura, muito forte, que portava no peito sobre a armadura completa o símbolo do Culto do Dragão.

sábado, 28 de novembro de 2015

28 – A sombra mais escura

            O silêncio durou alguns segundos. Quando abriram os olhos, não esperavam enxergar o que viram. Os cinco trocaram olhares confusos. Estavam dispostos em círculo, como cinco pontas em um pentagrama imaginário, disposto no interior de um círculo físico. Este círculo era composto de runas brilhantes, muito bem desenhadas. Enquanto as observavam, as runas luminescentes perderam seu brilho azul gradativamente, até apagarem por completo.
            O ambiente ao redor do círculo era uma sala com paredes de pedra muito antigas. Não era uma construção grande, mas tinha em todas as paredes altíssimas estantes cheias de livros variados. O frio era quase palpável e em poucos minutos estavam todos com os dedos arroxeados e dormentes. Nas paredes haviam suportes com velas muito antigas, que Desmond se pôs a acender, uma por uma, começando pela vela em cima de uma superfície. Quando a última vela foi acesa, a sala inteira pareceu ganhar calor e luminosidade muito além do que as velas poderiam fornecer. A atmosfera parecia mágica e o ambiente se tornou agradável. Eles puderam observar com mais clareza o que parecia ser uma biblioteca. As estantes estavam cheias em cada espaço, e havia uma escrivaninha muito bonita e de ótima qualidade, com quatro gavetas. Em cima, papéis e pergaminhos estavam organizados num canto, com pena e tinteiro ao lado. Um carimbo e um pedaço de cera vermelha para selar estavam organizadamente colocados ao lado de uma das velas acesas por Desmond. A bela poltrona que acompanhava a mesa tinha veludo vermelho no estofado.
            Mais outras duas poltronas muito bonitas e confortáveis estavam colocadas nos cantos, perto das estantes. Uma grande escada estava apoiada em uma das estantes, de forma a permitir que os livros colocados em posições mais altas pudessem ser acessados com facilidade.
            “Onde estamos?”, Askáth finalmente teve coragem de perguntar. A pergunta pairava entre eles pelos últimos dez minutos, mas o choque do teleporte era tão grande que nenhum deles tinha tido a ousadia de colocar em palavras o medo e a dúvida.
            “Eu... não sei.” Desmond respondeu. Se o mais experiente deles não tinha ideia de onde estavam, os outros não tinham meios de saber.
            Enquanto Randal andava em círculos, Askáth e Desmond exploravam a sala por mais informações e segredos, Thaal e Navere se sentaram nas poltronas, e começaram a explorar os papéis, pergaminhos e livros.
            Nos pergaminhos, entre cartas indecifráveis e informações aparentemente irrelevantes, havia um nome, Evernight, uma data de dois dias atrás e um nome: Amlugnehtar.
            Navere, ainda segurando o pergaminho, chamou por Desmond. Ao ler, Desmond pareceu confuso.
            “Se foi para lá que os levaram, estamos perdidos... nunca ouvi falar neste lugar.”, disse ele, demonstrando perder as esperanças.
            A vela em cima da escrivaninha pareceu tremular. Eles guardaram este pergaminho e mais alguns outros dentro da bolsa. Durante todo o tempo, Desmond e Askáth tinham procurado uma saída da sala, sem sucesso. O círculo estava completamente inativo e nenhuma das tentativas deles fora produtiva.
            Navere exauriu seus olhos e sua mente. Viu que a vela em cima da escrivaninha estava quase no fim. Resolveu extingui-la, antes que eles ficassem sem luz. Apagou-a com um sopro, e instantaneamente a sala se tornou mais escura e mais fria, como se a magia que todas as velas acesas ao mesmo gerava tivesse sido interrompida.
            Na mesma hora, Desmond percebeu que um dos cantos da sala parecia particularmente escuro, desproporcionalmente à quantidade de luz produzida pelas velas que ainda rodeavam a sala. Mais ninguém pareceu perceber, e apenas viram Desmond se encaminhando a um canto e examinando uma sombra escura.
            Então, Desmond não estava mais lá. A olhos vistos o ladino tinha simplesmente desaparecido. Navere se levantou de súbito muito assustado, tentando achar o ladino.  Correu em direção ao canto onde Desmond havia estado.
            Navere também desapareceu. Askáth, Randal e Thaal ficaram ainda mais amedrontados e se aproximaram cautelosamente do canto escurecido. Um a um, desapareceram. Thaal foi o último. Quando se viu sozinho naquela biblioteca, não viu alternativa além de se embrenhar naquela sombra que parecia tão comum, na esperança de ser enviado ao mesmo lugar que todos os outros.
            Curiosamente, eles haviam sido levados para um lugar exatamente igual ao que estavam antes, com apenas uma diferença: Os livros tinham todos capas negras, as estantes estavam cobertas de teias de aranha e a escrivaninha decrépita. A escada apoiada nas estantes era feita de madeira negra, retorcida, e não transmitia segurança. As velas nas paredes estavam cobertas de pó e não eram acesas há muito tempo. O frio era cortante como antes, mas desta vez, a umidade do ar era flagrante, causando uma sensação única nos cabelos e pelos do corpo. Apesar de tudo isso, a diferença fundamental desta sala para a anterior era que esta tinha uma porta, ladeada por duas estantes negras.  
            Sem compreender o que tinha acontecido, eles começaram a acender as velas que acreditavam serem as mesmas.
            Cada uma que acendiam permanecia acesa apenas até que a próxima recebesse fogo. Desta forma, além de não produzirem o efeito mágico presente na outra sala, apenas exercitavam a futilidade de tentarem se aquecer.
            Os papéis e livros se mostraram absolutamente inúteis. A escrita, quando presente, era ilegível ou sem sentido. A maioria dos papéis havia sido consumida por fungos e traças.
