terça-feira, 24 de novembro de 2015

23 – Loric, o Louco

Siana sentiu um calafrio subindo pela sua espinha. A cada palavra que o estranho anfitrião proferia, suas vértebras pareciam reverberar em cacofonias e acordes desconfortáveis.
            Não sentiam haver outra escolha além de seguirem o estranho homem. Em fila, deram passo atrás de passo, avançando para dentro da sala. Os lagartos gigantes não recuaram, apenas afastaram-se, flanqueando o grupo que seguia alinhado. A figura permanecia avançando na frente deles.
            Askáth e Desmond se entreolharam, esperando uma oportunidade para atacarem por trás.
            “Oh, nem pensem nisso! Temos tempo para hostilidade depois, primeiro temos que conversar, conversar!”, disse o homem, inesperadamente. Parecia, de alguma forma, ter lido os pensamentos que cruzaram as mentes dos dois ladinos. “Vai ser tão divertido!”
            Askáth ficou muito desconcertado, seus olhos arregalados quase maiores que sua boca muito aberta . Desmond pareceu entender que não haveria nenhuma chance de conseguirem fugir inteiros se eles não obedecessem ao homem.
            Ao passarem ao lado dos lagartos gigantes, os seis escutaram suas línguas sibilarem ameaçadoramente. Siana fechou mais os braços, tentando mantê-los a uma distância segura das bocarras assustadoras dos répteis atrozes. Quando a fila ultrapassou os lagartos, estes se posicionaram atrás do grupo e os seguiram de perto.
            Seguiram através da sala. Ao virarem em um corredor, o homem começou a assobiar uma melodia dissonante. O anfitrião os levou até uma sala com uma mesa longa, como de jantar ou reuniões.
            “Venham, venham! Sentem-se aqui!”, disse animadamente o homem, indicando as cadeiras onde deveriam se acomodar. O grupo obedeceu disciplinadamente. Quando estavam todos acomodados, o homem pegou uma varinha que estava em cima da mesa à frente do lugar que escolheu para si. Deu duas batidas com a parte de trás da varinha sobre a mesa, provocando um som seco característico de madeira atingindo madeira.
            “Vocês devem estar se perguntando por que reuni vocês aqui hoje... HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ, não é engraçado? É MUITO engraçado!”, disse o homem, gargalhando alto. “Pois bem, pois bem.” O homem parou de rir subitamente. “Meu nome é Loric, prazer, prazer!”
            “Pra...prazer...”, disse Siana, incerta. Os olhos de Loric passavam informações conflitantes o tempo inteiro e ela estava com muita dificuldade para identificar as verdadeiras intenções do homem.
            “Não fique acanhada, mocinha! Olhe, acho que eu assustei vocês. Não era minha intenção... sabe, velhos hábitos! Deixe eu melhorar as coisas pra vocês”, disse Loric, de forma um pouco mais leve.
            O globo de luz se desfez. Nas paredes, arandelas mágicas feitas de bronze se acenderam, produzindo uma luz arroxeada que emanava de chamas arcanas púrpuras. As chamas pairavam acima de pequenas imitações metálicas de velas escorridas, presas por belos ornamentos que remetiam à folhas e frutas.
            Loric, agora completamente visível, era um homem de meia idade, coberto em longos robes vermelhos muito gastos. Estava descalço, com os pés sujos e as unhas muito estragadas. As mãos se mexiam nervosamente em movimentos que se repetiam de forma cíclica, como tiques complexos.
            Desmond percebeu que suas vestes remetiam aos Magos Vermelhos de Thay, tão presentes no Culto do Dragão. Mas, ao contrário do Culto, Loric não ostentava uma brilhante e uniformemente lisa careca; ao invés disso, Loric tinha tufos de cabelo que pareciam crescer de forma irregular. Onde o cabelo permitia a visão do couro cabeludo, partes de tatuagens tribais estavam visíveis. As tatuagens, em um tom verde azulado, cobriam grande parte de seu rosto em padrões orgânicos.
