sábado, 21 de novembro de 2015

21 – A fita vermelha e Mielikki, a Deusa da Floresta

Thaal se incumbiu de direcionar Askáth, Desmond, Siana, Randal e Navere até o lugar onde a ordem de Torm lhe havia enviado para a investigação da possível atividade recente do Culto do Dragão.
O lugar era um pequeno templo abandonado no bosque perto de Águas Profundas, um pouco além de onde eles tinham emergido quando saíram das catacumbas para onde foram levados. A caminhada até lá tomou-lhes aproximadamente duas horas.
Durante o trajeto, algumas vezes eles se sentiram observados, mas as inspeções que conduziram os levaram apenas a resultados negativos. Atribuíram a sensação ao nervosismo e ao medo. Desmond parecia estar transtornado, às vezes falando sozinho, às vezes andando por muito tempo sem mover o rosto da mesma posição à frente do corpo. As adagas e a rapieira penduradas em seu cinto balançavam com cada passo que ele dava. A besta, presa às costas, parecia mais firme.
Todos haviam se armado como puderam antes de saírem. Askáth juntou algumas adagas que tinha em casa. Deu também uma velha espada a Randal, já que a original do guerreiro foi perdida durante o sequestro. Thaal prendeu uma maça com espinhos à cintura. Siana e Navere pareceram nervosos com as escolhas e acabaram levando algumas facas e espadas curtas também, todas embainhadas. Siana tentava não encostar desnecessariamente nas bainhas de couro, não parecendo se sentir à vontade com as armas nem dentro da proteção.
Quando começaram a se aproximar do local determinado, encontraram uma árvore que tinha um pedaço de tecido vermelho amarrado em seu tronco. A fita era longa e rasgada displicentemente na ponta. Tremulava gentilmente com o vento. Não havia mais indicação nenhuma, mas Thaal sabia que a fita vermelha indicava que eles tinham seguido as instruções e mapas corretamente.
Ao longe, atrás de um aglomerado de árvores, avistaram uma clareira. No centro dela, grandes colunas de pedra cheias de musgo e trepadeiras sustentavam uma cobertura reta de pedra. Sobre ela, uma cortina de cipós pendia sobre a entrada, que ficava logo abaixo desta laje.  Abaixo dela, uma grande porta de madeira escura trabalhada com desenhos em baixo relevo barrava a entrada do templo desativado. Os desenhos mostravam uma bela árvore, com a base aproximadamente no meio da porta. Os galhos se estendiam em fractais para a parte de cima da porta, enquanto que a partir da base, as raízes se estendiam para dentro do solo fictício no mesmo padrão.  No centro da imagem, à frente da árvore, estava esculpida a cabeça de um unicórnio, com feições plácidas e solenes.
“Mielikki...”, disse Thaal, parecendo um pouco entristecido. Apesar de seguir Torm, o clérigo respeitava as divindades bondosas e justas da mesma forma. Um templo de Mielikki, a deusa da floresta, ser profanado para atividades tão grotescas deixava Thaal absolutamente desconcertado.
A porta estava trancada. Ao contrário do resto do templo, a fechadura brilhava e a madeira da porta parecia ter sofrido pequenos danos ao redor do metal. Ao tentar ouvir, Desmond encostou a lateral do rosto na porta, muito discretamente. “Nada, parece completamente vazio”, informou o ladino a todos.
 “A fechadura foi trocada recentemente”, disse Desmond, de forma sagaz. “Não que isso seja um problema...”
Antes mesmo de concluir a frase, Desmond já havia destrancado a porta e a empurrado para dentro, fazendo um barulho característico. Askáth ficou muito impressionado com as habilidades de Desmond para o arrombamento de portas.
 Desmond deu seu primeiro passo para dentro, um pouco encurvado e com os braços abertos, na tentativa de conter o avanço dos outros para dentro do templo.
“Não é seguro”, murmurou ele. “Acho que temos uma armadilha aqui.”
Desmond olhou para Askáth e apontou para dois pares de círculos nas paredes próximas à porta. Apontou para o chão, onde dois dos blocos de pedra mais próximos à porta pareciam ter menos poeira entre eles do que os outros em volta. Com o cabo da rapieira, Desmond tocou um dos blocos e pressionou-o. Dos dois lados da parede, dardos emergiram rapidamente dos círculos que flanqueavam a porta. Os quatro dardos se cruzaram no espaço vazio acima da rapieira. Quando eles caíram no chão. Desmond apertou mais uma vez o mecanismo. Nada.
Avançaram tentando pisar fora dos blocos acionadores da armadilha; mesmo assim, quando Siana pisou em um deles depois de perder o equilíbrio, o mecanismo ainda não estava armado e nada aconteceu.
Quando finalmente ultrapassaram todos, enfileiraram-se e observaram o salão à frente. As janelas eram cobertas por vidros foscos, mas estavam fechadas com madeiras que impediam a passagem de luz adequadamente. A única fonte de luz era a grande porta que agora estava escancarada às costas deles. No feixe de luz que ela deixava invadir o salão, as sombras deles estavam marcadas, parecendo muito mais compridas do que o normal, por causa da incidência da luminosidade. Uma grande árvore petrificada estava no centro do templo escurecido. Sem folhas, com um grande oco no meio. Nele, dentro de uma trama de prata feita para se encaixar como uma bela grade com formas curvas, um brilho verde podia ser visto daquela distância.
Logo à frente da árvore, estava a estátua de uma mulher com um vestido longo e uma capa, empunhando um arco muito fino. Ao lado dela, um enorme unicórnio, esculpido também de forma impressionantemente realista acompanhava a composição. Não haviam bancos, mas resquícios de tecidos no chão pareciam indicar que os seguidores de Mielikki daquele templo costumavam rezar apoiando-se em almofadas ao redor da árvore e das estátuas.