             Em um acordo silencioso feito após a inspeção do lugar, Desmond se encaminhou para a porta. Para a surpresa de todos, ela estava destrancada e se abriu com facilidade. No momento em que a primeira fresta foi aberta, um vento gélido, cortante e úmido invadiu o ambiente e os surpreendeu. Terminaram de abrir e viram que a porta dava acesso a um corredor que mais parecia uma varanda. À frente deles, em vez de paredes, o corredor tinha uma grade de ferro muito antiga, de linhas retas. Várias falhas davam à estrutura uma aparência muito insegura.
            Eles saíram da sala e se enfileiraram no corredor, observando estarrecidos a paisagem.
            Estavam em um lugar muito alto, como uma torre. A visão do terraço era de muito longo alcance e o relevo era muito familiar e alienígena ao mesmo tempo. O que parecia ser a cidade de Randal,  Hlath, estava à frente, com as montanhas que ficavam atrás dela posicionadas exatamente como o esperado. O rio que cortava aquele vale também estava lá, assim como o bosque. Apesar disso, era o máximo de reconhecimento possível.
            O céu era cinza escuro, como se uma tempestade se formasse cobrindo cada centímetro da abóbada celeste. Não havia grama verde nem cobrindo as colinas. Àquela altura, não era possível discernir com clareza as características do terreno. O chão era negro, parecendo ser coberto por grama morta e cinzas. As casas, em vez de construídas, se assemelhavam ao estado em que a cidade tinha ficado após a destruição durante o ataque de Iljak. Todas as paredes e telhados das casas eram de madeira negra, como após um incêndio. As ruas eram tortuosas, diferentes das bem ordenadas de Hlath. Não haviam árvores vivas no bosque, na cidade ou em nenhuma outra região visível. As montanhas, outrora verdejantes com os topos cobertos de neve perene, agora eram enormes estruturas negras, pontudas e irregulares como rocha vulcânica. O rio tinha água, mas era lodosa e de aparência muito insalubre. Todo o ambiente parecia uma versão corrompida do que conheciam de Hlath e a região.
            Randal observava com os olhos marejados. Acreditava que aquele era seu lar e que havia sido levado pela desolação. As lágrimas escorreram e ele não manifestou intenção de limpá-las.
            “Randal... acho que esta não é a sua cidade.”, disse Desmond, inseguro.
            “Como você pode dizer isso? Veja... aquela ali era minha casa.”
            “Todo o resto está mudado, Randal. Eu... eu acho que sei onde estamos.”
            Todos olharam para Desmond, esperando clarificação. A sensação era de desespero. O vento frio e úmido colava os cabelos deles às frontes. Onde as mechas umedecidas tocavam, sentiam a pele ficar ainda mais gelada.
            “Não. Eu preciso ter certeza. Vamos descer lá”, disse Desmond, decidido.         
            Eles não perguntaram mais. Preferiam que Desmond respondesse quando realmente estivesse certo do que estava acontecendo e para onde eles tinham sido levados.
            Seguindo a varanda da torre, encontraram uma escada que os levava diretamente para baixo. A torre não parecia mais do que um observatório e não tinha outras salas interessantes ou fechadas.
            Quando alcançaram o solo, perceberam que ele era negro por ser coberto por carvão, pedriscos, ossos e teia de aranha. Não havia vegetação visível, insetos, animais nem nada parecido.
            Andaram por mais de meia hora até alcançarem a entrada da cidade que se assemelhava a Hlath. Não viram movimento algum, não havia nenhuma indicação de que havia vida naquele lugar. Randal caminhava cautelosamente, investigando as casas mais ou menos da mesma forma que as investigara após o ataque. Todas as casas estavam vazias. Seus interiores pareciam reflexos das casas de Hlath, mas com móveis queimados, quebrados ou reduzidos a pó. No chão, em duas casas, haviam esqueletos.
            Em alguns minutos, alcançaram a casa do mercenário. Ele hesitou, compreensivelmente, antes de abrir a porta. Askáth deu um passo à frente e tocou as costas do amigo em sinal de apoio. Ele olhou para o ladino e finalmente estendeu a mão para a fechadura da porta.
            Ao observar o interior da casa, seus pesadelos mais cruéis se tornaram realidade. Lana, sua esposa estava sentada em uma cadeira, de mãos dadas com sua filha Sarah. Os corpos delas estavam parcialmente decompostos, sua carne embranquecida marcada por ferimentos, queimaduras. Haviam ossos expostos, pedaços de cabelo faltantes. Ambas haviam morrido fitando o teto, com seus olhos enevoados vidrados e paralisados no tempo.
            Randal se aproximou delas, ajoelhou-se no chão e gritou, liberando toda a força do pesar em seus pulmões. O silêncio pareceu ainda mais pesado quando o ar terminou e ele se calou.
            Lana abriu os olhos. Sarah a seguiu, e ambas levantaram as cabeças. Randal não percebeu.
            Lana gritou, produzindo um som profano, sobrenatural e bizarro. Levantou a mão que estava solta e golpeou Randal na lateral da cabeça. Ele caiu para o lado, com os olhos muito arregalados. Sarah soltou-se da mão da mãe, abriu a boca e expôs dentes muito afiados, apodrecidos. Agarrou o pai pelo pescoço e mordeu a carne acima de sua clavícula. Sangue escorreu pelos lados da mordida.
            Desmond agiu rápido, atirando uma adaga no centro da testa de Sarah, fazendo-a soltar a mordida e pender para a frente inerte, com a cabeça ainda sobre Randal. Thaal produziu uma forte luz com as mãos que atingiu Lana no centro do peito, causando queimaduras que fizeram sua carne sibilar em protesto. Ela gritou mais uma vez, teve movimentos convulsivos e parou de se mexer, ainda sentada na cadeira. Randal cobriu o ferimento no ombro com a mão, soluçando e gritando. Thaal correu até ele e o auxiliou, utilizando as mãos para estancar o sangramento.

