segunda-feira, 30 de novembro de 2015

30 – Apenas quatro

            Detrás da enorme figura vestida em armadura completa, saíram mais três humanoides. Um deles estava vestido com roupas de viagem, em tons vermelhos e marrons. Em seu peito, pendurado em uma tira de couro negro, exibia um pingente com a insígnia do Culto do Dragão. A cor das roupas era muito destoante do resto do ambiente, que parecia ter sido roubado de todas as cores exceto branco, negro e cinzento. Os outros dois, entretanto, vestiam-se com trapos decrépitos e restos de armaduras. Sob as roupas esfarrapadas, a carne deles estava ainda mais podre, acinzentada. Nas cabeças, cabelos negros e compridos muito embaraçados encimavam os rostos monstruosos como coroas. As órbitas, em vez de abrigar olhos, tinham apenas espaços vazios muito profundos.
            “Ora ora, que encontramos aqui!”, disse o cultista. Era um elfo, diferente da maioria dos outros cultistas que tinham encontrado. Em suas costas, uma aljava grande carregava dezenas de flechas com penas negras e suas mãos levantavam um arco armado na direção deles; a flecha estava posicionada, mas ele ainda não puxava o cordão. “Vejam, vejam! O pedaço que faltava daqueles nojentos!”, falou, olhando diretamente para Desmond.
            Desmond observava de olhos arregalados. Askáth, Navere, Thaal e Randal estavam com muito medo, mas o ladino experiente parecia compreender com mais clareza o que significava a presença daqueles membros do culto naquele lugar. Askáth e Navere sacaram as adagas e apontaram para os intrusos. O cultista e os mortos vivos não esboçaram reação.
            “E estes... são aqueles que também estavam atrapalhando tudo?”, falou um dos mortos vivos.
            “É... são aqueles que fizeram aquela desgraça no templo. Temos que levar todos.”, respondeu o outro.
            “Certo... vamos. O caminho é longo.”, disse o cultista, com um tom autoritário e definitivo.
            “Eu me rendo.”, disse Desmond, em voz baixa.
            “O que disse, ladrãozinho?”, perguntou o primeiro morto vivo, com os dentes apodrecidos e pontudos se expondo sob um sorriso maligno.
            “EU ME RENDO!”, repetiu o ladino, gritando.
            “Mas você não entendeu... não é uma opção sua. Nós estamos levando vocês de qualquer jeito, há há há há...”
            “Eu sei que vocês precisam de mim vivo”, disse Desmond. Rapidamente sacando uma das adagas de sua cintura, levou-a à própria garganta. “Eu posso acabar com isso agora mesmo e vocês não vão poder me sacrificar... e eu sei o quanto sou valioso para vocês. Afinal, sou Amlugnehtar, matador de dragões, aquele que impediu Tiamat de retornar”
            Os três membros do culto ficaram muito surpresos e não foram capazes de falar nada. A figura gigantesca de armadura estava tão imóvel que nem movimentos de inspiração e expiração eram perceptíveis sob o peitoral da armadura.
            “Eu vou com vocês, sem lutar.”, continuou Desmond, “ se vocês os deixarem ir embora.”
            “Desmond, Desmond... você é tão engraçado!”, disse um dos mortos vivos. “Acha mesmo que você vale tanto assim para nós? Você é apenas carne!”
            “Não, Desmond! Não faça isso!”, alarmou-se Thaal.
            “A escolha é de vocês”, respondeu Desmond, enfiando a ponta da adaga na carne macia de seu pescoço, fazendo com que um filete de sangue escorresse e alcançasse sua camisa.”
            “Não!”, gritou o cultista elfo, interrompendo o movimento da mão de Desmond, que já iniciava o alargamento do ferimento. O arqueiro profano pareceu legitimamente preocupado com a segurança de Desmond. “Está certo. Vamos embora. Seus amigos podem ficar aqui.”