Ao longo das paredes, longas colunas se estendiam em espaços equidistantes, subiam até o teto e dobravam-se à curvatura da abóbada, sustentando o teto côncavo uniformemente. Nestas colunas estavam suportes para tochas em formato de folhas e vinhas, provavelmente não utilizados há milhares de anos.
Lado a lado, os olhos deles pareceram se arregalar com a beleza do lugar. O espanto logo transformou-se no entristecimento que Thaal também havia sentido ao perceber a profanação de um lugar sagrado como aquele.
Enquanto os olhares ainda eram atraídos pelo brilho verde dentro da proteção de prata, de trás de cada uma das duas colunas mais próximas de cada lado, formas humanoides se moveram de forma sincronizada e saíram da obscuridade.
As quatro criaturas tinham a pele arroxeada, com grandes e salientes orelhas pontudas como as de um elfo. Tinham cabelos negros, presos para cima ou pendendo em tranças que bloqueavam a frente dos olhos. A falta de luz dificultava a visualização de detalhes, mas enquanto caminhavam, uma cauda grossa parecia balançar atrás de cada um. Em seus braços e pernas, joias e proteções de latão brilharam com a parca luz da porta. Os rostos das criaturas tinham a característica mais marcante, uma série de protuberâncias longas e pontudas, com pequenos espinhos nas pontas, que se enfileiravam, dando a impressão de comporem uma barba feita de cobras. A barba serpenteava, cada uma das protuberâncias independentemente, como tentáculos espinhentos.
Nas mãos, cada uma das criaturas trazia uma enorme alabarda trabalhada.
“Boa... noite... amigos!”, disse Desmond, nervosamente. As feições das criaturas não mudaram, e eles deram mais dois passos sincronizados na direção deles.
Siana, inesperadamente, desembainhou uma de suas adagas e rapidamente a atirou em direção a uma das figuras humanoides. A adaga rodopiou no ar e atingiu a criatura na coxa direita, fazendo com que um filete de sangue amarelado escorresse. No ar começou a pairar o cheiro inconfundível de enxofre.
A criatura não demonstrou dor, mas observou o ferimento e direcionou o olhar para Siana, abrindo um sorriso demoníaco. Siana respondeu com uma onda de choque que saiu de seus dedos, acertando-o em cheio no rosto. A eletricidade pareceu correr pelo seu corpo, produzindo queimaduras de formas fractais como as da árvore esculpida na porta. O raio elétrico produziu uma luminosidade azulada por alguns momentos, distraindo o olhar das outras três criaturas e permitindo ao grupo distinguir detalhes que ainda haviam ficado ocultos, como os grandes olhos alaranjados que as criaturas ostentavam.
Randal urrou guturalmente, segurou a espada com as duas mãos e avançou em carga em direção do inimigo mais próximo. Acertou com muita força o ombro da criatura com o fio da espada,  causando um corte profundo que quase decepou o membro. Com um grito, a criatura respondeu ao ataque, girando a cabeça para tomar distância e acertando toda a barba farpada no rosto de Randal, com bastante força. O rosto do guerreiro sofreu vários cortes lineares e uma forte sensação de queimação e tontura se espalhou do rosto ao pescoço. Em alguns segundos, o mal-estar já havia atingido todo o corpo.
A criatura começou a girar a alabarda com o braço saudável para atingir Randal mais uma vez, mas foi surpreendida por um ataque de Desmond por trás. Antes que a alabarda chegasse ao tórax de Randal, a criatura desabou, morta, aos pés do guerreiro e de Desmond. Em alguns segundos, o corpo se pulverizou, desaparecendo no ar.
Navere inspirou-se por Siana e atingiu a mesma criatura com a magia que também sabia. A segunda descarga de energia fora mais do que o inimigo pareceu suportar, caindo desacordado.
Askáth aproveitou que Thaal levantava a maça para atingir a cabeça de outra criatura e a atacou, pegando-a de surpresa. A adaga fincou-se na lateral do pescoço, que começou a escorrer o mesmo líquido amarelado sulfuroso.
A criatura que ainda estava livre de atacantes balançou a alabarda em um movimento circular e acertou o tórax de Thaal, fazendo-o urrar de dor e baixar a guarda. Ele virou-se e acertou a maça na cabeça desta criatura, que respondeu atacando-o com a barba da mesma forma que o outro atacara Randal. Thaal conseguiu desviar-se girando o corpo. Com a inércia do rodopio, acertou com muita força a maça na caixa torácica do inimigo, quebrando muitas costelas e abrindo um grande buraco. Fumaça amarelada escapou do ferimento, deixando o coração exposto por baixo. A criatura caiu, desacordada; o coração ainda batia sob as costelas destruídas.
Askáth removeu a adaga do pescoço do monstro humanoide, desviando da barba que era balançada na direção de seu rosto. Enfiou a adaga novamente, na têmpora do inimigo, que caiu inerte aos seus pés. A criatura se dissolveu em pó e desapareceu.
Ao som da última criatura atingir o chão, Desmond não hesitou; em cada um dos dois que permaneciam vivos, mas desacordados, o ladino deu o golpe de misericórdia. Assim que ele os atingiu fatalmente, também pulverizaram-se e desfizeram-se em nada.

Os seis entreolharam-se, arfando. Thaal estava ferido, mas ainda permanecia de pé. Askáth, Navere, Siana e Desmond estavam ilesos. Randal estava com o rosto ferido, mas não parecia sofrer com a gravidade dos cortes superficiais. Apesar disso, em alguns segundos, o guerreiro não teve forças e desmaiou. Siana se agachou ao lado de Randal, tocou em sua testa e espantou-se com a maior febre que já sentira.  

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