Segundo
Desmond, o ladino de Amlugnehtar, o caminho até o templo de Sonam seria tortuoso e difícil. As áreas que ladeavam a estrada que Randal seguiria foram
há muito destruídas, durante os ataques do Culto do Dragão. Nesta época, Randal
ainda morava com sua família em Hlath, que fora poupada dos ostensivos ataques
e emboscadas do Culto. Ironicamente, foi apenas necessária a força de outra
cidade, ainda menos expressiva que Hlath para que a destruição fosse completa.
Durante seus
anos como comandante de uma companhia da guarda de Hlath, Randal teve a chance
de ter acesso a informações importantes de estratégia da guerra contra o Culto
do Dragão. O Culto tinha como objetivo primário a ascensão de Tiamat, a rainha deusa
dos dragões cromáticos, que ostenta cinco gigantescas cabeças: negra, verde,
branca, azul e vermelha. Há muito foi aprisionada nos Nove Infernos, e as lendas
insistem que ela deve ser mantida lá a qualquer custo. O Culto do Dragão
recolheu tesouro e prisioneiros por toda Faerûn para que fossem utilizados em
um ritual de invocação extremamente complexo e sanguinário.
Na região onde
Randal Evenwood morava, diversas estratégias de defesa foram estudadas,
treinadas e preparadas, mas por algum motivo as cidades foram deixadas em paz. Ainda
assim, Randal jamais esqueceria das descrições da deusa dragão tão
exaustivamente compartilhadas entre os membros militares, arcanos e clérigos do
conselho da cidade. Lendas se misturaram
com realidade nas reuniões a portas fechadas, mas ainda que apenas uma pequena
parcela do que foi dito sobre Tiamat e Culto fosse verdade, a perspectiva de que
a invocação fosse concluída trazia pânico até ao mais bravo dos cavaleiros.
Evenwood juntava
seus últimos apetrechos para a viagem em uma bolsa de couro muito gasta. Conferiu
se levava sua pedra de afiar, seu saco de dormir, seu porta mapas com a rota
bem traçada dentro. Teve certeza de que não esquecia adagas, pederneira e
isqueiro, rações de viagem e carne seca e algumas parcas moedas. Um cantil
pendia pesadamente do lado da bolsa, que quase não tinha espaço para acomodar a
única muda de roupa que Randal tinha. Ainda
que o conteúdo de sua bagagem fosse constante, ele não costumava arriscar;
conferia cada item antes de partir em missão.
Antes
orgulhoso de seu patrimônio conquistado com trabalho duro, Randal hoje levava sempre tudo
o que possuía dentro da bolsa gasta. Dormia em qualquer lugar que o permitisse continuar
na missão que havia aceitado e gastava as moedas que ganhava como recompensa em
bebidas. Ocasionalmente, investia em equipamento. Sua armadura de placas metálicas
não brilhava e ostentava danos consideráveis, mas permanecia segura e firmemente
colocada. O peso dela já não o incomodava há muito. Randal sentia-se mais protegido
quando vestido com alguns quilos de aço; usava a armadura quase o tempo inteiro.
“Randal,
Randal, RANDAL! Mas que belo dia para viajar, não é mesmo?”, disse Desmond, subitamente
surgindo ao lado de Evenwood. O cumprimento fora tão absolutamente inesperado
que Randal não conseguiu compreender como o ladino chegara até tão perto de seu
ombro de forma despercebida. “Achei que você precisaria de companhia.”
Evenwood
virou-se, ainda tentando acomodar seus itens desajeitadamente na bolsa. À sua
frente, acompanhado de Desmond, havia um tiefling.
“Randal
Evenwood, conheça Askáth Umbra. Umbra, este é o cara de quem te falei. Pena que
ele se assusta com tanta facilidade...”