            Enquanto Thaal curava Randal com uma fraca luz que vinha das mãos, Desmond finalmente falou com um pesar imenso na voz:

 “Estamos em Shadowfell”.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

27 – Alguns Projéteis Mágicos

            Siana tentava se concentrar o mais profundamente possível. Ainda assim, conseguira pouco mais do que o borrifo de ácido que já sabia. Segurava em sua mão esquerda um pequeno pedaço de pergaminho, enquanto que com a direita tentava produzir fogo. Era seu primeiro dia, mas ela já se mostrava relativamente bem ambientada. Usava os robes roxos da escola, e mantinha os cabelos ondulados longos presos em um coque frouxo no alto da cabeça. Algumas mechas caíam em seus olhos, dando-a uma aparência displicente, mas charmosa. O mago a havia deixado por algumas horas nesta sala, estudando alguns pergaminhos e livros básicos sobre a magia arcana.
Siana não compreendia a razão de ter sido deixada sozinha logo em seu primeiro dia de treinamento, mas pretendia mostrar a Garek que era uma aluna excelente. Além de ler os livros que ele recomendara, estava decidida a demonstrar um truque básico que aprendera durante o estudo.             De sua testa, uma gota de suor descera lentamente.
            “Siana”, disse Garek, entrando no ambiente sem ser percebido pela jovem aprendiz. “Você não pode pensar tanto. A magia vem sim da concentração, mas não é daqui...”, ele apontou para o cérebro. “É... como se fosse uma expiração. Veja, tente. Respire fundo agora.”
Ela inspirou, sentindo o ar parado da sala antiga de estudo penetrando profundamente em seus pulmões.
“Segure... isso. Agora tente soltar, mantendo a expiração por alguns segundos.”
Siana o fez, ainda confusa com o ponto que Garek tentava provar.
“Viu? Você inspirou e soltou quando quis. É esse o nível de concentração que precisa manter. Não mais, não menos do que isso. Se você usar demais o seu cérebro, não compreenderá as situações externas que lhe fizeram recorrer à magia em primeiro lugar.”
            Siana não conseguiu responder, mas demonstrou compreensão com um acenar leve de cabeça. Ainda não havia retomado a respiração ao modo automático. Pensando quando deveria inspirar e respirar, percebeu que mesmo se concentrando naquilo conseguia ouvir e ponderar sobre a lição que Garek lhe passava.
            “Acho que você entendeu um pouco, certo? Imagine comigo: você está caminhando pela floresta, colhendo belos morangos silvestres, suculentos, os primeiros do outono. Então, enquanto voltava para a escola, você é surpreendida por alguns goblins, que lhe insultam do jeito grosseiro dos goblins e lhe atacam. Não lhe resta nenhuma alternativa além de revidar. Pense, eles agem tão rápido que sua reação é revidar com um tiro ígneo bem na direção deles, ao mesmo tempo que um deles lhe atira uma flecha e outro tenta te acertar com uma espada. Olhe só, se você estiver pensando com tamanho afinco, você pode até fazer a magia, mas será atingida pela flecha e pela espada. E o pior, ainda vai derrubar a sua cesta cheia dos mais belos morangos!”
            Siana abriu um sorriso.
            “Se você for capaz de conjurar feitiços utilizando apenas a mesma concentração que usa para expirar quando quiser, você fica muito menos vulnerável e com muito mais morangos! Você só terá a ganhar! Agora, imagine outra coisa. Você está com os mesmos goblins, e conseguiu desviar dos dois ataques porque decidiu levitar. Apesar de você estar ilesa, pelas suas costas um goblin que havia se escondido numa moita para fazer coisas que goblins fazem em moitas resolveu atacar você e lhe atirou uma adaga nas costas. Trágico! Pense, se a sua concentração estiver na sua cabeça, você se distrairá imediatamente e cairá ao chão como um belo saco de batatas que estava levitando. Se você apenas expirar, apenas... soltar o conhecimento como se assoprasse um dente de leão, você pode ser atingida por quantas adagas quiser que você se manterá levitando. Com morangos.”
            “Talvez... eu não devesse ser atingida por muitas adagas. Se eu morrer, não comerei os morangos.”, disse Siana, sorrindo largamente.
            Garek soltou uma gargalhada alta. “Gostei de você, menina, você é sagaz! Agora veja, veja como você vai conseguir incendiar esse pobre pedaço de pergaminho!”
            Siana retomou a posição de segurar o pergaminho. Em menos de um segundo, Siana liberou da palma de sua mão um pequeno raio ígneo que atingiu o pergaminho em cheio. Ela o soltou. Antes de atingir o chão a fibra do pergaminho já tinha se desfeito em pequenas fagulhas e cinzas.
            “Viu! É isso mesmo, menina! Vejo em você um excelente potencial! Conseguiu obliterar um ameaçador pergaminho em apenas algumas horas de estudo,   há há há há!”, ele disse, parecendo legitimamente impressionado, apesar da piada sarcástica. “Vamos, você precisa de uma pausa e alguns morangos.”
            Sentados numa mesa grande de madeira simples. Garek, Siana e o mago que a recebera dividiram uma bela cesta de frutas frescas, pão, vinho e um vistoso bolo de maçã. “Siana, o Douglas aqui faz ótimos bolos com as frutas que os magos derrubam quando são atingidos por goblins ao colhê-las na floresta! Experimente este aqui.”
            Siana concordou sinceramente que Douglas realmente havia assado um dos melhores bolos que ela já tinha experimentado. Depois de meia hora de conversas banais e leves, Garek a convidou para voltar a estudar. Ela já se sentia um pouco mais segura. Durante a conversa, contemplara os ensinamentos que recebera e se sentia pronta para treinar mais um pouco.
            Durante a tarde, aprendeu como direcionar melhor seus projéteis mágicos, como produzir uma mão espectral que conseguia mover objetos à distância (“Ótima para carregar cestas de morangos!”, segundo Garek) e como encantar objetos para que produzissem luz por algum tempo. Siana, ao contrário do previsto pelos magos da torre que havia procurado em Águas Profundas, se mostrou uma ótima e promissora aprendiz.
No final da tarde, recebeu congratulações sinceras de Garek. Quando chegara na tarde do dia anterior, recebera um minúsculo quarto para si, com uma cama simples, um pequeno baú para seus pertences e um criado mudo. Ele levou-a até lá. Quando se retirou, garantiu que assim que o sol se mostrasse ele a ensinaria a produzir mísseis mágicos que jamais errariam o alvo.
Ao fechar a porta, Siana sentou-se na cama, afrouxando o nó que amarrava o robe. Não trancou o baú nem se preocupou em amarrar a chave no pescoço. Não tinha nenhum pertence importante. A roupa que estava usando quando chegara à torre estava dobrada cuidadosamente dentro do baú. Além dela, havia apenas uma pequena bolsa com um cantil e algumas adagas simples que pegara na casa de Askáth antes de explorarem o templo.
Siana deitou-se, observando o teto de pedra. A torre antiga era uma construção sólida. Não ouvia quase som algum de dentro da própria torre. A pequena janela circular que tinha no quarto estava fechada, bloqueando também a maior parte dos sons externos.
            Permaneceu com os olhos abertos por muito tempo, alcançando sentimentos que estavam guardados, ponderando sobre suas escolhas e a grande reviravolta que sua vida sofrera no dia anterior e neste. Na segunda noite deitada naquele colchão, suas costas e membros ainda tentavam se acostumar. Tentou calcular há quanto tempo não via seus pais. Garek a havia informado que ainda estavam no mesmo mês de quando fora levada pelo illithid, Eleasis, então não poderiam ter decorrido mais de duas semanas.
            Desde o sequestro pelo illithid, Siana perdera a noção de tempo. Sentia muita saudade de seus pais e estava muito preocupada com a saúde e segurança deles. Sabia que provavelmente estava sendo procurada à exaustão. Pensou nos companheiros, que mesmo em tão pouco tempo, haviam se mostrado de extrema confiança. Com Navere, Siana compartilhara perigos, conhecimento, história. A Randal, considerava como um segundo pai. Askáth era um exemplo de praticidade e desenvoltura, com muitos truques para ensinar. Thaal era a pessoa mais correta que Siana já tinha conhecido.
            Siana não conseguiu segurar as lágrimas que pressionavam os cantos de seus olhos. Depois da primeira e da segunda, outras dezenas escorreram abundantemente, tornando ainda mais palpável a solidão, o desespero e o medo que ela sentia. Prometeu que completaria seu treinamento o mais rápido possível e se juntaria novamente ao seu recém formado grupo de amigos, e que com eles buscaria Phidain e ajudaria Desmond a resgatar os Amlugnehtar.
            Percebeu que o pesar pela distância da família e insegurança que eles provavelmente estavam sentindo era a base de seu desespero. Levantou a cabeça, limpou as lágrimas e saiu de seu quarto. Mesmo durante a noite, conseguiu se locomover com facilidade na torre escura por causa de seus olhos élficos. Entrou na sala de estudo onde tinha incendiado o pergaminho e achou um pedaço parecido. Com as mãos lhe faltando firmeza, escreveu:

Estou inteira e bem. Voltarei. Por favor, não me procurem. Muita saudade.
S.


