Siana sentiu um calafrio subindo
pela sua espinha. A cada palavra que o estranho anfitrião proferia, suas
vértebras pareciam reverberar em cacofonias e acordes desconfortáveis.
Não
sentiam haver outra escolha além de seguirem o estranho homem. Em fila, deram
passo atrás de passo, avançando para dentro da sala. Os lagartos gigantes não
recuaram, apenas afastaram-se, flanqueando o grupo que seguia alinhado. A
figura permanecia avançando na frente deles.
Askáth
e Desmond se entreolharam, esperando uma oportunidade para atacarem por trás.
“Oh,
nem pensem nisso! Temos tempo para hostilidade depois, primeiro temos que
conversar, conversar!”, disse o homem, inesperadamente. Parecia, de alguma
forma, ter lido os pensamentos que cruzaram as mentes dos dois ladinos. “Vai
ser tão divertido!”
Askáth
ficou muito desconcertado, seus olhos arregalados quase maiores que sua boca
muito aberta . Desmond pareceu entender que não haveria nenhuma chance de
conseguirem fugir inteiros se eles não obedecessem ao homem.
Ao
passarem ao lado dos lagartos gigantes, os seis escutaram suas línguas
sibilarem ameaçadoramente. Siana fechou mais os braços, tentando mantê-los a
uma distância segura das bocarras assustadoras dos répteis atrozes. Quando a
fila ultrapassou os lagartos, estes se posicionaram atrás do grupo e os
seguiram de perto.
Seguiram
através da sala. Ao virarem em um corredor, o homem começou a assobiar uma
melodia dissonante. O anfitrião os levou até uma sala com uma mesa longa, como
de jantar ou reuniões.
“Venham,
venham! Sentem-se aqui!”, disse animadamente o homem, indicando as cadeiras
onde deveriam se acomodar. O grupo obedeceu disciplinadamente. Quando estavam
todos acomodados, o homem pegou uma varinha que estava em cima da mesa à frente
do lugar que escolheu para si. Deu duas batidas com a parte de trás da varinha
sobre a mesa, provocando um som seco característico de madeira atingindo
madeira.
“Vocês
devem estar se perguntando por que reuni vocês aqui hoje... HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ, não
é engraçado? É MUITO engraçado!”, disse o homem, gargalhando alto. “Pois bem,
pois bem.” O homem parou de rir subitamente. “Meu nome é Loric, prazer,
prazer!”
“Pra...prazer...”,
disse Siana, incerta. Os olhos de Loric passavam informações conflitantes o
tempo inteiro e ela estava com muita dificuldade para identificar as
verdadeiras intenções do homem.
“Não
fique acanhada, mocinha! Olhe, acho que eu assustei vocês. Não era minha
intenção... sabe, velhos hábitos! Deixe eu melhorar as coisas pra vocês”, disse
Loric, de forma um pouco mais leve.
O
globo de luz se desfez. Nas paredes, arandelas mágicas feitas de bronze se
acenderam, produzindo uma luz arroxeada que emanava de chamas arcanas púrpuras.
As chamas pairavam acima de pequenas imitações metálicas de velas escorridas,
presas por belos ornamentos que remetiam à folhas e frutas.
Loric,
agora completamente visível, era um homem de meia idade, coberto em longos
robes vermelhos muito gastos. Estava descalço, com os pés sujos e as unhas
muito estragadas. As mãos se mexiam nervosamente em movimentos que se repetiam
de forma cíclica, como tiques complexos.
Desmond
percebeu que suas vestes remetiam aos Magos Vermelhos de Thay, tão presentes no
Culto do Dragão. Mas, ao contrário do Culto, Loric não ostentava uma brilhante
e uniformemente lisa careca; ao invés disso, Loric tinha tufos de cabelo que
pareciam crescer de forma irregular. Onde o cabelo permitia a visão do couro
cabeludo, partes de tatuagens tribais estavam visíveis. As tatuagens, em um tom
verde azulado, cobriam grande parte de seu rosto em padrões orgânicos.
