Detrás da
enorme figura vestida em armadura completa, saíram mais três humanoides. Um
deles estava vestido com roupas de viagem, em tons vermelhos e marrons. Em seu
peito, pendurado em uma tira de couro negro, exibia um pingente com a insígnia
do Culto do Dragão. A cor das roupas era muito destoante do resto do ambiente,
que parecia ter sido roubado de todas as cores exceto branco, negro e cinzento.
Os outros dois, entretanto, vestiam-se com trapos decrépitos e restos de
armaduras. Sob as roupas esfarrapadas, a carne deles estava ainda mais podre,
acinzentada. Nas cabeças, cabelos negros e compridos muito embaraçados
encimavam os rostos monstruosos como coroas. As órbitas, em vez de abrigar
olhos, tinham apenas espaços vazios muito profundos.
“Ora ora,
que encontramos aqui!”, disse o cultista. Era um elfo, diferente da maioria dos
outros cultistas que tinham encontrado. Em suas costas, uma aljava grande
carregava dezenas de flechas com penas negras e suas mãos levantavam um arco
armado na direção deles; a flecha estava posicionada, mas ele ainda não puxava
o cordão. “Vejam, vejam! O pedaço que faltava daqueles nojentos!”, falou,
olhando diretamente para Desmond.
Desmond
observava de olhos arregalados. Askáth, Navere, Thaal e Randal estavam com
muito medo, mas o ladino experiente parecia compreender com mais clareza o que
significava a presença daqueles membros do culto naquele lugar. Askáth e Navere
sacaram as adagas e apontaram para os intrusos. O cultista e os mortos vivos não
esboçaram reação.
“E estes...
são aqueles que também estavam atrapalhando tudo?”, falou um dos mortos vivos.
“É... são
aqueles que fizeram aquela desgraça no templo. Temos que levar todos.”,
respondeu o outro.
“Certo...
vamos. O caminho é longo.”, disse o cultista, com um tom autoritário e
definitivo.
“Eu me
rendo.”, disse Desmond, em voz baixa.
“O que
disse, ladrãozinho?”, perguntou o primeiro morto vivo, com os dentes
apodrecidos e pontudos se expondo sob um sorriso maligno.
“EU ME
RENDO!”, repetiu o ladino, gritando.
“Mas você
não entendeu... não é uma opção sua. Nós estamos levando vocês de qualquer
jeito, há há há há...”
“Eu sei que
vocês precisam de mim vivo”, disse Desmond. Rapidamente sacando uma das adagas
de sua cintura, levou-a à própria garganta. “Eu posso acabar com isso agora
mesmo e vocês não vão poder me sacrificar... e eu sei o quanto sou valioso para
vocês. Afinal, sou Amlugnehtar, matador de dragões, aquele que impediu Tiamat
de retornar”
Os três
membros do culto ficaram muito surpresos e não foram capazes de falar nada. A
figura gigantesca de armadura estava tão imóvel que nem movimentos de
inspiração e expiração eram perceptíveis sob o peitoral da armadura.
“Eu vou com
vocês, sem lutar.”, continuou Desmond, “ se vocês os deixarem ir embora.”
“Desmond,
Desmond... você é tão engraçado!”, disse um dos mortos vivos. “Acha mesmo que
você vale tanto assim para nós? Você é apenas carne!”
“Não,
Desmond! Não faça isso!”, alarmou-se Thaal.
“A escolha
é de vocês”, respondeu Desmond, enfiando a ponta da adaga na carne macia de seu
pescoço, fazendo com que um filete de sangue escorresse e alcançasse sua
camisa.”
“Não!”,
gritou o cultista elfo, interrompendo o movimento da mão de Desmond, que já
iniciava o alargamento do ferimento. O arqueiro profano pareceu legitimamente
preocupado com a segurança de Desmond. “Está certo. Vamos embora. Seus amigos
podem ficar aqui.”