            Sem saber como enviar o recado à sua família em Águas Profundas, Siana guardou o pergaminho de volta nos robes que pendiam sobre seus ombros por causa do nó afrouxado. Decidiu que pediria a Garek para enviá-lo assim que o sol raiasse.

26 – A fuga de Siana


            “ME TIRA DAQUI, PHIDAIN!!!”, gritava Siana, repetidamente. “ME TIRA DAQUI!!!”
            Calmamente, o bardo persistia sentado no chão, logo ao lado de fora do quarto onde a trancara. Através da porta, podia ouvir os brados inflamados da pupila, entremeados pelos socos repetidos na porta.
            “Siana... se acalme. É pro seu bem.”, ele dizia, mas Siana ficava cada vez mais enfurecida. “Eu vou embora agora. Quando você se acalmar a gente conversa.” Siana ouviu passos se distanciando da porta.
            Siana socou a porta e berrou por mais alguns segundos, até perceber que de fato Phidain não estava mais ali. Olhou ao redor mais uma vez: uma cama muito velha, com marcas em toda a madeira; um colchão muito fino de palha com muitos insetos; um balde, presumivelmente para ser usado como latrina; uma janela pequena, fechada com tábuas de madeira; um pequeno criado mudo, sem nada nem em cima nem na única gaveta.
            Ela achava que estava ali há mais ou menos duas horas. Enquanto investigava o pequeno banheiro daquele dormitório no templo de Mielikki, Siana fora surpreendida por Phidain. Antes de conseguir exprimir qualquer reação, Phidain a tomara pelo braço e eles foram teleportados para este lugar.
            Apareceram ali mesmo no quarto, mas não tiveram tempo para conversar. Ainda atordoada pela magia, Siana ouviu Phidain dizer “Desculpe, desculpe... é para o seu bem. Você precisa ficar longe de tudo aquilo...”
            Phidain virou as costas e saiu do quarto. Antes de trancar a porta, se desculpou mais uma vez. Siana não percebeu o que estava acontecendo até que ouviu o barulho da chave girando e da barra sendo afixada do lado externo da porta.
            “Não... não... NÃO!!! Não me deixe aqui, Phidain!”, ela gritou, apenas para ter como resposta o silêncio. “Phidain... por favor... o que está acontecendo... Phidain...”
            Nas duas horas seguintes, Siana alternou seus protestos num ciclo entre gritos e intimidações, como “SE VOCÊ NÃO ME TIRAR DAQUI AGORA EU VOU CAÇAR VOCÊ E MATAR VOCÊ ENQUANTO VOCÊ DORME”, charme, como “Phidain... por favor... você sabe que eu tenho muito medo de ficar sozinha...”e períodos de razão, como “Phidain, me tire daqui e vamos conversar e resolver isso juntos. ”
            A passividade do antigo mestre deixava Siana insegura, sem entender o que ele realmente pretendia quando ele a privou da liberdade. Phidain às vezes assobiava, às vezes batucava na porta. Raras vezes ele respondia aos clamores de Siana, mas quando o fazia, tentava manter o tom mais vago possível. “É para o seu bem, Siana... apenas para o seu bem...”
            Então, ao finalmente ouvir os passos de Phidain indubitavelmente se afastando, ela abaixou os braços e parou de lutar. Sabia que a porta era muito mais forte do que ela, e que forçar não era a maneira mais efetiva de sair de seu cativeiro. Continuava a inventariar os objetos que tinha disponíveis naquele ambiente. Sua mente pouco inventiva não permitia que extraísse com eficácia usos pouco convencionais dos móveis e objetos do recinto.  
            Sentou-se com as costas contra a porta, seus longos cabelos ondulados de cor castanha clara como amêndoas caindo ao redor do rosto e dos ombros. Siana dobrou seus joelhos e os trouxe para perto do corpo, apoiando o queixo sobre as pernas dobradas. Tomou em seus dedos a ponta de um dos cachos largos e começou a enrolá-lo, como costumava fazer em horas de estresse ou medo.
            Depois de algum tempo tentando achar alguma solução, foi até a janela e tentou puxar as tábuas que a cobriam. Não conseguiu. Feriu os dedos nos pregos e terminou com as mãos cobertas de farpas da madeira de má qualidade e pobremente trabalhada. Sentou-se novamente, repetindo a posição muito encolhida, procurando por conforto.
            Siana lembrou-se dos poucos dias que passara tentando aprender com os magos daquela ordem. Recebera algumas lições, mas ela não era boa em executá-las. Grande parte das vezes em que tentava conjurar alguma magia arcana, alcançava apenas a falha, ou efeitos inesperados. Apesar disso, trouxera consigo conhecimentos que os outros bardos não tinham. Seus olhos se acenderam ao lembrar.
            Durante sua estadia com os magos, uma das primeiras conjurações que ela teve contato e algum sucesso foi a criação de um pequeno borrifo de ácido. Ela nunca tinha achado que esta pequena façanha pudesse trazer grandes resultados até agora. Se sentindo um pouco mais esperançosa, se levantou e foi até a porta. Concentrou-se, colocando suas mãos em concha na direção da fechadura da porta. Com uma palavra de poder, um esguicho de ácido viscoso saiu do espaço entre as palmas de suas mãos e atingiu a fechadura. Siana conseguiu enxergar o ácido corroendo a parte de dentro da fechadura com um som baixo e bolhoso.
            Esperou ansiosamente enquanto o ácido agia em contato com o metal da porta. Assim que achou que o dano havia sido suficiente, empurrou a porta. Desta vez, em vez de resistência, a porta ofereceu não mais do que a sensação de estar levemente emperrada e depois abriu com um rangido característico.
            Siana viu-se livre e observou ao redor. Não estava na casa de Phidain, nem em nenhum outro lugar que lhe fosse familiar. A sala onde saíra continha algumas estantes, uma mesa de jantar, uma lareira e uma escrivaninha. Era um ambiente bem decorado e que transmitia algum luxo, embora tudo parecesse muito velho e abandonado. As outras janelas da sala estavam barradas com tapumes de madeira, tais qual a janela do quarto onde estava.