            “Amigos, amigos, AMIGOS! Sei o que vieram fazer aqui, sei sim.” Os lagartos levantaram as cabeças e olharam para Loric quando ele aumentou o tom de voz, mas não demonstraram maior reação. Estavam acomodados no fundo da sala, enrodilhados como cães sonolentos. Ao contrário de cães, entretanto, os olhos ofídios permaneciam muito alertas.
            “Sabe?”, disse Desmond, muito intrigado.
            “Oh sei. Vieram investigar atividades do Culto!”, disse ele, casualmente. Não pareceu especialmente animado ao anunciar isso. “Vocês não estão me ajudando. Desmond, por favor, fale para seus amiguinhos o que o Culto costumava fazer, sim?”
            Desmond espantou-se profundamente ao perceber que Loric mencionara seu nome sem que eles tivessem formalizado as apresentações.
            “Sim, sim, eu sei o seu nome, e o de todos vocês! Agora vamos, vamos, explique para eles o que o Culto pretendia.”
            “Eles sabem... invocar Tiamat.”
            “TIAMAT! Não é um nome bonito? Cinco dragões em um, todos com cores ótimas para sabermos o que cada uma delas faz, muito didático! Ótimo, e o que aconteceu para que o Culto não conseguisse chamar de volta a Senhora cheia das cabeças?”, continuou Loric.
            “Nós... eu... eu e os Amlugnehtar, com auxílio de muitos poderes em Faerûn conseguimos impedir o ritual de ser completado.”
            “Sim. ISSO.”Loric pareceu repentinamente muito entediado. “Certo, certo, e o que aconteceu com o Culto DEPOIS?”. Loric deitou a cabeça sobre as mãos cruzadas em cima da mesa, fingindo dormir.
            “Nada... foram completamente destruídos.”, concluiu Desmond.
            “E é aí que você se engana, amigo! O Culto vive! VIVE!”, disse Loric, levantando a cabeça de cima da mesa e falando de forma séria e imponente.
            “Ouvimos falar algo sobre isso”, interrompeu Thaal.
            “SIM!  Eles tinham tomado este templo para nós... mas eu resolvi tudo!”
            Loric estava esfuziante. Falava com brilho nos olhos e as mãos inquietas.  “Eu matei TODOS eles, TODOS!”
            “Você o que?”, perguntou Siana.
            “É, eu matei TODOS! Querem ver? Vamos ver, vamos!”
            Loric se levantou de repente. Sem olhar para trás para ver quem o seguiria, começou a se encaminhar para uma outra porta que havia naquela sala.
            Enquanto Thaal, Navere, Randal e Siana se entreolhavam incertos, Desmond e Askáth se puseram a seguir Loric rapidamente. Os outros sentiram que deveriam ir também apenas alguns segundos mais tarde.
            Loric caminhou animadamente batendo palmas e cantarolando. Parou depois de alguns metros, à frente de uma sala. Na porta, marcas de sangue brilhavam, parecendo frescas. O homem escancarou a porta de súbito; a escuridão foi quebrada pela luminosidade que invadiu a sala através da porta aberta. Sob o feixe largo de luz, uma pilha muito alta de corpos ficou evidente. A luz incidiu diretamente sobre os olhos de um dos mortos, que tinha a cabeça mais perto da porta. Sobre o corpo deste, dezenas de outros jaziam com todo o tipo de ferimento, queimaduras, necroses, orifícios.
            “Hi hi hi hi, viram! Eu disse que matei todos eles!”
            “Loric... por que você... os guardou aqui?”, disse Thaal, sem saber como abordar o assunto. “E por que você os matou?”
            “Ora, porque eu disse a eles que começar a levantar dracolichs não era uma boa ideia. Já tinha dado errado antes, da outra vez que tentamos! Eles não gostaram muito do que eu disse... então eu matei todos!”
            Siana estava observando a pilha de corpos quando Loric disse isso. Uma gota de sangue pingou do lóbulo da orelha de um homem careca de bruços até as costas do corpo abaixo deste na pilha. Siana não conseguiu segurar o estômago. Curvou-se e vomitou ali mesmo. Navere segurou-a para que não caísse.