Sem mais
palavra, Desmond deixou que amarras mágicas fossem envolvidas ao redor de seu
corpo. A corda dourada brilhava pouco naquele ambiente escuro, mas não havia
dúvida de que ele não seria capaz de escapar. As amarras encantadas só
soltariam se aquele que as amarrou permitisse.
Enquanto a
enorme figura de armadura o levantava de forma bruta pelas amarras, os
companheiros de Desmond permaneciam desconcertados, incapazes de proferir
palavra. Desmond olhou para trás mais uma vez, enquanto os mortos vivos o
empurravam para fora da casa. O cultista seguia atrás, ainda com o arco
empunhado. Virou-se e dirigiu-lhes a palavra.
“Vocês
valem muito pouco. Levar vocês através do continente custaria muito mais do que
vocês poderiam oferecer de sangue para o Culto. Shadowfell fará com que vocês
tenham o destino que merecem depois do que fizeram para nós. ”, disse. “Espero
que vocês tentem nos seguir. Vai ser muito engraçado poder observar vocês
morrendo. ”
“Vamos
apostar? Eu acho que será de fome”, falou o morto vivo que segurava Desmond
pelos cabelos, em tom de desdém.
“Pois eu
acho que eles serão comidos vivos por uma horda de mortos vivos. Há há há há!”,
respondeu o outro. A risada sobrenatural que ecoou da garganta apodrecida enrijeceu
os pelos do corpo de todos eles.
Os dois
terminaram de levar Desmond para fora. O ladino não lutava, mas relutava em
cooperar, e seguia lentamente, recebendo tapas periódicos dos lacaios mortos
para que continuasse a andar. O elfo seguia de perto, pronto para agir a qualquer
momento. Randal caminhou até a porta da construção, encostou-se no batente e
observou os dois magos e a criatura humanoide gigantesca levando Desmond até a
curva na estrada que passava pelo vilarejo. Seguiram numa direção que os cinco
haviam descartado quando escolheram o caminho anteriormente. Durante todo o
tempo em que os observou, Randal não viu o elfo abaixar o arco em nenhum
momento.
“E quando
vamos iniciar a viagem? ”, disse Askáth, quebrando o silêncio. O tom casual de
sua voz não conseguiu mascarar o verdadeiro desespero que crescia em seu peito.
“Assim que
terminarmos de olhar o que temos por aqui”, respondeu Thaal, curiosamente
interessado em resgatar objetos daquele ambiente. Ele soava mais calmo do que
Askáth, mas o ladino suspeitava que era apenas autocontrole, não frieza ou
falta de compreensão. “Não podemos dar a
eles o gosto de morrermos tentando. Temos que conseguir encontrar Desmond e os
Amlugnehtar. ”
“E Siana.
”, lembrou Randal.
“E Phidain.
”, acrescentou Navere. “Nem que seja para esclarecermos isso tudo de uma vez
por todas. ”
Por mais alguns minutos,
reviraram todos os armários e baús daquele pequeno quartel. Encontraram, no que
parecia ser um refeitório antigo, barris com carne seca e queijos com uma
aparência péssima, mofada e muito antiga. Guardaram o achado como quem guarda
pedras preciosas. Entre os quatro, calcularam que a quantidade de comida, se
racionada, poderia durar até dois meses. De um armário, recuperaram uma espada
suja que parecia um pouco melhor do que a arma que Randal utilizava, uma lança,
algumas mochilas e sacos de dormir. Uma pilha de cobertores cinzentos úmidos
foi desfeita e cada um deles enrolou uma coberta e a colocou sobre a mochila,
prendendo com cordas antigas e desfiadas que estavam embaraçadas na parte de
baixo do armário. Alguns outros equipamentos de viagem e exploração puderam ser
aproveitados e foram amontoados nas mochilas. Todas elas fediam a queijo velho.
Saíram do quartel e encheram os cantis em um poço de água muito suja do lado de
fora.
“Eu tenho
que admitir. Estou com medo.”, disse Randal.
“Eu também.