            Apanhou um candelabro simples de prata que estava em cima da mesa de jantar. Empunhou-o como uma arma de contusão, embora ele não parecesse ser particularmente efetivo contra alguém, já que era pouco mais que um suporte fino para uma única vela.
            Siana investigou o resto da construção, descobrindo uma cozinha, uma latrina, outro quarto, uma sala de banhos com uma enorme tina de madeira e estanho muito antiga. O aparato tinha uma considerável camada de pó acumulado no fundo.
            Não parecia haver mais ninguém na sala além dela, então Siana decidiu sair. Sorrateiramente, abriu a porta principal. Viu-se no que parecia ser uma pequena rua charmosa, com árvores e pavimento de pedra. A casa onde estava tinha outras semelhantes geminadas dos dois lados e estas se repetiam longamente, fazendo a rua ser ladeada por muitas casas semelhantes e em sequência, formando um longo corredor único.
            Siana continuava empunhando seu candelabro como uma arma, mas dentro de sua cabeça já preparava outras magias de defesa ou ataque se fosse necessário. Como bardo, durante o treinamento com Phidain, aprendera todas as magias comuns aos bardos e mais algumas um pouco mais complexas. Não se sentia absolutamente indefesa, mas a insegurança e a falta de reconhecimento do lugar a causavam ansiedade. A própria ansiedade lhe fazia questionar se as magias que sabia eram boas, efetivas ou ainda, se ela as lembraria de utilizá-las.
            A rua concluiu-se naturalmente ao alcançar uma praça singela, característica dos pequenos vilarejos. Ao contrário dos pequenos vilarejos, a praça continha mais de um templo. Além dos comuns, para Lathander e Chauntea, haviam templos de vários outros deuses. Além disso, numa ponta um pouco mais afastada e dentro de um grande terreno, havia uma pequena torre de pedra malcuidada, com limo crescendo entre os pedregulhos e falhas no que deveria ser uma circunferência perfeita. Acima da porta de madeira dupla à frente da torre, um símbolo em uma bandeira que tremulava chamava a atenção: sete estrelas azuladas rodeando uma névoa vermelha que serpenteava em direção ao céu.
            Mystra. A deusa da magia de Faerûn contava com templos e escolas de magia espalhadas por todos os continentes, com um grande contingente de adeptos. Este parecia ser mais um dos locais onde Mystra era cultuada, ou uma escola onde seus ensinamentos de benevolência e magia eram transmitidos.
            Naquele momento, Siana decidiu que tentaria mais uma vez. Não sabia onde estava, quem poderia atentar contra sua segurança, de quem teria que se esconder ou o que teria que provar. Sentia profundamente a presença de Mystra, de uma forma que jamais sentira com os outros deuses. Totalmente ciente de que não soava uma escolha sábia, Siana começou a andar em direção ao templo.
            A cada passo, percebia o quão perdida estava, há quanto tempo não via seus pais, o quão abandonada Phidain a havia feito se sentir. Sabia que sua família provavelmente estava muito preocupada por causa de seu desaparecimento. Ainda assim, Siana caminhava. A cada passo, a certeza de que deveria tentar mais uma vez o treinamento na magia arcana. Sabia que depois de tudo o que lhe havia acontecido, era outra pessoa. Se sentia mais inteira, mais capaz, mais confiante. Parecia sentir a mão espectral de Mystra a guiando pelos ombros, não permitindo que Siana se desviasse mais de seu próprio destino.
            Quando chegou à porta da torre esticou a mão para bater, mas antes que pudesse produzir qualquer som a porta se abriu.
            “Sim?”, disse o homem em robes roxos. Era um homem novo, pouco mais velho do que Siana. Tinha cabelos ruivos à altura do queixo, um pouco mal cuidados e mal penteados. Seu rosto era cheio de sardas sobre sua pele muito branca, e seus olhos verdes transmitiam bondade.
            “Eu... queria saber... se...”, começou Siana, de forma desajeitada.
            “Queria saber se pode se juntar a nós, né. Eu sei. Venha, nosso superior está esperando você.”
            “Como assim me esperando? Isso não faz sentido, eu... eu nem sei onde estou e...”
            “Você está na cidade de Mandon, seu nome é Siana e estamos esperando você.”
            “Mas... mas... mas...”
            “Bem, não temos o dia todo. Você vem ou não vem?”
            “Eu... vou... mas...”
            “Então entre!”
            Sem pronunciar palavra, Siana obedeceu ao jovem mago. Entrou cautelosamente na torre, seguindo os passos do anfitrião. O mago a conduziu para o andar superior, onde um vestíbulo aconchegante dava passagem para várias salas, todas com portas roxas fechadas. Em uma delas o jovem mago bateu três vezes e a porta se abriu. Atrás de uma mesa grande, cheia de papéis e pergaminhos amontoados, havia a figura inconfundível e estereotípica de um velho mago, com longos cabelos brancos e uma barba cheia da mesma cor. Seus olhos eram como os do mago jovem, extremamente benevolentes. A boca do velho virou-se em um sorriso sincero assim que viu Siana. Ao contrário dele, Siana demonstrava confusão e consternação pela recepção inesperada. Sentia-se um pouco invadida, não esperava que aquela fosse ser a reação de alguém ao abrir aquela porta.
            “Siana! Que maravilha! Finalmente você chegou”, cumprimentou o mago idoso.
            “Oi...eu...como você sabe quem eu sou?”, indagou ela.
            “Oras, já estamos te esperando há tanto tempo! Oh, que cabeça a minha! Meu nome é Garek Whitebeard, e eu vou ensinar você aquilo que você mais necessita e gostaria de aprender.”
            “Eu...”, Siana tentou, mas as palavras fugiam de seus lábios como coelhos de raposas famintas.
            “Você não quer ser maga? Pois bem, vamos trabalhar nisso! Temos um longo caminho!”, disse ele antes que Siana pudesse gastar mais alguns segundos constrangedores tentando encontrar o que responder.