Askáth
riu, exibindo dentes muito afiados, obviamente não humanos. A aparência dele
era muito diferente da maioria dos tieflings, mas a ascendência demoníaca ainda
era bem visível. Sua pele era branca, seus olhos castanhos pareciam um pouco
mais avermelhados do que o normal, mas não ultrapassavam o tom de cascas de
avelã. Com a boca fechada, apenas um olhar um pouco feroz demonstrava que havia
algo diferente ali. Assim que Askáth continuou a conversar com Desmond, Randal notou
que sua língua escapava um pouco de sua boca de vez em quando, como um maneirismo
ofídeo durante frases longas. Seu humor era ácido, com um sarcasmo bem pontuado
com sua voz baixa, grave e certeira como uma seta. Umbra retirou a mochila
volumosa das costas, depois repousou o manto que o cobria quase completamente
sobre a mesa, exibindo as roupas que tinha embaixo dele. Na cintura, Umbra
exibia uma bela coleção de adagas, com as mais variadas empunhaduras
trabalhadas e bainhas de materiais raros. Serpenteando atrás de suas costas, uma
longa cauda muito fina, tal qual um chicote, completava a imagem muito curiosa
de Askáth.
Tieflings,
antes da presença marcante de Nyx, foram considerados indignos de confiança por
quase todas as raças e povos de Faerûn. Por serem criaturas que carregam a mácula
do inferno, sua aparência podia ser um pouco assustadora. Ainda que em número
considerável naquelas terras, tieflings não costumavam se associar e não tinham
costumes próprios. A maioria deles se dedicava à magia arcana ou à ladinagem, reforçando
o estereótipo de não serem confiáveis. Ainda que inesperadamente, Nyx havia
deixado o mundo um pouco menos xenofóbico em relação aos tieflings.
Um
pouco inseguro, Randal tentou interromper a conversa algumas vezes, mas Desmond
e Askáth pareciam se conhecer muito bem, desenvolvendo a conversa com uma
naturalidade que era alienígena a Evenwood, mesmo quando apenas com amigos próximos.
Askáth Umbra e
Desmond eram ambos ladinos e naquele momento, as roupas deles pareciam muito
semelhantes. Umbra exibia uma roupa muito discreta em um tom de negro um pouco
desbotado, com botas de couro. Desmond, por sua vez, tinha roupas acinzentadas,
mas que serviam ao mesmo propósito da discrição mais absoluta. Justamente pelas
características tão sombrias da moda entre os ladinos, a mudança que se seguiu deixou Randal quase
absolutamente sem fôlego.
Depois de
concluírem a conversa sobre assuntos que Randal não conhecia, Askáth pediu
licença. Recolocou a mochila sobre as costas. Levando o manto repousado sobre o
braço flexionado, encaminhou-se ao centro do pavimento e embarcou num dos discos
mágicos, que o levou para cima.
“Oh, vejo
potencial para uma grande amizade entre vocês, companheiros de viagem!”, disse
Desmond. O sarcasmo em sua voz foi quase profissional demais, e Randal ficou verdadeiramente
em dúvida quanto à veracidade da afirmação. “Não fique triste, ele volta.”,
brincou Desmond, emendando uma alta risada depois da última palavra.
Conversaram
sobre os pormenores da viagem por alguns minutos. Durante todo o tempo, Randal ponderava
sobre a ajuda que Umbra poderia fornecer. Também, perguntava-se por quê ele não
estava participando da conversa sobre a jornada.
Poucos
momentos antes da hora combinada para a partida, Askáth reapareceu,
desembarcando de outro disco mágico. Desta vez, em seus cabelos cor de casca de
carvalho, Umbra exibia um farto chapéu bufante de veludo dourado. Uma bela capa
da mesma cor o cobria, mas ainda deixava visível os belos trajes de nobre que
usava por baixo. Botas que alcançavam suas coxas de couro marrom cobriam uma
calça branca muito apertada. Sobre ela, culotes bufantes azuis e dourados
combinavam com o colete da mesma cor sobre uma camisa impecavelmente branca.
“Randal, conheça
o Duque de Lestars! Vejo que está impressionado com a presença de um nobre tão
importante em nossa humilde taverna!”