Mas não temos escolha. Podemos morrer aqui, ou podemos morrer tentando. Acho
importante que não nos enganemos. Não vamos sair dessa vivos”, falou Navere,
firmemente, mas sem esperança.
“Pois eu
acho que vamos sair vivos. Temos que tentar, temos que resgatá-los. E nós vamos
nos manter respirando e inteiros.”, afirmou Thaal, demonstrando segurança.
A firmeza
de Thaal pareceu reassegurá-los. Entre eles, carregavam mais de cinquenta
quilos de queijos em peças redondas enegrecidas e pedaços retangulares de carne
seca mofada. Além disso, todo o equipamento que resgataram e a água faziam com
que cada mochila pesasse mais de vinte quilos. Askáth estava com dificuldade
para mantê-la nas costas, mas Thaal tomou um pouco do peso da mochila dele para
si, deixando a bagagem do tiefling um pouco mais suportável para ele. Askáth não
pôde esconder a surpresa em seus olhos. Thaal apenas respondeu com um sorriso.
Puseram-se a caminhar cerca de quarenta minutos da saída dos cultistas com
Desmond.
A estrada
era extremamente malcuidada e não parecia ser utilizada nunca, então o grupo
que seguia na frente produzia muitos rastros, fáceis de serem localizados por
Askáth. Além disso, eles suspeitavam que os cultistas não estavam tentando
esconder seu caminho. Chegaram à conclusão que eles pareciam querer que fossem
seguidos por eles, provavelmente para ver o grupo inexperiente morrer.
Durante
dois dias e meio de viagem, eles não encontraram ninguém. Na metade do segundo
dia, foram descobertos pelo que pareceu uma procissão de clérigos mortos vivos
que transitava perpendicularmente à estrada que seguiam. Os quatro se puseram
em posição de ataque, mas a procissão cadavérica apenas cruzou o caminho deles,
produzindo um cântico quase inaudível por entre as mandíbulas expostas. Os
corpos estavam cobertos por robes negros velhíssimos e eles seguiam em fila,
com os passos coordenados. Eram mais de cinquenta.
Durante o
primeiro dia haviam acelerado o ritmo para que diminuíssem a distância entre
eles e Desmond. Ao acamparem na primeira noite, já conseguiam avistar a pequena
fogueira que os sequestradores do ladino tinham produzido. Agora, três dias
depois, a planície permitia calcularem com segurança que estavam a cerca de três
quilômetros de distância dos cultistas.
A própria
fogueira que acendiam era pobre, pequena, como se o ambiente não permitisse que
grandes fogueiras fossem produzidas. Eles tinham criado o hábito de tentarem se
esconder dos cultistas. Hoje, por causa da extensão da planície descampada onde
estavam, conseguiram apenas se entrincheirarem em uma pequena irregularidade na
estrada, acentuada por um buraco raso que cavaram assim que a noite caiu. O calor produzido pela fogueira era insuficiente,
e apenas conseguiram esquentar a comida o bastante para tentarem matar os fungos
que haviam sobre o queijo e a carne.
A magreza
deles era flagrante e progressiva. Askáth já exibia grandes covas nas bochechas
e a largura dos ombros de Randal se reduzia a olhos vistos.
Enquanto
conversavam em voz baixa, tentavam impedir o vento gelado e úmido de apagar a
fogueira minguante.
Askáth, ao
olhar para a estrada, teve a impressão de ver alguém caminhando ao longe, na
direção de onde vieram. Alertou os outros, que pararam de falar e começaram a observar.
Ao longe, a figura era pouco mais de uma silhueta. Após alguns minutos, os
passos da pessoa já eram audíveis, ritmados, mas sem pressa. Mais alguns
minutos e a figura mostrou-se diminuta, menor do que um humano médio. Dez
minutos depois, a luz da lua minguante alaranjada, somada à visão noturna deles
e à fogueira fraca revelou o inesperado.
A cerca de
trinta metros, o halfling de feições conhecidas se aproximava cautelosamente,
expondo as mãos vazias e o rosto pacífico.
“Phidain.”,
disse Navere.
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