“Amigos,
amigos, AMIGOS! Sei o que vieram fazer aqui, sei sim.” Os lagartos levantaram
as cabeças e olharam para Loric quando ele aumentou o tom de voz, mas não
demonstraram maior reação. Estavam acomodados no fundo da sala, enrodilhados
como cães sonolentos. Ao contrário de cães, entretanto, os olhos ofídios
permaneciam muito alertas.
“Sabe?”,
disse Desmond, muito intrigado.
“Oh
sei. Vieram investigar atividades do Culto!”, disse ele, casualmente. Não
pareceu especialmente animado ao anunciar isso. “Vocês não estão me ajudando.
Desmond, por favor, fale para seus amiguinhos o que o Culto costumava fazer,
sim?”
Desmond
espantou-se profundamente ao perceber que Loric mencionara seu nome sem que
eles tivessem formalizado as apresentações.
“Sim,
sim, eu sei o seu nome, e o de todos vocês! Agora vamos, vamos, explique para
eles o que o Culto pretendia.”
“Eles
sabem... invocar Tiamat.”
“TIAMAT!
Não é um nome bonito? Cinco dragões em um, todos com cores ótimas para sabermos
o que cada uma delas faz, muito didático! Ótimo, e o que aconteceu para que o
Culto não conseguisse chamar de volta a Senhora cheia das cabeças?”, continuou
Loric.
“Nós...
eu... eu e os Amlugnehtar, com auxílio de muitos poderes em Faerûn conseguimos
impedir o ritual de ser completado.”
“Sim.
ISSO.”Loric pareceu repentinamente muito entediado. “Certo, certo, e o que
aconteceu com o Culto DEPOIS?”. Loric deitou a cabeça sobre as mãos cruzadas em
cima da mesa, fingindo dormir.
“Nada...
foram completamente destruídos.”, concluiu Desmond.
“E
é aí que você se engana, amigo! O Culto vive! VIVE!”, disse Loric, levantando a
cabeça de cima da mesa e falando de forma séria e imponente.
“Ouvimos
falar algo sobre isso”, interrompeu Thaal.
“SIM! Eles tinham tomado este templo para nós...
mas eu resolvi tudo!”
Loric
estava esfuziante. Falava com brilho nos olhos e as mãos inquietas. “Eu matei TODOS eles, TODOS!”
“Você
o que?”, perguntou Siana.
“É,
eu matei TODOS! Querem ver? Vamos ver, vamos!”
Loric
se levantou de repente. Sem olhar para trás para ver quem o seguiria, começou a
se encaminhar para uma outra porta que havia naquela sala.
Enquanto
Thaal, Navere, Randal e Siana se entreolhavam incertos, Desmond e Askáth se
puseram a seguir Loric rapidamente. Os outros sentiram que deveriam ir também
apenas alguns segundos mais tarde.
Loric
caminhou animadamente batendo palmas e cantarolando. Parou depois de alguns
metros, à frente de uma sala. Na porta, marcas de sangue brilhavam, parecendo
frescas. O homem escancarou a porta de súbito; a escuridão foi quebrada pela luminosidade
que invadiu a sala através da porta aberta. Sob o feixe largo de luz, uma pilha
muito alta de corpos ficou evidente. A luz incidiu diretamente sobre os olhos
de um dos mortos, que tinha a cabeça mais perto da porta. Sobre o corpo deste,
dezenas de outros jaziam com todo o tipo de ferimento, queimaduras, necroses,
orifícios.
“Hi
hi hi hi, viram! Eu disse que matei todos eles!”
“Loric...
por que você... os guardou aqui?”, disse Thaal, sem saber como abordar o
assunto. “E por que você os matou?”
“Ora,
porque eu disse a eles que começar a levantar dracolichs não era uma boa ideia.
Já tinha dado errado antes, da outra vez que tentamos! Eles não gostaram muito
do que eu disse... então eu matei todos!”
Siana
estava observando a pilha de corpos quando Loric disse isso. Uma gota de sangue
pingou do lóbulo da orelha de um homem careca de bruços até as costas do corpo
abaixo deste na pilha. Siana não conseguiu segurar o estômago. Curvou-se e
vomitou ali mesmo. Navere segurou-a para que não caísse.
