domingo, 15 de novembro de 2015

15 - Sangue de Illithid

Ao levantar os olhos e encontrar os de Thaal, Umbra abriu um sorriso. Seus dentes pontiagudos se alinharam, formando um esgar maníaco que não condizia com os olhos, que transmitiam gentileza e calma. Askáth se ergueu, soltando das roupas do guarda que revistava.
“Vejo que sssse sssente melhor, amigo.”, disse Umbra, com a cauda tremulante. Sua pronúncia por vezes era sibilante, fruto de sua língua bifurcada. Askáth conseguia contornar a característica, mas em situações onde se distraía ou abaixava a guarda, tornava audível o sibilar inumano.
“Oh... sim, sim. Muito... obrigado.”, disse Thaal. Sua pele brilhante e seu cabelo muito claro em perfeita harmonia com a cor dos olhos não deixava dúvidas: Thaal era um Aasimar.
Tieflings e aasimares são diretos opostos, o primeiro tocado pelos planos infernais, enquanto que o segundo carrega as energias e  sangue celestiais. Thaal, ao ver Askáth, sentiu repulsa. Uma sensação de tontura e enjôo o dominara, como se Umbra não devesse ser possível; como se a existência dele ferisse a realidade e o equilíbrio natural dos planos. Juntamente à sensação de ojeriza, a culpa tomou-lhe totalmente.
Thaal havia jurado ao seu mestre, Glaus, que pairaria acima do julgamento. Que a aparência jamais impediria que sua opinião sobre alguém fosse formada exclusivamente a partir do caráter e ações. Além disso, ainda havia decidido que quaisquer criaturas, independentemente de sua opinião sobre elas ou o quão fundamentalmente más elas se mostrassem, mereceriam sua ajuda e apoio. Apesar disso, sua face impassível escondia um ódio primordial por aquela criatura que roubava mortos em sua frente.
“Tiefling, eu... eu não sei o que dizer. Sua presença me ofende, mas lhe peço perdão. Não sou digno de me pronunciar a respeito disso nem de julgá-lo por quem você nasceu, apenas por quem você é.”, disse Thaal.
“Comece me chamando pelo nome, então. Sou Askáth Umbra. Imagino que seu nome remeta a algo celestial, e deve terminar com ael ou aal, certo? Ora, claro que estou certo, vocês não têm a menor criatividade para nomes.” , respondeu Askáth.
“Sou Thaal. De fato, você está certo.”, respondeu ele. O aasimar não riu, mas a piada fez Randal esboçar um sorriso sarcástico.
“Bem, o negócio é este, Thaal: encontramos você quase morto ali numa cela como a gente, tiramos você de lá e agora você está aí inteiro. Acho que você cura pessoas, então... é isso?” , disse Randal.
“Sim, eu tenho essa habilidade cedida por Torm, nosso senhor da retidão, da lealdade e do correto. Que a luz tire sua dor, amigo.”, disse Thaal, estendendo a mão e fechando os cortes de seu corpo e fazendo desaparecer o inchaço em sua nuca, onde ele provavelmente fora nocauteado antes de ser trazido para cá.
Tentando contornar a repulsa, Thaal se dirigiu a Askáth. Tomou a mão dele nas suas. Proferiu algumas palavras e Umbra sentiu a grande área intumescida em sua têmpora se reduzir e a dor desaparecer. Dos ferimentos, só permaneceram os rastros de sangue seco. Thaal soltou a mão de Askáth, em silêncio. Umbra não agradeceu, mas seu olhar transmitia submissão e inferioridade.
Askáth sofria com o estereótipo depositado nos tieflings, que eram conhecidos como ladrões, trapaceiros, indignos de confiança e empatia. Nyx havia melhorado a imagem deles, mas Askáth ainda sentia que havia um longo caminho para a aceitação social dos tieflings.
“Estamos todos inteiros, muito poético”, disse Umbra. Podemos conversar sobre isso e nossas infâncias assim que sairmos daqui. Mas primeiro, precisamos cair fora daqui o mais rápido possível.
No início de sua vida, Askáth recebeu ajuda e apoio de sua mãe. Apesar de tiefling, Valrali era uma comerciante de temperos de personalidade gentil que, em segredo, venerava Selûne, a deusa bondosa da noite.  Seu pai, por outro lado, fazia parte do culto de Ashmadai, dedicado ao demônio Asmodeus. Também tiefling, Armus era um ladino de sucesso relativo. Armus e Valrali tinham pouco em comum, mas ainda se respeitavam e tinham algum carinho mútuo quando Valrali fora injustamente presa por venda de ervas proibidas. Armus e Askáth ficaram devastados quando Valrali fora assassinada por outras prisioneiras durante seus poucos dias no calabouço.
Daquele momento em diante, Askáth jurou vingança e foi endossado por seu pai. Partiram em jornada, mas os anos de negligência paterna de Armus com Askáth tornaram a empreitada infrutífera. O filho percebeu que os passos da mãe eram mais justos e pacíficos, e que deveria segui-los. Mesmo assim, Umbra se comportava de forma rebelde e sarcástica grande parte do tempo, e era um ladino de talento. De alguma forma, ele vivia parte da imagem dos tieflings à risca, mas não tinha absorvido a crueldade e psicopatia que muitos demonstravam.