            Garek saiu de trás da mesa com alguma dificuldade. Seus robes eram roxos como os do jovem mago. O homem parecia tão velho e encurvado que de pé ele era pouco mais alto que Siana. Aproximou-se dela, pegou sua mão e a conduziu para fora da sala.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

25 – Alguém chamado Nabara

            Em fila, os cinco conseguiram alcançar o salão de onde vieram. Os lagartos gigantes não estavam visíveis, e eles presumiram que já tivessem fugido também.
            Olharam a plataforma por onde desceram, com o banco circular a bacia sagrada. Não havia nenhum mecanismo evidente que parecesse fazer a plataforma ser ativada para que subisse novamente. Era como se a plataforma ficasse na cabeça de um grande parafuso, que entrava e saía do solo por um grande pedestal, como o corpo do parafuso, que seguia um trilho espiralado.
            “Ai não... isso não...”, disse Navere, em tom muito baixo. Atrás deles, o corredor já estava completamente colapsado. O grande salão escuro onde estavam parecia rugir furiosamente, mas ainda não havia cedido à pressão do desabamento.
            Askáth pareceu ter uma ideia. “Sentem-se no banco! Rápido!”, disse ele.
            Obediente, mas desconfiadamente, os outros sentaram-se com pressa no banco circular mais uma vez. Ao contrário da vez anterior, Askáth sentou entre eles. De uma pequena bolsa de pano amarrada à cintura, tirou uma bela esmeralda brilhante.
            Os outros quatro olharam incrédulos enquanto Askáth depositava a gema no fundo da bacia, onde parecia encaixar muito bem. Assim que ele a soltou, a plataforma começou a iniciar o movimento de subida.
            Os sons de desmoronamento chegaram à sala onde estavam, mas as paredes naturais apenas racharam, deixando grandes pedregulhos se desprenderem e rolarem em direção ao meio do salão. Quando chegaram ao andar superior, os sons cataclísmicos haviam cessado.
            No salão do templo, nada parecia ter mudado. As estátuas e arte não pareciam ter sofrido com os danos estruturais que haviam derrubado todo o subsolo do templo.  Saíram rapidamente, com medo que finalmente o templo sucumbisse à pressão. Quando alcançaram o bosque do lado de fora, puderam finalmente respirar com mais calma, inspirando com fartura o ar desprovido de partículas da poeira grossa.
            “Siana... Siana... Siana...”, repetia Navere, em voz muito baixa. Randal observava a entrada do templo, exibindo uma expressão de pesar.
            Thaal ajoelhou-se e começou a rezar.
            “Askáth, precisamos fazer alguma coisa. Esses aí não vão ajudar em nada por bastante tempo.”, disse Desmond, andando nervosamente. “Siana não estava lá. Ela não pode ter estado lá esse tempo todo, nós procuramos por todos os lados, por tanto tempo! Eu me recuso a acreditar que ela tenha ficado lá e... e...”
            “Morrido.”, disse Randal. “Sim, eu também me recuso a acreditar nisso, mas as evidências são muito fortes, você precisa concordar”.
            “Ainda assim, temos que tentar. Temos sempre que tentar. E ainda tem... todos os Amlugnehtar para acharmos e o resto do Culto para pararmos e... e...”
            “Calma, Desmond. Vamos por partes. O que encontramos ali dentro? Temos dinheiro, joias, armas e... Thaal, o que você achou?”, disse Askáth.
            Thaal não respondeu. Ajoelhado, tinha uma das mãos estendida à frente do corpo e a outra aninhando a insígnia de Torm que levava no peito. Askáth decidiu que não valia a pena esperar e tomou-lhe a bolsa que carregava. Thaal não se mexeu, embora parecesse impossível que ele não tivesse notado que sua única bagagem lhe fora tirada.
            Askáth sentou-se no chão com as pernas abertas, abriu a bolsa de Thaal e despejou o conteúdo no chão. Como uma criança mexendo em objetos dos pais, pegava cada pergaminho, carta e objeto como se não o compreendesse.
            Desmond sentou-se ao seu lado e começou a triar os pergaminhos, inicialmente entre os compreensíveis e os completamente fora das capacidades deles. Randal e Navere eventualmente se recompuseram e sentaram-se, ajudando a compreender o achado.
            Em um pergaminho, leram instruções sobre como guardar o tesouro que haviam angariado;
            Em um pedaço de papel, haviam ordens para que Loric fosse observado de perto, pois estava manifestando comportamento muito estranho. Na assinatura constava um “N”;
            Em um pergaminho longo, havia uma lista de cidades, com endereços especificados em cada uma delas;
            Em um pergaminho com selo oficial, alguém chamado Nabara se intitulava responsável pela resistência do Culto e prometia que as raízes seriam reerguidas e os objetivos tradicionais seriam retomados. Uma série de assinaturas se seguia, de nomes que nenhum deles conhecia;
            Em um pedaço de papel também com o timbre do Culto, havia um juramento a Tiamat, que envolvia a penitência eterna pela falha no ritual de invocação.
            Em outro pergaminho havia uma magia escrita em belas runas. Se esta fosse lida em voz alta por alguém que a conhecesse, seria executada instantaneamente. Navere a conhecia. Antes que outros pudessem compreender as estranhas runas, Navere guardou o pergaminho em sua própria bolsa.
            Finalmente, no livro retirado do baú, descobriram vastas instruções entremeadas por fatos históricos, sobre a criação de dracolichs. O livro tinha “Dracolichs: um guia”, escrito em tinta dourada em baixo relevo na capa negra.
            Em uma das páginas do livro, um belo desenho a tinta de uma dracolich chamava a atenção. O corpo tinha o formato de um dragão, mas não havia carne, nem escamas. Apenas o esqueleto perdurava, e este parecia vivo e muito perigoso. A dracolich do desenho era imponente e empunhava sua enorme garra esquelética na direção de humanos diminutos.
            Havia menção de dragões que foram mortos em batalhas serem transformados em dracolichs, mas a maioria dos dragões cromáticos que eram transformados passavam pelo processo ainda em vida. Seus corpos, depois do ritual, ainda aparentavam como eram antes. Com o passar do tempo, sua carne apodrecia e seus ossos remanesciam, dando-lhe a aparência conhecida das dracolichs.
            O processo envolvia também uma filactéria, um recipiente mágico que é capaz de guardar a alma do dragão morto, tal qual recipiente semelhante abriga a alma das lichs comuns. Mesmo que o corpo do dragão seja destruído, sua alma perdurará. Apenas a destruição completa do receptáculo do espírito dracônico causará a morte real da dracolich.
            O livro detalhava com afinco cada passo necessário para a realização do ritual. O procedimento era profano, como toda magia necromântica. Ao terminarem de ler, suas bocas foram tomadas por um sabor metálico, e todos eles perderam a fome.
            Thaal continuava rezando. Começaram a guardar de volta na bolsa tudo aquilo que haviam conseguido juntar, e sentaram-se em círculo, perto do clérigo, para discutir seu destino e o que poderiam fazer para encontrar Siana e os Amlugnehtar. Concluíram que não desistiram dela.

Olha só, parece que os encontramos!

