“Certo.
Agora que nos contou sobre toda essa desgraça, o que faremos? Não consigo
imaginar como poderíamos vencer Nabara, dracolichs, illithids, cultistas e toda
aquela corja de coisas horrorosas que vimos nos últimos tempos”, disse Askáth.
“Eu tenho
isso”, respondeu Siana, “Garek preparou vários feitiços nestes pergaminhos
aqui. Dêem uma olhada.”
Curvaram-se
mais sobre a mesa, onde a maga estendia alguns pergaminhos escritos em runas
diversas. Ninguém pareceu entender muita coisa, exceto Navere, que reconheceu
uma magia ou duas.
“São
feitiços muito poderosos, que podem nos dar uma chance. Não vou mentir para
vocês, não vai ser nada fácil”, disse Phidain. O humor do halfling mudara
completamente, se comparado ao que era quando sentou-se na taverna dos
Amlugnehtar com Siana para começar a pesquisa com o grupo de heróis. Navere,
por outro lado, lembra de Phidain como um bardo mais calado, pois desde a
infância, quando se viu sob os cuidados de Phidain, notara que o bardo
carregava um semblante sombrio grande parte das vezes. Depois de Navere sair da
casa do mestre bardo, Phidain fora surpreendido por Siana, de espírito leve e
determinado. A benevolência inerente a ela tornou Phidain menos amargo, mais
comunicativo e, obviamente, um bardo de mais sucesso.
Siana
levantou-se e foi até o quarto. Não a viam, mas ouviram o som característico de
uma tranca antiga sendo manipulada e destravada. Logo depois, o som de uma
tampa de baú rangera. Alguns segundos separaram a abertura do som pesado da
tampa se fechando novamente. Siana reapareceu na sala, carregando um pequeno
orbe de brilho fraco, branco. Dentro das paredes de vidro circulares do orbe, uma
névoa esbranquiçada podia ser vista dançando, como se feita de vapor. No
entanto, ao contrário do vapor, a névoa parecia perolada, com pequenos pontos
brilhantes. Navere ficou encantado pelo objeto. Ao pedir para tocá-lo, Siana
não permitiu, dizendo que seria perigoso deixar aquele artefato ser tocado por
mãos não treinadas na magia como as dela.
“Estão
prontos? É hora de partirmos. Iremos primeiro resgatar Desmond, depois
seguiremos até Evernight.”, disse a maga.
“Estamos.
Vamos acabar logo com isso, quero sair desse inferno o mais rápido possível,
filha.”, respondeu Randal. Siana levantou os olhos ao ouvir o mercenário se
referindo a ela como filha, mas ele não pareceu estar ciente do termo que
usara. Siana percebeu que não se importara e que de fato também enxergava
Randal como uma figura paternal.
Ninguém mais falou nada. Siana
decidiu iniciar o processo. Posicionou o orbe no centro da mesa, instruindo a
todos que deveriam dar-se as mãos. Siana disse a Navere que segurasse em seu
ombro. “Preparem-se. Provavelmente vamos atacá-los assim que os virmos. Temos o
elemento surpresa em nossas mãos”, disse ela.
Observando o orbe, Siana
concentrou-se e esticou sua mão direita e o tocou levemente. Dentro da esfera
vítrea, a névoa condensou-se, exibindo a imagem difusa de Desmond sendo levado
por cultistas ao longo de uma estrada. O
ladino era seguido de perto pela enorme figura de armadura que tinha invadido o
abrigo onde estavam. Os outros cultistas seguiam atrás, a passos lentos e
cadenciados. O grupo não parecia estar com pressa.
Alguns segundos depois, o orbe
emitiu luz forte, capaz de atordoar a todos.
Todos, mesmo Siana, sofreram com
o leve atordoamento que o teleporte costuma causar. Em algumas pessoas, a visão
se torna um pouco turva, dificultando a recuperação da propriocepção.
Finalmente, ao se reorientarem, perceberam que haviam sido transportados para a
imediata frente do grupo de cultistas que levava Desmond.
