Ao
levantar os olhos e encontrar os de Thaal, Umbra abriu um sorriso. Seus dentes
pontiagudos se alinharam, formando um esgar maníaco que não condizia com os
olhos, que transmitiam gentileza e calma. Askáth se ergueu, soltando das roupas
do guarda que revistava.
“Vejo
que sssse sssente melhor, amigo.”, disse Umbra, com a cauda tremulante. Sua
pronúncia por vezes era sibilante, fruto de sua língua bifurcada. Askáth
conseguia contornar a característica, mas em situações onde se distraía ou abaixava
a guarda, tornava audível o sibilar inumano.
“Oh...
sim, sim. Muito... obrigado.”, disse Thaal. Sua pele brilhante e seu cabelo muito
claro em perfeita harmonia com a cor dos olhos não deixava dúvidas: Thaal era
um Aasimar.
Tieflings
e aasimares são diretos opostos, o primeiro tocado pelos planos infernais, enquanto
que o segundo carrega as energias e sangue celestiais. Thaal, ao ver Askáth,
sentiu repulsa. Uma sensação de tontura e enjôo o dominara, como se Umbra não
devesse ser possível; como se a existência dele ferisse a realidade e o equilíbrio
natural dos planos. Juntamente à sensação de ojeriza, a culpa tomou-lhe totalmente.
Thaal
havia jurado ao seu mestre, Glaus, que pairaria acima do julgamento. Que a aparência
jamais impediria que sua opinião sobre alguém fosse formada exclusivamente a
partir do caráter e ações. Além disso, ainda havia decidido que quaisquer
criaturas, independentemente de sua opinião sobre elas ou o quão fundamentalmente
más elas se mostrassem, mereceriam sua ajuda e apoio. Apesar disso, sua face
impassível escondia um ódio primordial por aquela criatura que roubava mortos
em sua frente.
“Tiefling,
eu... eu não sei o que dizer. Sua presença me ofende, mas lhe peço perdão. Não
sou digno de me pronunciar a respeito disso nem de julgá-lo por quem você
nasceu, apenas por quem você é.”, disse Thaal.
“Comece
me chamando pelo nome, então. Sou Askáth Umbra. Imagino que seu nome remeta a
algo celestial, e deve terminar com ael
ou aal, certo? Ora, claro que estou
certo, vocês não têm a menor criatividade para nomes.” , respondeu Askáth.
“Sou
Thaal. De fato, você está certo.”, respondeu ele. O aasimar não riu, mas a
piada fez Randal esboçar um sorriso sarcástico.
“Bem,
o negócio é este, Thaal: encontramos você quase morto ali numa cela como a gente,
tiramos você de lá e agora você está aí inteiro. Acho que você cura pessoas,
então... é isso?” , disse Randal.
“Sim,
eu tenho essa habilidade cedida por Torm, nosso senhor da retidão, da lealdade
e do correto. Que a luz tire sua dor, amigo.”, disse Thaal, estendendo a mão e
fechando os cortes de seu corpo e fazendo desaparecer o inchaço em sua nuca,
onde ele provavelmente fora nocauteado antes de ser trazido para cá.
Tentando
contornar a repulsa, Thaal se dirigiu a Askáth. Tomou a mão dele nas suas. Proferiu
algumas palavras e Umbra sentiu a grande área intumescida em sua têmpora se
reduzir e a dor desaparecer. Dos ferimentos, só permaneceram os rastros de
sangue seco. Thaal soltou a mão de Askáth, em silêncio. Umbra não agradeceu,
mas seu olhar transmitia submissão e inferioridade.
Askáth
sofria com o estereótipo depositado nos tieflings, que eram conhecidos como ladrões,
trapaceiros, indignos de confiança e empatia. Nyx havia melhorado a imagem
deles, mas Askáth ainda sentia que havia um longo caminho para a aceitação social
dos tieflings.
“Estamos
todos inteiros, muito poético”, disse Umbra. Podemos conversar sobre isso e
nossas infâncias assim que sairmos daqui. Mas primeiro, precisamos cair fora daqui o mais rápido possível.”
No
início de sua vida, Askáth recebeu ajuda e apoio de sua mãe. Apesar de
tiefling, Valrali era uma comerciante de temperos de personalidade gentil que,
em segredo, venerava Selûne, a deusa bondosa da noite. Seu pai, por outro lado, fazia parte do culto
de Ashmadai, dedicado ao demônio Asmodeus. Também tiefling, Armus era um ladino
de sucesso relativo. Armus e Valrali tinham pouco em comum, mas ainda se
respeitavam e tinham algum carinho mútuo quando Valrali fora injustamente presa
por venda de ervas proibidas. Armus e Askáth ficaram devastados quando Valrali
fora assassinada por outras prisioneiras durante seus poucos dias no calabouço.
Daquele
momento em diante, Askáth jurou vingança e foi endossado por seu pai. Partiram
em jornada, mas os anos de negligência paterna de Armus com Askáth tornaram a
empreitada infrutífera. O filho percebeu que os passos da mãe eram mais justos
e pacíficos, e que deveria segui-los. Mesmo assim, Umbra se comportava de forma
rebelde e sarcástica grande parte do tempo, e era um ladino de talento. De alguma
forma, ele vivia parte da imagem dos tieflings à risca, mas não tinha absorvido
a crueldade e psicopatia que muitos demonstravam.
