quarta-feira, 11 de novembro de 2015

11 – Askáth Umbra e o Duque de Lestars

Segundo Desmond, o ladino de Amlugnehtar, o caminho até o templo de Sonam seria tortuoso e difícil. As áreas que ladeavam a estrada que Randal seguiria foram há muito destruídas, durante os ataques do Culto do Dragão. Nesta época, Randal ainda morava com sua família em Hlath, que fora poupada dos ostensivos ataques e emboscadas do Culto. Ironicamente, foi apenas necessária a força de outra cidade, ainda menos expressiva que Hlath para que a destruição fosse completa.
Durante seus anos como comandante de uma companhia da guarda de Hlath, Randal teve a chance de ter acesso a informações importantes de estratégia da guerra contra o Culto do Dragão. O Culto tinha como objetivo primário a ascensão de Tiamat, a rainha deusa dos dragões cromáticos, que ostenta cinco gigantescas cabeças: negra, verde, branca, azul e vermelha. Há muito foi aprisionada nos Nove Infernos, e as lendas insistem que ela deve ser mantida lá a qualquer custo. O Culto do Dragão recolheu tesouro e prisioneiros por toda Faerûn para que fossem utilizados em um ritual de invocação extremamente complexo e sanguinário.
Na região onde Randal Evenwood morava, diversas estratégias de defesa foram estudadas, treinadas e preparadas, mas por algum motivo as cidades foram deixadas em paz. Ainda assim, Randal jamais esqueceria das descrições da deusa dragão tão exaustivamente compartilhadas entre os membros militares, arcanos e clérigos do conselho da cidade.  Lendas se misturaram com realidade nas reuniões a portas fechadas, mas ainda que apenas uma pequena parcela do que foi dito sobre Tiamat e Culto fosse verdade, a perspectiva de que a invocação fosse concluída trazia pânico até ao mais bravo dos cavaleiros.
Evenwood juntava seus últimos apetrechos para a viagem em uma bolsa de couro muito gasta. Conferiu se levava sua pedra de afiar, seu saco de dormir, seu porta mapas com a rota bem traçada dentro. Teve certeza de que não esquecia adagas, pederneira e isqueiro, rações de viagem e carne seca e algumas parcas moedas. Um cantil pendia pesadamente do lado da bolsa, que quase não tinha espaço para acomodar a única muda de roupa que Randal tinha.  Ainda que o conteúdo de sua bagagem fosse constante, ele não costumava arriscar; conferia cada item antes de partir em missão.
                Antes orgulhoso de seu patrimônio conquistado com  trabalho duro, Randal hoje levava sempre tudo o que possuía dentro da bolsa gasta. Dormia em qualquer lugar que o permitisse continuar na missão que havia aceitado e gastava as moedas que ganhava como recompensa em bebidas. Ocasionalmente, investia em equipamento. Sua armadura de placas metálicas não brilhava e ostentava danos consideráveis, mas permanecia segura e firmemente colocada. O peso dela já não o incomodava há muito. Randal sentia-se mais protegido quando vestido com alguns quilos de aço; usava a armadura quase o tempo inteiro.
                “Randal, Randal, RANDAL! Mas que belo dia para viajar, não é mesmo?”, disse Desmond, subitamente surgindo ao lado de Evenwood. O cumprimento fora tão absolutamente inesperado que Randal não conseguiu compreender como o ladino chegara até tão perto de seu ombro de forma despercebida. “Achei que você precisaria de companhia.”
                Evenwood virou-se, ainda tentando acomodar seus itens desajeitadamente na bolsa. À sua frente, acompanhado de Desmond, havia um tiefling.
               
                “Randal Evenwood, conheça Askáth Umbra. Umbra, este é o cara de quem te falei. Pena que ele se assusta com tanta facilidade...”