            Navere não conseguiu piscar. Sua respiração parou, e ele ficou completamente imóvel. Os outros levantaram a cabeça, procurando a origem da voz. Demoraram mais alguns segundos para localizá-la: mais uma vez, dentro das próprias mentes.
            Mestre.
Vejo que tiveram bastante trabalho desde que nos falamos da última vez.
            Navere deixou escorrer uma lágrima do canto do olho. Ele permanecia imóvel. Thaal parou de rezar, abaixou a mão e conseguiu se levantar.
            “QUEM VEM LÁ?!”, perguntou ele, firmemente.
            Clérigo, não adianta, vocês virão conosco.
            “MOSTRE-SE!”, gritou Thaal de volta.
            Mas se você insiste...
            De trás da árvore mais próxima saiu um illithid. Da outra, um pouco mais ao lado, saiu outro. Alguns segundos depois e mais de trinta árvores daquela parte do bosque tinham produzido illithids saindo de suas sombras.
            Além deles, uma grande quantidade de pessoas vinha caminhando na direção dos cinco, denunciada pela marcha irregular de centenas de pés pisando em folhas secas do bosque.
            Menos de um minuto depois, eles estavam rodeados por mais de duzentas criaturas. Illithids, lagartos gigantes, cultistas em robes simples, magos, magos vermelhos de Thay. Entre eles ainda havia dois uchuulons, como aquele que viram durante a fuga, e um enorme beholder. Com um olho central esbranquiçado e sua carne parecendo decrépita, apontava os tentáculos arroxeados cheios de olhos para o grupo. O corpo do beholder pairava a meio metro do chão, fazendo sua boca gigantesca e cheia de dentes afiados ter espaço para abrir ameaçadoramente. De fato, ela pendia aberta, mostrando-se pronta para atacar.

            Vocês ainda estão atrapalhando muito... teremos que levá-los. Se vocês tivessem se comportado, isso não teria que acontecer.

            Nenhum deles conseguia se mexer. Mestre parecia tocar fundo em suas mentes, tornando-os incapazes de reagir. Apesar disso, Navere tentava, com todas as forças, estender o braço para dentro de sua bolsa.
            Ele conseguiu murmurar alguma coisa. Os outros conseguiram ouvir dentro de suas mentes, por causa do elo mental catalisado por Mestre.
            “Que vocês todos morram.”, disse Navere.
            De forma completamente inesperada, aquelas centenas de pessoas começaram a avançar na direção deles. Mestre não pronunciou mais nada, mas a fúria pôde ser sentida nas mentes de todos. Era como se todos eles ali, inclusive os cultistas, monstros e até animais do bosque fossem um só. Sentiam em Mestre e em todos a vontade visceral de que eles fossem dilacerados, comidos vivos por todos aqueles monstros aberrantes.
            O beholder avançou mais rápido do que todos, e estava muito próximo. O cheiro de sua carne podre chegava aos narizes deles. Um de seus tentáculos se projetou na direção deles. Um raio vermelho atingiu o chão perto dos pés de Navere, mas isso não o impediu. Uma grande quantidade de setas e flechas foram atiradas na direção deles. Como os atacantes se moviam, nenhuma delas teve mira suficiente para acertá-los.
            O bardo retirou de sua bolsa o pergaminho. Em voz alta, leu a magia, sentindo Mestre e todos os outros ficarem mais e mais enfurecidos a cada palavra proferida.
            Sentiu o bafo do beholder tocar-lhe a face no último instante.

            Então, tudo ficou em silêncio.

24 – Apenas Cinco

            A energia condensou-se em um raio de energia necrótica que atingiu Desmond em cheio no peito. Sua pele pareceu subitamente mais pálida, seus braços e pernas um pouco mais finos.
            “Corram!”, disse Desmond, tentando se manter erguido depois do golpe mágico. Ele conseguiu pular de cima da mesa e alcançar os outros que já fugiam através da porta. Olhou para trás e acertou o mago que já corria atrás deles. Conseguiu girar o corpo e disparar a besta. A seta atingiu o mago no abdômen, prendendo o manto contra o corpo dele. Ainda assim, o mago continuava a perseguição. Atrás dele, um outro homem estendeu sua própria besta na direção dele. O disparo passou zunindo ao lado da cabeça de Thaal, o penúltimo da fila.
            Virando para trás, Navere atirou sua onda elétrica na direção do mago, que desviou. A onda então atingiu o rosto do cultista com a besta, que caiu desacordado. Atrás dele seguia mais um cultista, que se preparava para conjurar alguma magia. Askáth parou, encostou as costas na parede, deixou seus amigos passarem e esperou Desmond passar. Quando percebeu que o mago vermelho que seguia na frente estava próximo, atirou-se de surpresa na direção dele e cravou duas adagas em seu peito. O mago caiu. O movimento fez com que as adagas, ainda seguras pelas mãos de Askáth, fossem arrancadas do golpe fatal. A queda inesperada do mago fez o cultista que havia começado a conjurar a magia se desequilibrar, caindo por cima do mago. As costas expostas receberam golpes repetidos das adagas de Askáth, ainda pingando sangue do mago vermelho.
            Por mais alguns instantes, os cinco continuaram correndo. Askáth era o único que havia notado que todos além deles estavam mortos. Quando todos pararam de correr e começaram a voltar, o ladino já estava agachado, vasculhando os bolsos dos robes e conferindo se todos haviam mesmo morrido. O que tinha sido atingido pelo raio elétrico de Navere ainda tentava respirar. Teve sua garganta cortada sem que Askáth hesitasse.
            “Acho que podemos voltar”, disse Siana.
            “Parece seguro. Vamos ver se encontramos alguma coisa sobre as atividades deles.”
            Seguiram juntos de volta, vasculhando todos os corpos que encontraram. Os três que eles mataram carregavam algumas armas, componentes mágicos e um pequeno pergaminho. Ao abrirem, leram:


O mago Loric enlouqueceu e está atacando todos os outros no templo. Yahun conseguiu enviar um pedido de ajuda, mas não respondeu mais a nenhuma tentativa de contato.
            Loric tinha uma altíssima patente e é muito perigoso. Matem-no.
Nabara