Os
três seguiram em fila em direção à porta da sala com paredes de pedra, e a
abriram com cuidado. A porta não ofereceu resistência, não estava trancada nem
ostentava nenhuma armadilha preparada.
Ao
entrarem no recinto seguinte, o cheiro de carne podre os abalroou. Randal
sentiu o estômago tentar virar-se e expelir a bile que o preenchia, mas conseguiu
impedi-lo. Thaal e Askáth não manifestaram reação. Ambos pareceram entender que
dividiam aquela característica.
No
teto, gaiolas cúbicas penduradas contrastavam com o conforto da mobília abaixo.
Estantes de livros, poltronas, mesas de estudo e tapetes trabalhados formavam
um ambiente aconchegante, apenas maculado pela presença das quatro gaiolas, aproximadamente
de um metro e vinte de lado. De uma delas, um líquido negro pingava de forma
lenta, mas ritmada, empoçando-se sobre o tapete bordado.
Randal,
ainda tentando manter o estômago quieto, segurou a respiração e foi investigar
o que produzia tamanho odor pútrido. Uma mão cadavérica, verde e inchada protuberava-se
das grades da gaiola. Decidiu que deveriam deixar o cadáver apodrecer em paz.
Seguiram,
muito inseguros, até a outra porta, que também parecia estar destrancada. Já
muito preocupados com a falta de guardas ali, os três suspeitaram de que outros
tipos de problemas de segurança haviam ocorrido naquele lugar.
No
chão da outra sala, um monstro estava morto. Randal não o conhecia, mas Askáth
e Thaal sabiam que aquilo era um illithid. Um medo profundo os tomou, e suas
espinhas pareceram congelar, vértebra por vértebra.
“Illithids
são extremamente perigosos”, disse Askáth, percebendo a confusão de Randal. “Algo
que mata um illithid é duas
vezes mais terrível. Espero que vocês tenham escrito seus testamentos. ”
“...ajuda...
por favor... nos ajudem...”, uma voz muito fraca, acima das cabeças deles
exclamou.
Ao
olharem para cima, viram a figura esquelética, careca, do que parecia ser um
meio elfo. Sua magreza desafiava tudo o que sabiam sobre sobrevivência.
“Quem
é você?”, perguntou Randal.
“...
ajuda...”, respondeu o meio-elfo, perdendo a consciência em seguida.
“Acho
que não temos escolha”, disse Randal. Quando concluiu a sentença, notou que
Thaal já estava operando a alavanca que segurava aquela gaiola, descendo-a
lentamente, pendurada na corrente forte de ferro.
A
gaiola estava trancada, mas Askáth encontrou em segundos as chaves entre as
vestes negras de couro do illithid morto. Alguns instantes depois, Navere estava livre,
mas ainda inconsciente.
Thaal
o acomodou no chão. Suas pernas não esticavam com facilidade, pois em todo o
tempo que esteve na gaiola, as dimensões da cela suspensa não permitiam que ele
se movesse amplamente. Em posição fetal, Navere recebeu os cuidados de Thaal.
Ele não acordou imediatamente, mas sua pele parecia um pouco mais rosada e seus
olhos um pouco menos fundos.
Quando
ele finalmente abriu os olhos, conseguiu murmurar um nome: “Siana...”
Os
outros não compreenderam o que ele dizia até que ele levantasse fracamente o
dedo indicador e apontasse para uma das outras gaiolas.
Thaal
moveu-se rapidamente e desceu a cela apontada. Randal e Askáth encontraram lá
dentro uma moça tão emaciada quanto o meio elfo, também carregando orelhas
pontudas e as características birraciais de elfos e humanos.
Acomodando-a
ao lado do meio-elfo, Thaal deu a ela os mesmos cuidados. Extremamente
apreensivos, permaneceram sentados ao lado dos dois meio-elfos nus por algumas
horas, até que Thaal completasse o tratamento necessário para que eles ao menos
conseguissem ficar de pé.
“O...obrigada”,
murmurou a moça. “Não sei o que teria acontecido conosco se vocês não tivessem
nos resgatado.”
“Não
há de que, amigos”, disse Thaal. “Eu mesmo fui resgatado por estas duas boas
almas há pouco. ” . Apesar de ter sido sincero, ao conectar a expressão “boas
almas” a um tiefling, seu peito sentiu um aperto. Vencerei minha repulsa, pensou ele.
“Mas
como você é gentil, Thaal”, respondeu Askáth
Umbra. O sarcasmo em sua voz não fora percebido por todos, mas Navere sentiu
que entre os dois havia bastante tensão. “Qual é o nome de vocês dois e como
vocês vieram parar aqui?”
“Sou Siana, filha de Illithor. Não me lembro
de como vim parar aqui. Eu nem sabia que estava aqui até ser resgatada, para
ser sincera.”
“Sou
Navere, apenas Navere. Eu sei como vim parar aqui, mas não sei para onde foi
todo o tempo que demorou até que ficássemos tão consumidos assim. O responsável...
é esse aí.”, apontou ele para o illithid morto. Sua voz tremulou quando ele
esticou o dedo. Por um segundo, Navere esperou que Mestre levantasse e o
punisse de toda as formas que costumava expor mentalmente a ele.
O
illithid não se levantou. As apresentações foram terminadas e os cinco se
sentiram prontos para tentarem fugir dali.
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