            Sem mais palavra, Desmond deixou que amarras mágicas fossem envolvidas ao redor de seu corpo. A corda dourada brilhava pouco naquele ambiente escuro, mas não havia dúvida de que ele não seria capaz de escapar. As amarras encantadas só soltariam se aquele que as amarrou permitisse.
            Enquanto a enorme figura de armadura o levantava de forma bruta pelas amarras, os companheiros de Desmond permaneciam desconcertados, incapazes de proferir palavra. Desmond olhou para trás mais uma vez, enquanto os mortos vivos o empurravam para fora da casa. O cultista seguia atrás, ainda com o arco empunhado. Virou-se e dirigiu-lhes a palavra. 
            “Vocês valem muito pouco. Levar vocês através do continente custaria muito mais do que vocês poderiam oferecer de sangue para o Culto. Shadowfell fará com que vocês tenham o destino que merecem depois do que fizeram para nós. ”, disse. “Espero que vocês tentem nos seguir. Vai ser muito engraçado poder observar vocês morrendo. ”
            “Vamos apostar? Eu acho que será de fome”, falou o morto vivo que segurava Desmond pelos cabelos, em tom de desdém.
            “Pois eu acho que eles serão comidos vivos por uma horda de mortos vivos. Há há há há!”, respondeu o outro. A risada sobrenatural que ecoou da garganta apodrecida enrijeceu os pelos do corpo de todos eles.
            Os dois terminaram de levar Desmond para fora. O ladino não lutava, mas relutava em cooperar, e seguia lentamente, recebendo tapas periódicos dos lacaios mortos para que continuasse a andar. O elfo seguia de perto, pronto para agir a qualquer momento. Randal caminhou até a porta da construção, encostou-se no batente e observou os dois magos e a criatura humanoide gigantesca levando Desmond até a curva na estrada que passava pelo vilarejo. Seguiram numa direção que os cinco haviam descartado quando escolheram o caminho anteriormente. Durante todo o tempo em que os observou, Randal não viu o elfo abaixar o arco em nenhum momento.
            “E quando vamos iniciar a viagem? ”, disse Askáth, quebrando o silêncio. O tom casual de sua voz não conseguiu mascarar o verdadeiro desespero que crescia em seu peito.
            “Assim que terminarmos de olhar o que temos por aqui”, respondeu Thaal, curiosamente interessado em resgatar objetos daquele ambiente. Ele soava mais calmo do que Askáth, mas o ladino suspeitava que era apenas autocontrole, não frieza ou falta de compreensão.  “Não podemos dar a eles o gosto de morrermos tentando. Temos que conseguir encontrar Desmond e os Amlugnehtar. ”
            “E Siana. ”, lembrou Randal.
            “E Phidain. ”, acrescentou Navere. “Nem que seja para esclarecermos isso tudo de uma vez por todas. ”
            Por mais alguns minutos, reviraram todos os armários e baús daquele pequeno quartel. Encontraram, no que parecia ser um refeitório antigo, barris com carne seca e queijos com uma aparência péssima, mofada e muito antiga. Guardaram o achado como quem guarda pedras preciosas. Entre os quatro, calcularam que a quantidade de comida, se racionada, poderia durar até dois meses. De um armário, recuperaram uma espada suja que parecia um pouco melhor do que a arma que Randal utilizava, uma lança, algumas mochilas e sacos de dormir. Uma pilha de cobertores cinzentos úmidos foi desfeita e cada um deles enrolou uma coberta e a colocou sobre a mochila, prendendo com cordas antigas e desfiadas que estavam embaraçadas na parte de baixo do armário. Alguns outros equipamentos de viagem e exploração puderam ser aproveitados e foram amontoados nas mochilas. Todas elas fediam a queijo velho. Saíram do quartel e encheram os cantis em um poço de água muito suja do lado de fora.