Os três seguiram em fila em direção à porta da sala com paredes de pedra, e a abriram com cuidado. A porta não ofereceu resistência, não estava trancada nem ostentava nenhuma armadilha preparada.
Ao entrarem no recinto seguinte, o cheiro de carne podre os abalroou. Randal sentiu o estômago tentar virar-se e expelir a bile que o preenchia, mas conseguiu impedi-lo. Thaal e Askáth não manifestaram reação. Ambos pareceram entender que dividiam aquela característica.
No teto, gaiolas cúbicas penduradas contrastavam com o conforto da mobília abaixo. Estantes de livros, poltronas, mesas de estudo e tapetes trabalhados formavam um ambiente aconchegante, apenas maculado pela presença das quatro gaiolas, aproximadamente de um metro e vinte de lado. De uma delas, um líquido negro pingava de forma lenta, mas ritmada, empoçando-se sobre o tapete bordado.
Randal, ainda tentando manter o estômago quieto, segurou a respiração e foi investigar o que produzia tamanho odor pútrido. Uma mão cadavérica, verde e inchada protuberava-se das grades da gaiola. Decidiu que deveriam deixar o cadáver apodrecer em paz.
Seguiram, muito inseguros, até a outra porta, que também parecia estar destrancada. Já muito preocupados com a falta de guardas ali, os três suspeitaram de que outros tipos de problemas de segurança haviam ocorrido naquele lugar.
No chão da outra sala, um monstro estava morto. Randal não o conhecia, mas Askáth e Thaal sabiam que aquilo era um illithid. Um medo profundo os tomou, e suas espinhas pareceram congelar, vértebra por vértebra.
“Illithids são extremamente perigosos”, disse Askáth, percebendo a confusão de Randal. “Algo que mata um illithid é duas vezes mais terrível. Espero que vocês tenham escrito seus testamentos. ”
“...ajuda... por favor... nos ajudem...”, uma voz muito fraca, acima das cabeças deles exclamou.
Ao olharem para cima, viram a figura esquelética, careca, do que parecia ser um meio elfo. Sua magreza desafiava tudo o que sabiam sobre sobrevivência.
“Quem é você?”, perguntou Randal.
“... ajuda...”, respondeu o meio-elfo, perdendo a consciência em seguida.
“Acho que não temos escolha”, disse Randal. Quando concluiu a sentença, notou que Thaal já estava operando a alavanca que segurava aquela gaiola, descendo-a lentamente, pendurada na corrente forte de ferro.
A gaiola estava trancada, mas Askáth encontrou em segundos as chaves entre as vestes negras de couro do illithid morto.  Alguns instantes depois, Navere estava livre, mas ainda inconsciente.
Thaal o acomodou no chão. Suas pernas não esticavam com facilidade, pois em todo o tempo que esteve na gaiola, as dimensões da cela suspensa não permitiam que ele se movesse amplamente. Em posição fetal, Navere recebeu os cuidados de Thaal. Ele não acordou imediatamente, mas sua pele parecia um pouco mais rosada e seus olhos um pouco menos fundos.
Quando ele finalmente abriu os olhos, conseguiu murmurar um nome: “Siana...”
Os outros não compreenderam o que ele dizia até que ele levantasse fracamente o dedo indicador e apontasse para uma das outras gaiolas.
Thaal moveu-se rapidamente e desceu a cela apontada. Randal e Askáth encontraram lá dentro uma moça tão emaciada quanto o meio elfo, também carregando orelhas pontudas e as características birraciais de elfos e humanos.
Acomodando-a ao lado do meio-elfo, Thaal deu a ela os mesmos cuidados. Extremamente apreensivos, permaneceram sentados ao lado dos dois meio-elfos nus por algumas horas, até que Thaal completasse o tratamento necessário para que eles ao menos conseguissem ficar de pé.
“O...obrigada”, murmurou a moça. “Não sei o que teria acontecido conosco se vocês não tivessem nos resgatado.”
“Não há de que, amigos”, disse Thaal. “Eu mesmo fui resgatado por estas duas boas almas há pouco. ” . Apesar de ter sido sincero, ao conectar a expressão “boas almas” a um tiefling, seu peito sentiu um aperto. Vencerei minha repulsa, pensou ele.
“Mas como você é gentil, Thaal”, respondeu Askáth  Umbra. O sarcasmo em sua voz não fora percebido por todos, mas Navere sentiu que entre os dois havia bastante tensão. “Qual é o nome de vocês dois e como vocês vieram parar aqui?”
 “Sou Siana, filha de Illithor. Não me lembro de como vim parar aqui. Eu nem sabia que estava aqui até ser resgatada, para ser sincera.”
“Sou Navere, apenas Navere. Eu sei como vim parar aqui, mas não sei para onde foi todo o tempo que demorou até que ficássemos tão consumidos assim. O responsável... é esse aí.”, apontou ele para o illithid morto. Sua voz tremulou quando ele esticou o dedo. Por um segundo, Navere esperou que Mestre levantasse e o punisse de toda as formas que costumava expor mentalmente a ele.

O illithid não se levantou. As apresentações foram terminadas e os cinco se sentiram prontos para tentarem fugir dali. 

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