                Askáth riu, exibindo dentes muito afiados, obviamente não humanos. A aparência dele era muito diferente da maioria dos tieflings, mas a ascendência demoníaca ainda era bem visível. Sua pele era branca, seus olhos castanhos pareciam um pouco mais avermelhados do que o normal, mas não ultrapassavam o tom de cascas de avelã. Com a boca fechada, apenas um olhar um pouco feroz demonstrava que havia algo diferente ali. Assim que Askáth continuou a conversar com Desmond, Randal notou que sua língua escapava um pouco de sua boca de vez em quando, como um maneirismo ofídeo durante frases longas. Seu humor era ácido, com um sarcasmo bem pontuado com sua voz baixa, grave e certeira como uma seta. Umbra retirou a mochila volumosa das costas, depois repousou o manto que o cobria quase completamente sobre a mesa, exibindo as roupas que tinha embaixo dele. Na cintura, Umbra exibia uma bela coleção de adagas, com as mais variadas empunhaduras trabalhadas e bainhas de materiais raros. Serpenteando atrás de suas costas, uma longa cauda muito fina, tal qual um chicote, completava a imagem muito curiosa de Askáth.
                Tieflings, antes da presença marcante de Nyx, foram considerados indignos de confiança por quase todas as raças e povos de Faerûn. Por serem criaturas que carregam a mácula do inferno, sua aparência podia ser um pouco assustadora. Ainda que em número considerável naquelas terras, tieflings não costumavam se associar e não tinham costumes próprios. A maioria deles se dedicava à magia arcana ou à ladinagem, reforçando o estereótipo de não serem confiáveis. Ainda que inesperadamente, Nyx havia deixado o mundo um pouco menos xenofóbico em relação aos tieflings.
                Um pouco inseguro, Randal tentou interromper a conversa algumas vezes, mas Desmond e Askáth pareciam se conhecer muito bem, desenvolvendo a conversa com uma naturalidade que era alienígena a Evenwood, mesmo quando apenas com amigos próximos.
Askáth Umbra e Desmond eram ambos ladinos e naquele momento, as roupas deles pareciam muito semelhantes. Umbra exibia uma roupa muito discreta em um tom de negro um pouco desbotado, com botas de couro. Desmond, por sua vez, tinha roupas acinzentadas, mas que serviam ao mesmo propósito da discrição mais absoluta. Justamente pelas características tão sombrias da moda entre os ladinos, a  mudança que se seguiu deixou Randal quase absolutamente sem fôlego.
Depois de concluírem a conversa sobre assuntos que Randal não conhecia, Askáth pediu licença. Recolocou a mochila sobre as costas. Levando o manto repousado sobre o braço flexionado, encaminhou-se ao centro do pavimento e embarcou num dos discos mágicos, que o levou para cima.
“Oh, vejo potencial para uma grande amizade entre vocês, companheiros de viagem!”, disse Desmond. O sarcasmo em sua voz foi quase profissional demais, e Randal ficou verdadeiramente em dúvida quanto à veracidade da afirmação. “Não fique triste, ele volta.”, brincou Desmond, emendando uma alta risada depois da última palavra.
Conversaram sobre os pormenores da viagem por alguns minutos. Durante todo o tempo, Randal ponderava sobre a ajuda que Umbra poderia fornecer. Também, perguntava-se por quê ele não estava participando da conversa sobre a jornada.
Poucos momentos antes da hora combinada para a partida, Askáth reapareceu, desembarcando de outro disco mágico. Desta vez, em seus cabelos cor de casca de carvalho, Umbra exibia um farto chapéu bufante de veludo dourado. Uma bela capa da mesma cor o cobria, mas ainda deixava visível os belos trajes de nobre que usava por baixo. Botas que alcançavam suas coxas de couro marrom cobriam uma calça branca muito apertada. Sobre ela, culotes bufantes azuis e dourados combinavam com o colete da mesma cor sobre uma camisa impecavelmente branca.