            “Eu tenho que admitir. Estou com medo.”, disse Randal.
            “Eu também. Mas não temos escolha. Podemos morrer aqui, ou podemos morrer tentando. Acho importante que não nos enganemos. Não vamos sair dessa vivos”, falou Navere, firmemente, mas sem esperança.
            “Pois eu acho que vamos sair vivos. Temos que tentar, temos que resgatá-los. E nós vamos nos manter respirando e inteiros.”, afirmou Thaal, demonstrando segurança.
            A firmeza de Thaal pareceu reassegurá-los. Entre eles, carregavam mais de cinquenta quilos de queijos em peças redondas enegrecidas e pedaços retangulares de carne seca mofada. Além disso, todo o equipamento que resgataram e a água faziam com que cada mochila pesasse mais de vinte quilos. Askáth estava com dificuldade para mantê-la nas costas, mas Thaal tomou um pouco do peso da mochila dele para si, deixando a bagagem do tiefling um pouco mais suportável para ele. Askáth não pôde esconder a surpresa em seus olhos. Thaal apenas respondeu com um sorriso. Puseram-se a caminhar cerca de quarenta minutos da saída dos cultistas com Desmond.
            A estrada era extremamente malcuidada e não parecia ser utilizada nunca, então o grupo que seguia na frente produzia muitos rastros, fáceis de serem localizados por Askáth. Além disso, eles suspeitavam que os cultistas não estavam tentando esconder seu caminho. Chegaram à conclusão que eles pareciam querer que fossem seguidos por eles, provavelmente para ver o grupo inexperiente morrer.
            Durante dois dias e meio de viagem, eles não encontraram ninguém. Na metade do segundo dia, foram descobertos pelo que pareceu uma procissão de clérigos mortos vivos que transitava perpendicularmente à estrada que seguiam. Os quatro se puseram em posição de ataque, mas a procissão cadavérica apenas cruzou o caminho deles, produzindo um cântico quase inaudível por entre as mandíbulas expostas. Os corpos estavam cobertos por robes negros velhíssimos e eles seguiam em fila, com os passos coordenados. Eram mais de cinquenta.
            Durante o primeiro dia haviam acelerado o ritmo para que diminuíssem a distância entre eles e Desmond. Ao acamparem na primeira noite, já conseguiam avistar a pequena fogueira que os sequestradores do ladino tinham produzido. Agora, três dias depois, a planície permitia calcularem com segurança que estavam a cerca de três quilômetros de distância dos cultistas.
            A própria fogueira que acendiam era pobre, pequena, como se o ambiente não permitisse que grandes fogueiras fossem produzidas. Eles tinham criado o hábito de tentarem se esconder dos cultistas. Hoje, por causa da extensão da planície descampada onde estavam, conseguiram apenas se entrincheirarem em uma pequena irregularidade na estrada, acentuada por um buraco raso que cavaram assim que a noite caiu.  O calor produzido pela fogueira era insuficiente, e apenas conseguiram esquentar a comida o bastante para tentarem matar os fungos que haviam sobre o queijo e a carne.
            A magreza deles era flagrante e progressiva. Askáth já exibia grandes covas nas bochechas e a largura dos ombros de Randal se reduzia a olhos vistos.
            Enquanto conversavam em voz baixa, tentavam impedir o vento gelado e úmido de apagar a fogueira minguante.
            Askáth, ao olhar para a estrada, teve a impressão de ver alguém caminhando ao longe, na direção de onde vieram. Alertou os outros, que pararam de falar e começaram a observar. Ao longe, a figura era pouco mais de uma silhueta. Após alguns minutos, os passos da pessoa já eram audíveis, ritmados, mas sem pressa. Mais alguns minutos e a figura mostrou-se diminuta, menor do que um humano médio. Dez minutos depois, a luz da lua minguante alaranjada, somada à visão noturna deles e à fogueira fraca revelou o inesperado.
            A cerca de trinta metros, o halfling de feições conhecidas se aproximava cautelosamente, expondo as mãos vazias e o rosto pacífico.

            “Phidain.”, disse Navere. 

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