O espanto os congelou por alguns segundos,
tornando Siana, um pouco mais experiente com teleportes e já recuperada do
atordoamento, capaz de atacar de surpresa. Utilizando as mãos, colocou-as à
frente do corpo e produziu
instantaneamente um leque de fogo que varreu todos eles, causando-lhes dano
massivo. Desmond, mais experiente em batalhas e conhecedor da magia que Siana
acabara de utilizar, aproveitou a surpresa dos captores para desviar. Não se
machucou. Mesmo com as mãos amarradas, conseguira rolar e se posicionar atrás
de um deles, fazendo-o servir como um escudo vivo.
O cultista e os dois mortos vivos
lacaios caíram mortos instantaneamente, mas a armadura permaneceu intacta.
Elevando as mãos gigantescas, empunhou a espada a posicionou diretamente no
ângulo da cabeça de Siana, que já se preparava para conjurar outra magia. Antes
que ele conseguisse baixar a arma e repartir sua cabeça ao meio, a maga, mais
uma vez, estendeu as mãos. Desta vez, agarrou a armadura e liberou uma poderosa
descarga elétrica. A figura pareceu titubear, derrubando a espada. O choque
causara a hesitação necessária para que Phidain acertasse entre as placas de
seu peito com uma adaga, fazendo com que a lâmina perfurasse o espaço entre as
placas onde Phidain acreditava levar ao coração da criatura.
O enorme cavaleiro caiu de
joelhos, colocando o peito estufado e metálico da armadura completa à altura
exata dos olhos de Siana. Com a mão estendida, ainda sem demonstrar medo, a
maga produziu um jato ácido, fazendo o peitoral da armadura derreter
lentamente. Quando o peitoral danificado
deveria expor o usuário da armadura, nada apareceu.
A armadura desmontou
completamente e parou de se mover. Desmond levantou e se dirigiu até eles.
“Vocês demoraram. Quase tive que
matar todos eles sozinho.”
“Claro, você conseguiria.”, disse
Askáth, sarcástico.
Desmond não respondeu. Apenas virou-se,
indicando não-verbalmente as amarras que continham seus pulsos. Askáth cortou
as cordas com uma adaga, libertando o outro ladino.
“Todos estão bem? Se estiverem, é
hora de resgatar os Amlugnehtar”.
Mais uma vez, se juntaram em
círculo ao redor do orbe que Siana carregava. Ela refez o ritual. Desta vez, o
orbe mostrou não um pequeno grupo de pessoas, mas um lugar escuro e
indistinguível.
O clarão determinou o início e o fim
da curtíssima viagem. Siana havia calculado que economizariam centenas de
milhas desta forma, mesmo às custas de um artefato tão raro e de tão limitado
uso. Nesta mesma hora, o orbe apagou-se. A névoa perolada dissipou-se por
completo e o objeto tão obviamente mágico há poucos segundos, tornara-se na
mais mundana das esferas de vidro.
A sala onde
tinham ido parar parecia completamente vazia. Nenhum som provindo de monstros
ou humanos podia ser ouvido, e eles tinham certeza de que estavam absolutamente
sozinhos. A própria certeza foi questionada por Phidain, internamente, mas ele
decidiu não compartilhar a dúvida com os companheiros de viagem.
“Não
precisaremos mais disso”, disse ela, largando o orbe, que atingiu de pronto o
chão no meio do círculo que formavam. O som do vidro se estilhaçando não foi
tão alto quanto imaginavam, mas ecoou nas galerias escuras e úmidas para onde
tinham sido transportados. “Estranho... devíamos ter saído exatamente à frente
dos Amlugnehtar sequestrados. ”
Som de
líquidos gotejantes, como em uma galeria de esgotos desativada podia ser
ouvido, ecoando indistintamente por todas as paredes. A sala toda era
construída em pedra, cheia de limo e sem decorações. Parecia absolutamente
vazia, até onde conseguiam enxergar. O pé direito era baixo. Com a exceção de
Phidain, todos os outros conseguiam encostar as palmas das mãos com facilidade
no teto apenas levantando os braços.
Durante
algum tempo, eles vasculharam a sala, à procura de saídas, itens, pistas. O
ambiente muito escuro não facilitava a procura. Desmond, Askáth e mesmo Phidain
pareciam intrigados com a perfeição da vedação da sala. Mais alguns minutos se
passaram até que Thaal pisasse, sem querer, num dos blocos que compunha o chão.