            Desmond encostou na ponta do cabo da adaga. “Oh não, não, não fique preocupado! Eu não faço mais parte do Culto, oh não, não! O Culto acabou, olhe só, todos eles aí. Agora posso fazer o que eu quiser! Posso até... invocar... TIAMAT!”
            A afirmação inflamada foi o que faltava para que os seis percebessem que deveriam parar Loric de alguma forma. Siana ainda limpava os cantos de sua boca, abraçada por Navere. Desmond, Askáth, Randal e Thaal sacaram suas armas simultaneamente.
            “O que foi, amigos, que aconteceu?”, perguntou Loric, virando a cabeça para fitá-los nos olhos. Parecia tentar alcançar os olhares deles ao mesmo tempo. “Oh, acho que vou ter que matar vocês também! Que pena, eu tinha GOSTADO de vocês!”
            Loric esticou as mãos à frente do corpo, afastadas. Entre elas, uma energia alaranjada se condensou, logo formando labaredas que se expandiam exponencialmente. Antes que ele pudesse liberar a bola de fogo que conjurava, algo o atingiu nas costas, dissipando a magia.
            “Eeeei! EU ESTAVA TRABALHANDO AQUI!”, gritou ele. O corredor estreito não permitia que vissem com clareza, mas Desmond pensou ter visto alguém segurando uma besta, apontada para eles, do outro lado do corredor.
            Através de sinais não verbais, os seis perceberam que deveriam sair dali, para conseguirem alguma chance de se defenderem ou fugirem. Aquele corredor era tão apertado que significaria a morte para todos. Seguiram o mais rápido que puderam de volta à sala com a mesa. Desmond foi o primeiro a chegar, subindo na mesa com um movimento ágil como um felino.
            Posicionaram-se atrás da mesa, esperando que os intrusos e Loric viessem em direção a eles. Ouviam sons de explosões, alguns semelhantes a fogos de artifício. Havia uma sequência de clarões de cores variadas que parecia se aproximar cada vez mais da entrada da sala. Alguns gritos também puderam ser ouvidos, transmitindo dor, desespero e loucura.
            “Acabem com o louco!”, ouviram alguém dizer, numa voz diferente da afetada e histérica de Loric.
            “Isso, acabem com ele, ACABEM COM ELE!”, disse outra voz. Desta vez, era óbvio que a sentença puramente irônica viera do próprio Loric. “HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ, acabem com o mago louco!”, ele completou.
            Alguns instantes depois, viram as costas de Loric irromperem pela porta da sala. Ele ainda não havia entrado completamente, mas viram seus braços se juntando à frente do corpo, movimentando-se e produzindo um clarão ígneo muito intenso. Gritos de dor ecoaram da parte mais longínqua do corredor.
            Loric virou-se para dentro da sala, olhando diretamente para Desmond, encurvado em posição de ataque sobre a mesa.
            “Amigos, AMIGOS! Ainda estão aí? Vamos resolver iss...”
            Vuuush.
            Com um som seco e certeiro, Desmond perfurou a testa de Loric com uma seta disparada pela sua besta. Loric caiu de costas, empurrado pelo impacto. Seu manto, que já estava muito sofrido, agora estava aos farrapos. Os poucos tufos que ainda permaneciam na cabeça do mago enlouquecido estavam em chamas. No rosto, o sorriso insano ainda perdurava entre as tatuagens e ferimentos.
            Logo atrás dele, um outro mago, com os mesmos robes vermelhos irrompeu do corredor, passando friamente por cima do corpo de Loric. Seus robes, ao contrário dos do mago louco, eram bem cuidados e novos. Seu rosto, coberto de tatuagens muito nítidas, exibia também um sorriso, mas este muito são e cruel.

            “Vejam só, amigos... vejam quem resolveu aparecer por aqui e nos poupar tanto trabalho!”, disse ele, levantando a mão e começando a concentrar uma energia negra entre os dedos. 

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