            “Bem... que ele era louco, realmente não podemos negar...”, disse Navere. “Vamos dar uma olhada com mais calma nas coisas por aqui.”
            Ultrapassaram a entrada do corredor. No corpo de Loric, encontraram uma esmeralda num saquinho de couro preso à cintura. No corredor, puderam ver que Loric matou mais seis cultistas antes de ser finalmente morto por Desmond. Seu corpo ostentava todo tipo de ferimento. No corredor, dois cultistas com bestas, três magos e um clérigo jaziam imóveis, sangrando ou queimados. Em seus corpos, o grupo recuperou uma chave, algumas moedas e joias. Thaal se recusava a procurar itens interessantes nos mortos. Ao ver Askáth, Desmond e Navere pegando as moedas e joias e dividindo entre eles, sentiu o estômago revirar-se. Siana também não se sentia bem em ficar com os valores, mas estava ajudando a procurar pistas sobre as atividades do culto. Randal estudava as armas que eles recolheram, separando o que parecia ser útil do que estava muito danificado.
            “Temos que olhar... aqueles ali.”, disse Randal. Askáth, Desmond e Navere invadiram sem cerimônia a sala com a pilha de corpos. Procurando com alguma pressa, encontraram apenas alguns itens comuns, como parcas moedas, pergaminhos, penas e tinta, cantis. Em um deles, um pouco mais velho e com robes mais bem trabalhados, havia uma chave em um cordão no pescoço. Apesar de obviamente mais importante e de aparência imponente, o homem estava tão morto quanto os outros.
Thaal e Siana foram abrir as outras portas para tentar descobrir mais informações. Randal entrou na sala com os outros e mais uma vez incumbia-se da tarefa de selecionar armamento interessante.
            Thaal entrou em uma sala que parecia ser um ambiente de estudo, não de todo diferente das catacumbas dos illithids. Haviam muitas estantes e uma escrivaninha coberta de papéis. Enrolou-os todos cuidadosamente e guardou-os em sua bolsa. Siana abriu a porta do recinto ao lado, que certamente abrigava um dormitório para uma pessoa. Era um quarto relativamente bem decorado, utilizado recentemente. Havia um baú fechado à chave, um guarda roupas, um espelho e um tapete limpo e trabalhado no chão. A vela que estava ao lado da cama tinha sido queimada até a metade, e a cera se acumulava sob a base.
            Thaal viu Siana abrir uma segunda porta que ficava dentro do dormitório, passar por ela e deixá-la fechar naturalmente.  Ele saiu do ambiente e foi investigar a sala gêmea à que guardava a pilha profana de corpos, geminada a ela. Ambas eram dormitórios simples, com colchões de feno colocados em fila no chão. Aproximadamente vinte colchões estavam naquela sala, presumivelmente quantidade semelhante à da sala irmã.
            Ao continuar procurando, encontrou uma outra sala onde havia uma pequena quantidade de tesouro sendo guardada, em pequenos baús. Decidiu não mexer neles, mas entendia que para os rituais do Culto havia uma grande demanda de valores.
            “Askáth... Desmond... tem uma coisa aqui pra vocês!”, chamou ele. Thaal sabia que não conseguiria roubar aquele tesouro, mesmo que isso significasse uma perda importante para o Culto. “Sumam com isso daqui antes que eu desista.”
            Os dois ladinos começaram a recolher o tesouro avidamente, dando preferência às moedas de maior valor. Distribuíram o dinheiro entre suas próprias bolsas, que foram insuficientes. Então, chamaram Navere e Randal, que não se opuseram a carregar mais em suas próprias. Thaal não quis ajudar.
            “Já que você não vai carregar o peso da prosperidade”, disse Askáth, “pelo menos vá pegar a bolsa de Siana para enchermos de dinheiro. Não acho que ela vá se opor.” Askáth entregou a chave  que tinha encontrado para Navere, que logo descobriu que ela abria o baú que Thaal havia indicado naquele dormitório.  
            Thaal voltou à sala onde tinha visto Siana pela última vez. Navere estava lá, retirando uma varinha, um livro e algumas joias e valores de dentro do baú que tinha destrancado. Thaal chamou por Siana, em tom normal de voz.
            Não teve resposta.
            Abriu a porta onde Siana havia entrado, que parecia ser uma latrina. O cheiro era muito ruim, e a sala de tamanho bem pequeno. “Siana?”, disse ele. Nada.
            Voltou para onde eles estavam.  “Vocês viram Siana? Ela estava aqui agora mesmo!”
            “Como assim, vocês viram Siana? Ela estava com você!”, disse Randal, perdendo um pouco a calma.
            Randal, desde que vira Siana pela primeira vez, sentira que a menina franzina tocara seu coração de forma paternal. A semelhança com sua filha era ligeira, mas o pai saudoso enxergava nela o suficiente para sentir a ternura paterna que havia estado adormecida desde a perda da família. Quando a levara nos braços do covil dos illithid até a restauração de sua saúde, criara laços profundos com a jovem barda.
            “Ela estava aqui agora mesmo, eu juro! Entrou ali naquela latrina...”
            “Deve estar com uma dor de barriga e tanto!”, disse Askáth. Sua brincadeira não provocou risos, e ele voltou à tarefa de encher seus bolsos de moedas até que ficassem muito gordos e pesados.
            “Siana!”, começou Randal. Não achava que era uma boa ideia gritar a plenos pulmões ali naquele lugar tão hostil, mas não conseguia fazer de outra forma. “Siana! SIANA!”, gritava. A voz dele tremulava na sílaba final do nome da barda, denunciando o auto controle que se esvaía rapidamente.
            “Calma, Randal. Nós vamos encontrá-la”, disse Desmond. “Já encontrei todo o tipo de pessoa em todo o tipo de situação.
            “MAS NÃO ENCONTROU SEUS AMIGOS! E AGORA, POR SUA CAUSA, PERDEMOS A SIANA!”, explodiu Randal.
            Desmond não conseguiu responder. Sentiu profundamente o ataque do mercenário. Era verdade, ele havia perdido as únicas pessoas que amara a vida toda. Eu sou um fracasso. Não vou encontrar nenhum deles, insistiu seu cérebro.
            Askáth desistira de guardar mais dinheiro e se juntara aos outros na tentativa de encontrar Siana em todas as portas.
            Mais de dez minutos se passaram e eles estavam ficando progressivamente mais nervosos. Navere estava particularmente calado. Randal se movia com rapidez, fruto do desespero.
            “SIANA! SIANA!”, gritava Randal, com a voz sendo ecoada por Thaal. Desmond e Askáth procuravam de forma silenciosa, enquanto que Navere parecia segui-los, perdido.
            “Siana...”, disse Navere, muito baixo. Depois de tudo o que passaram juntos, ele estava transtornado com a ideia de ter colocado Siana em risco mais uma vez.
            Enquanto eles procuravam, deixaram de perceber que seus passos causavam a queda de pequenos pedriscos vindos de rachaduras no teto.
            RRRRRRRRRRRRRRrrrrrrrrrrrrrr...
            Um rugido baixo, como um terremoto, pareceu envolver-lhes de súbito. As paredes do corredor que tinha sido palco da carnificina entre Loric e seus ex-companheiros do Culto estavam muito marcadas por explosões mágicas de todos os tipos.
            No centro da marca de uma bola de fogo muito grande, uma rachadura começou a alargar-se com muita rapidez. Outras a seguiram, mimicando os padrões fractais dos trabalhos do templo. O rugido ficou muito mais alto.
            Saindo dos ambientes em que se encontravam, enfileiraram-se no corredor com os rostos voltados para a origem do som ameaçador. Seus olhos marejados pelo medo refletiram a imagem que viam: o teto e as paredes do corredor, vindo da direção da Sala onde tinham conseguido matar os cultistas remanescentes, desmoronavam rapidamente. O teto caía primeiro, seguido de perto pelas paredes que logo antes haviam servido de sustentação por milênios.
            Sem hesitar mais nenhum momento, eles se viraram e começaram a correr, fugindo do desmoronamento que quase os alcançava. Por último da fila, Navere tentava arrancar as lágrimas dos olhos para conseguir enxergar o caminho. Seus calcanhares foram atingidos por pedaços pequenos de entulho que caía do teto.
            Ele correu o mais rápido que pôde.