À frente
deles, uma parte da parede deslizou. Os outros se viraram ao som pesado do
arrastar da porta secreta. Um a um, cautelosamente, avançaram para a sala
seguinte, intrigados pela obscuridade e acesso quase impossível. Quando Randal,
o último a entrar na sala teve a chance de observar com clareza o que havia
dentro da sala secreta, a respiração dele cessou por completo por alguns
segundos. Os outros já estavam absolutamente imóveis pela surpresa. Nenhum
deles percebeu que Siana fora a primeira a se recuperar do choque, e que a
maneira que conseguiu para lidar com a visão que tivera fora curvar-se e
vomitar profusamente, entre lágrimas de medo, repulsa e choque.
Ao longo da
parede lateral da sala fracamente iluminada por braseiros aos pés de quatro
colunas centrais, quatro pessoas jaziam acorrentadas. Thaal soltou seu peso em
cima de seus joelhos e abaixou a cabeça, pondo-se a rezar. Randal agachou-se ao
lado de Siana. Askáth permaneceu imóvel, enquanto Desmond iniciara uma lenta marcha
em direção aos companheiros, para que pudesse observá-los de perto. Caminhou até
a feiticeira, a primeira, no canto da parede. A mão de Desmond tampava sua
boca, como em um estado de espanto constante.
Nyx estava
nua, seu corpo, outrora bem formado e de beleza excepcional, demonstrava uma
palidez mortiça sob inúmeras manchas de sangue. Uma de suas pernas era branca
como o resto do corpo. A outra, vermelha como o sangue. Embaixo de seus pés,
pendentes a mais de trinta centímetros do solo, sangrentos pedaços de carne se
amontoavam entre poças de sangue coagulado. A carne de sua coxa e perna estava
exposta, e o rosto da feiticeira, desacordada, transmitia ter sentido a mais
profunda dor antes de perder a consciência.
Ao lado da
feiticeira, pendurado pelos pulsos, estava Orsin, o anão. Ele parecia menos
ferido do que Nyx. Ao contrário de como Desmond se lembrava, Orsin não usava
armadura, apenas uma calça rasgada, de tecido puído. Em seu peito, alguém havia
cravado o contorno de um dragão. A mutilação parecia recente; do ferimento, o
sangue ainda escorria fraco, mas constante. Orsin estava consciente, ofegante. Seus olhos
encontraram os de Desmond, e demonstravam uma profunda tristeza ao lado da dor
imensa. Ele virou a cabeça, apontando para Phalos e Sonam, ao lado.
Em terceiro
havia o draconato, ainda acordado. Em vez de seus habituais enfeites feitos de
partes dos monstros que ele derrotara, Desmond viu que ele tinha em seu pescoço
um colar feito de dentes afiados e sangrentos, arrancados à força. Sua cabeça
pendia para a frente, com seu longo focinho dracônico tocando seu peito. Os
olhos estavam fechados, mas a boca entreaberta deixava sangue viscoso escorrer
pelo peito e pingar no chão. Desmond percebeu de onde tinham saído os dentes
que compunham o colar no pescoço do amigo.
Ainda
perplexo pela crueldade irônica cometida com Phalos, o ladino se sentia próximo
a perder o controle de seu estômago, assim como Siana. Ao caminhar mais um
pouco e observar Sonam, seu fôlego perdeu-se, e seus olhos finalmente cederam.
Desmond gritou, cobrindo o rosto com as mãos e deixando que lágrimas
escorressem profusamente de seus olhos.
Sonam, o
monge, havia sido um guerreiro implacável. Suas sequências de golpes mortais
foram decisivas em diversas batalhas. Desmond devia a Sonam a vida diversas
vezes. Por lutar com suas mãos e com elas ter tirado a vida de Severin, o líder
do Culto do Dragão na época em que impediram o retorno de Tiamat, aparentemente
a tortura vingativa tinha sido mais cruel com ele do que com os outros.
Sonam
pendia preso de braços abertos, como em uma crucificação com correntes. Sua
cabeça também apontava para baixo, imóvel, indicando que ele provavelmente
estava inconsciente. Seu corpo não trazia nenhum dano, ao contrário de seus
companheiros, sua tortura tinha sido localizada.
Cada uma de
suas mãos, em concha, trazia em seu interior um dos olhos do monge.