Logicamente,
Randal estava muito mais do que impressionado. Aturdido, procurou no Duque os
dentes afiados, a língua bifurcada ou o rabo. Não encontrou nenhum dos três. Ainda,
não era capaz de duvidar de sua memória a este ponto, e tinha certeza de que
aquela figura tão colorida era Askáth.
“Você deve
estar um pouco confuso, Randal. Posso ver isso em seus olhos. Deixe estar,
deixe estar, amigo. Você compreenderá. Mas agora, veja, você é meu guarda
costas. Leve minha mochila, sim?”
Impotente, Evenwood
não conseguiu enxergar saída possível além de aceitar as condições longe de
ideais daquele arranjo. Tomou a pesada e
gigantesca mochila do tiefling nas costas.
“Desejo a vocês
uma jornada construtiva, rápida, gentil e cheia de sucesso!”, disse Desmond. “Agora
mandem-se, cansei de olhar para suas caras feias por hoje!”
Evenwood e o
Duque de Lestars se despediram de Desmond, agradecendo os votos de sucesso.
Seguiram a pé
até o limite de Águas Profundas naquele distrito, e foram parados logo à porta.
“Parem!
Identifiquem-se! Profiram de onde vieram, para onde vão e quando pretendem
voltar!”, disse o guarda, atropeladamente. Como Águas Profundas era uma cidade
muito grande, o controle dos portões era rígido. Apesar disso, este guarda
demonstrava pressa derivada de enfado e cansaço.
“Este é o
Duque de Lestars. Viemos de Águas Profundas, vamos para o sudoeste em uma missão
comercial. Voltaremos em um mês.”, disse Randal.
Aparentemente,
quaisquer informações que fossem dadas por eles gerariam absolutamente a mesma
reação do guarda. Passivo, ele disse “Podem passar.”
Atravessaram
os largos e pesados portões de Águas Profundas, Duque de Lestars à frente, andando
pomposamente; Randal Evenwood atrás, carregando a mochila gigantesca de Askáth
Umbra em um dos ombros e sua pequena e surrada bolsa de couro marrom no outro.
Caminharam em linha reta na estrada por algum
tempo. O chão de terra batida estava compacto, com marcas de rodas de carroça
que corriam paralelas às margens da estrada. Não chovia há bastante tempo, e a
terra sujava as barras de suas roupas com uma poeira marrom avermelhada.
Encontraram
alguns comerciantes na estrada, que se encaminhavam à Águas Profundas para
vender tecidos, legumes, animais e outros itens variados. Depois de algum tempo de estrada deserta, a
pradaria ao redor deles tornou-se um bosque. O bosque, depois de mais duas
horas de caminhada tornou-se uma floresta. A estrada de terra agora era visível
apenas pelas marcas das rodas, já que todo o resto da terra limpa de plantas
vivas e pedras estava coberta por folhas caídas e outros dejetos característicos
das florestas úmidas. Ao lado de um grande rochedo com uma singela cachoeira de
queda lenta e pouco volumosa, decidiram acampar. Restos de algumas fogueiras de
outrora ainda permaneciam ali, deixando claro que era um lugar frequentemente
utilizado para acampamento de viajantes.
A cachoeira
desaguava em uma pequena lagoa, onde peixes vistosos laranjas, pretos e roxos
nadavam calmamente. Randal repousou a bagagem no chão. Enquanto acendia a
fogueira com sua pederneira e isqueiro, Umbra tirou toda a roupa e entrou na lagoa.
Evenwood notou que sua cauda iniciava-se no cóccix, ainda mais longa do que o
comprimento das pernas de Askáth.
Comeram peixes
que Askáth pescou na lagoa junto com algumas frutas silvestres que encontraram
em um arbusto próximo. As tentativas de desenvolvimento de conversa foram quase
de todo infrutíferas, deixando ambos bastante desconfortáveis.
Quando a noite
terminou de deitar-se sobre eles, deitaram-se sob ela e adormeceram em seus
sacos de dormir, ao som da cachoeira.
Foram
acordados algum tempo não pelo sol, mas pela sensação de adagas afiadas
pressionadas contra seus pescoços.
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