Desmond
encostou na ponta do cabo da adaga. “Oh não, não, não fique preocupado! Eu não
faço mais parte do Culto, oh não, não! O Culto acabou, olhe só, todos eles aí.
Agora posso fazer o que eu quiser! Posso até... invocar... TIAMAT!”
A
afirmação inflamada foi o que faltava para que os seis percebessem que deveriam
parar Loric de alguma forma. Siana ainda limpava os cantos de sua boca,
abraçada por Navere. Desmond, Askáth, Randal e Thaal sacaram suas armas simultaneamente.
“O
que foi, amigos, que aconteceu?”, perguntou Loric, virando a cabeça para fitá-los
nos olhos. Parecia tentar alcançar os olhares deles ao mesmo tempo. “Oh, acho
que vou ter que matar vocês também! Que pena, eu tinha GOSTADO de vocês!”
Loric
esticou as mãos à frente do corpo, afastadas. Entre elas, uma energia alaranjada
se condensou, logo formando labaredas que se expandiam exponencialmente. Antes que
ele pudesse liberar a bola de fogo que conjurava, algo o atingiu nas costas,
dissipando a magia.
“Eeeei!
EU ESTAVA TRABALHANDO AQUI!”, gritou ele. O corredor estreito não permitia que vissem
com clareza, mas Desmond pensou ter visto alguém segurando uma besta, apontada para
eles, do outro lado do corredor.
Através
de sinais não verbais, os seis perceberam que deveriam sair dali, para
conseguirem alguma chance de se defenderem ou fugirem. Aquele corredor era tão apertado
que significaria a morte para todos. Seguiram o mais rápido que puderam de
volta à sala com a mesa. Desmond foi o primeiro a chegar, subindo na mesa com
um movimento ágil como um felino.
Posicionaram-se
atrás da mesa, esperando que os intrusos e Loric viessem em direção a eles. Ouviam
sons de explosões, alguns semelhantes a fogos de artifício. Havia uma sequência
de clarões de cores variadas que parecia se aproximar cada vez mais da entrada
da sala. Alguns gritos também puderam ser ouvidos, transmitindo dor, desespero
e loucura.
“Acabem
com o louco!”, ouviram alguém dizer, numa voz diferente da afetada e histérica
de Loric.
“Isso,
acabem com ele, ACABEM COM ELE!”, disse outra voz. Desta vez, era óbvio que a sentença
puramente irônica viera do próprio Loric. “HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ, acabem com o mago
louco!”, ele completou.
Alguns
instantes depois, viram as costas de Loric irromperem pela porta da sala. Ele
ainda não havia entrado completamente, mas viram seus braços se juntando à
frente do corpo, movimentando-se e produzindo um clarão ígneo muito intenso. Gritos
de dor ecoaram da parte mais longínqua do corredor.
Loric
virou-se para dentro da sala, olhando diretamente para Desmond, encurvado em
posição de ataque sobre a mesa.
“Amigos,
AMIGOS! Ainda estão aí? Vamos resolver iss...”
Vuuush.
Com
um som seco e certeiro, Desmond perfurou a testa de Loric com uma seta
disparada pela sua besta. Loric caiu de costas, empurrado pelo impacto. Seu
manto, que já estava muito sofrido, agora estava aos farrapos. Os poucos tufos
que ainda permaneciam na cabeça do mago enlouquecido estavam em chamas. No
rosto, o sorriso insano ainda perdurava entre as tatuagens e ferimentos.
Logo
atrás dele, um outro mago, com os mesmos robes vermelhos irrompeu do corredor,
passando friamente por cima do corpo de Loric. Seus robes, ao contrário dos do
mago louco, eram bem cuidados e novos. Seu rosto, coberto de tatuagens muito nítidas,
exibia também um sorriso, mas este muito são e cruel.
“Vejam
só, amigos... vejam quem resolveu aparecer por aqui e nos poupar tanto
trabalho!”, disse ele, levantando a mão e começando a concentrar uma energia
negra entre os dedos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário