O
alívio pareceu durar pouco. Assim que entraram na casa do bardo, a atmosfera de
dúvida e insegurança voltou a pairar entre eles. Navere e Siana foram
acomodados na cama de Phidain. O mestre bardo os serviu água, pão e queijo.
Concentrando-se, Phidain iniciou uma série de procedimentos mágicos para
curá-los; Thaal sentiu que deveria ajudar e mais uma vez pôs-se a fazer o que
podia.
Apesar
de se sentirem melhor, os bardos jovens não pareciam demonstrar estarem perto
da completa recuperação. Seus olhos permaneciam fundos, seus corpos
extremamente magros ainda mostravam ossos que não deveriam jamais serem
detalhados sob a pele. Ainda não pareciam em condições de conversar, e
permaneciam calados, encolhidos.
“Acho
que eles estão além de nossas capacidades, rapaz”, disse Phidain a Thaal,
parecendo preocupado. “Acho que devemos procurar ajuda.”
“Nós
os levaremos a um templo, não se preocupe, Phidain”, disse Randal, muito
desconfiado da aparição do halfling. Os meios elfos bardos e o aasimar eram
adição inesperada suficiente para um dia, e Askáth ainda não podia ser
considerado nem um colega. Apesar de não conhecer o tiefling, a desconfiança
dele pareceu ter fundamento. Randal sentiu um calafrio ao perceber a forma como
Phidain observava Siana e Navere.
“Acho
que precisamos ir juntos, não é uma boa ideia eu deixar meus pupilos com
desconhecidos numa hora como esta”, disse Phidain.
“DESCONHECIDOS?
Você sabe que nós arriscamos nossa vida por eles, não sabe, halfling? Eles
podem ter aparecido nas nossas frentes hoje mesmo, mas o que passamos juntos,
muitos amigos não passam em vidas inteiras!”, exaltou-se Askáth,
inesperadamente.
“Calma,
amigo, eu entendo o que querem dizer! Mas eu me preocupo muito com eles!”,
resignou-se Phidain.
“Se
se preocupa tanto, por que não entrou lá para nos ajudar? Você parecia saber muito bem o que estava acontecendo lá
embaixo!”, disse Askáth.
Phidain
calou-se. Thaal esperava que o bardo tivesse alguma desculpa para não ter
ajudado, ou que afirmasse não saber o que aconteceria. Mas a calma e a frieza
no olhar do halfling foram confirmação suficiente do envolvimento dele naquela
situação bizarra e tão perigosa onde estavam.
“Randal,
pegue Siana novamente.”, disse Thaal muito seriamente, levantando Navere. Os
dois arregalaram os olhos, mas não proferiram palavra. Askáth estava satisfeito por saírem dali,
finalmente podendo questionar a influência daquele bardo em tudo o que lhes
acontecera.
O
bardo não ofereceu maior resistência, e os cinco saíram da casa de Phidain com
passos determinados e resolutos.
“O
templo de Torm fica a alguns quilômetros daqui. Podemos caminhar até lá.
Certamente lá eles podem receber cuidados maiores”, disse Thaal.
Como
não houve protesto por parte de nenhum dos outros, Thaal indicou o caminho até
o templo.
Navere
e Siana permaneceram calados e imóveis durante o trajeto todo. Depois de quarenta
minutos de caminhada, o grupo estava em frente ao templo de Torm. Entraram com os
dois meio-elfos debilitados no colo, o que logo chamou a atenção dos presentes.
Um clérigo vestido com longas vestes azuis, trabalhadas em fios cor de prata. Em
seu peito, uma grande insígnia em forma de manopla. Thaal entregou Navere para
Askáth, que o segurou com dificuldade.
“Irmão,
precisamos de sua ajuda”, disse Thaal, ajoelhando-se na direção do altar e do
irmão que se aproximava, em sinal de subserviência. “Minhas habilidades são
insuficientes para trazê-los à integridade física e temo pela sobrevivência
deles.”
“Não
se incomodem, amigos. Está tudo sob controle. Venham, deitem-nos nesta sala
onde vou lhes levar.”, respondeu o clérigo, calmo. Ele era um homem robusto e
parecia ter pouco mais de cinquenta anos. Os cabelos loiros estavam em um corte
bem curto, que evidenciava a calvície herdada do pai em estado avançado. Apesar
da fala gentil, os olhos do clérigo pousaram diretamente sobre o rosto de Askáth.
Na falta das roupas de Duque de Lestars, que ficaram no acampamento de onde
foram sequestrados, Askáth exibia seus dentes afiados através dos lábios
entreabertos. O olhar treinado do clérigo é capaz de identificar um tiefling
com muita rapidez.
Thaal
retomou Navere do colo de Askáth, que pareceu aliviado por não precisar mais
segurar o peso do meio elfo emaciado. Umbra não era muito forte. Seu corpo
esguio parecia ainda mais fino pela presença do rabo. Desta vez, Askáth havia colocado
o rabo para dentro da roupa, na tentativa vã de esconder sua ascendência planar
infernal. Mesmo assim, percebeu que sua presença provavelmente não seria
querida dentro do templo. Quando os outros entraram, Askáth saiu novamente e
esperou do lado de fora da porta.
Thaal
e Randal depositaram Navere e Siana nas mesas, numa sala no fundo do templo,
atrás do altar. A sala tinha muitas velas acesas e estantes com lençóis brancos
dobrados. O clérigo estendeu um lençol por cima de cada um deles, fez uma prece
rápida e pediu que todos saíssem da sala e aguardassem perto do altar.
Os
dois esperaram ansiosos por notícias. Thaal pediu licença a Randal, ajoelhou-se,
tomando nas mãos a insígnia da manopla que carregava no pescoço e iniciou uma
reza discreta, inaudível a Randal.
Depois
de mais ou menos quinze minutos, o clérigo rotundo emergiu da porta da sala,
com um sorriso em sua face. Atrás dele, Siana e Navere caminhavam eretos e
aparentemente calmos.
Thaal
ajoelhou-se aos pés do irmão.
“Que
Torm lhe guie os caminhos para que nunca sejam tortuosos”, disse o clérigo a
Thaal.
“Que
Torm lhe ensine a lealdade todos os dias”, disse Thaal ao clérigo do templo. “Muito
obrigado, irmão”.
“Não
há de que. Eles precisam de um pouco mais de descanso, provavelmente sofreram
muito. Eles foram drenados por magia. O cabelo de seu amigo já voltou a crescer,
em alguns dias ele terá um cabelo vistoso como sei que há de ser. Vão, e tentem
não se expor a tamanha força maligna novamente!”
Siana
e Navere agradeceram com largos sorrisos. Randal estava impressionado com a
diferença que o tratamento divino que receberam no templo havia surtido nos
dois. Os quatro se encaminharam para a saída do templo, onde encontraram com
Askáth.
Umbra
arregalou os olhos largamente quando viu os bardos. “Você é ainda mais feio do
que doente!”, disse a Navere, e todos riram com leveza. A gargalhada murchou
rapidamente, assim que perceberam que ainda estavam em perigo iminente.
“Acho...
que devíamos tentar nos abrigar. Temos muito para conversar.”, disse Siana. A
voz dela era muito diferente dos murmúrios que ela tinha conseguido proferir
quando ainda parecia muito doente. Era uma voz firme, de tom médio, que transmitia
segurança e benevolência ao mesmo tempo.
“Não
poderia concordar mais. Para onde iremos?”, disse Navere. “Eu não posso levá-los
até minha casa. Foi onde... foi... de onde fomos levados. Não me sinto mais
seguro lá”.
“Eu
entendo”, disse Randal.
“Podemos
ir para a minha casa”, disse Askáth. Já sei que Randal não mora por aqui, nem Thaal...
então eu mostro a vocês meu incrível palácio!”
Parecia
uma ideia interessante e minimamente segura, então todos seguiram Askáth.
Em
uma parte escura da cidade, perto do distrito dos comerciantes, Askáth parou,
bem à frente de uma série de casas geminadas muito velhas. “Bem, sejam bem
vindos à mansão de Umbra!”, disse, animado.
Entraram
em fila, tentando se acomodar na sala minúscula. A casa era pequena, mas
parecia em uso e relativamente em bom estado. Em uma forma o mais circular possível, puderam
relaxar. Finalmente, observaram com cuidado as feições daqueles que de forma
completamente inesperada haviam se tornado pessoas importantes na vida deles. Thaal
evitava olhar para o rosto de Askáth, mas sabia que devia sua vida a ele.
“Nós
temos que agradecer vocês. Não haveria
outra forma de estarmos vivos agora sem que vocês nos tivessem encontrado
naquelas gaiolas.”, disse Siana.
“Como
vocês foram parar ali?”, disse Randal. “Tem alguma coisa a ver com aquela voz
que ouvimos?”
“Eu
acho que sim”, respondeu Navere. “Não consigo me lembrar como foi que fomos
sequestrados, mas foi exatamente isso que aconteceu. Fomos levados para aquele
lugar, contra nossa vontade.”
“Por
quem?”, Randal continuou indagando. A expressão em seu rosto era um misto de
medo e curiosidade.
“Sabe
aquela criatura que viram morta? Aquela com os tentáculos?”, perguntou Siana.
“O
illithid? O que um illithid poderia querer com dois jovens como vocês?”, disse Thaal,
preocupado.
“Não
consigo pensar em absolutamente nenhum motivo”, disse Siana, exceto que ele
levou Navere e depois voltou para me buscar. Era conosco. E vocês, o que faziam
naquele lugar horrendo?”
“Eles
nos levaram de um acampamento. Askáth e eu estávamos a caminho de uma missão
para a qual fomos contratados”, disse Randal.
“Eles
nos levaram no meio da madrugada. Eu nem estava vestido adequadamente, foi terrível!”,
disse Askáth, com um meio sorriso.
“E
você, Thaal? Não estava com eles?”, perguntou Navere.
O
rosto de Thaal demonstrou surpresa. Internamente, Thaal reprimiu a repulsa que
insistiu em voltar. A ideia de ter se associado com um tiefling por qualquer
motivo era impensável e a pergunta o ofendeu profundamente. De qualquer forma,
ele havia decidido que aquilo não o afetaria e não seria externalizado de forma
alguma. Askáth Umbra salvou minha vida, Askáth
Umbra salvou minha vida, Askáth Umbra salvou minha vida, insistia ele,
tentando absorver a dívida moral. Até aquele momento, Umbra havia se mostrado
completamente confiável, mesmo vasculhando corpos de ofensores mortos. “Não...
eu não estava com eles. Mas eu não sei onde estava antes de me encontrarem.”,
respondeu Thaal.
“Nós
o encontramos em uma cela, na mesma ala onde estávamos. Era um lugar escuro e
insalubre, mas percebemos que ele estava vivo. Com os intestinos para fora, mas
ainda vivo. O acudimos e ele mesmo resolveu o problema das tripas”, disse
Randal.
“Então
vocês não estavam em gaiolas como as nossas?”, perguntou Navere, curioso.
“Não...
estávamos em celas como de prisões comuns. E olha que eu conheço várias...”,
disse Askáth, novamente sorrindo. Apenas Navere respondeu com leveza nos lábios
e olhar. Os outros permaneciam sérios e consternados.
“Precisamos
descobrir o que queriam conosco. Aquela criatura que nos perseguiu e a que
sequestrou vocês pareciam ter a mesma origem. Aqueles tentáculos...”, disse
Randal.
“Eu
acho que sei... o que... pode ter... acontecido”. A voz veio de trás deles, da
porta da pequena casa de Askáth.
Um
meio elfo de roupas negras de couro e uma rapieira embainhada na cintura arfava,
como se estivesse correndo há muito tempo. “Olá... Askáth... Randal... e vocês.”
“Olá,
Desmond.”, disse Askáth.
Desmond
entrou, fechou a porta e mostrou a eles o conteúdo de um pergaminho, rabiscado às
pressas por uma mão de caligrafia certeira.
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