“Randal, conheça o Duque de Lestars! Vejo que está impressionado com a presença de um nobre tão importante em nossa humilde taverna!”
Logicamente, Randal estava muito mais do que impressionado. Aturdido, procurou no Duque os dentes afiados, a língua bifurcada ou o rabo. Não encontrou nenhum dos três. Ainda, não era capaz de duvidar de sua memória a este ponto, e tinha certeza de que aquela figura tão colorida era Askáth.
“Você deve estar um pouco confuso, Randal. Posso ver isso em seus olhos. Deixe estar, deixe estar, amigo. Você compreenderá. Mas agora, veja, você é meu guarda costas. Leve minha mochila, sim?”
Impotente, Evenwood não conseguiu enxergar saída possível além de aceitar as condições longe de ideais daquele arranjo.  Tomou a pesada e gigantesca mochila do tiefling nas costas.
“Desejo a vocês uma jornada construtiva, rápida, gentil e cheia de sucesso!”, disse Desmond. “Agora mandem-se, cansei de olhar para suas caras feias por hoje!”
Evenwood e o Duque de Lestars se despediram de Desmond, agradecendo os votos de sucesso.
Seguiram a pé até o limite de Águas Profundas naquele distrito, e foram parados logo à porta.
“Parem! Identifiquem-se! Profiram de onde vieram, para onde vão e quando pretendem voltar!”, disse o guarda, atropeladamente. Como Águas Profundas era uma cidade muito grande, o controle dos portões era rígido. Apesar disso, este guarda demonstrava pressa derivada de enfado e cansaço.
“Este é o Duque de Lestars. Viemos de Águas Profundas, vamos para o sudoeste em uma missão comercial. Voltaremos em um mês.”, disse Randal.            
Aparentemente, quaisquer informações que fossem dadas por eles gerariam absolutamente a mesma reação do guarda. Passivo, ele disse “Podem passar.”
Atravessaram os largos e pesados portões de Águas Profundas, Duque de Lestars à frente, andando pomposamente; Randal Evenwood atrás, carregando a mochila gigantesca de Askáth Umbra em um dos ombros e sua pequena e surrada bolsa de couro marrom no outro.
 Caminharam em linha reta na estrada por algum tempo. O chão de terra batida estava compacto, com marcas de rodas de carroça que corriam paralelas às margens da estrada. Não chovia há bastante tempo, e a terra sujava as barras de suas roupas com uma poeira marrom avermelhada.
Encontraram alguns comerciantes na estrada, que se encaminhavam à Águas Profundas para vender tecidos, legumes, animais e outros itens variados.  Depois de algum tempo de estrada deserta, a pradaria ao redor deles tornou-se um bosque. O bosque, depois de mais duas horas de caminhada tornou-se uma floresta. A estrada de terra agora era visível apenas pelas marcas das rodas, já que todo o resto da terra limpa de plantas vivas e pedras estava coberta por folhas caídas e outros dejetos característicos das florestas úmidas. Ao lado de um grande rochedo com uma singela cachoeira de queda lenta e pouco volumosa, decidiram acampar. Restos de algumas fogueiras de outrora ainda permaneciam ali, deixando claro que era um lugar frequentemente utilizado para acampamento de viajantes.
A cachoeira desaguava em uma pequena lagoa, onde peixes vistosos laranjas, pretos e roxos nadavam calmamente. Randal repousou a bagagem no chão. Enquanto acendia a fogueira com sua pederneira e isqueiro, Umbra tirou toda a roupa e entrou na lagoa. Evenwood notou que sua cauda iniciava-se no cóccix, ainda mais longa do que o comprimento das pernas de Askáth.
Comeram peixes que Askáth pescou na lagoa junto com algumas frutas silvestres que encontraram em um arbusto próximo. As tentativas de desenvolvimento de conversa foram quase de todo infrutíferas, deixando ambos bastante desconfortáveis.
Quando a noite terminou de deitar-se sobre eles, deitaram-se sob ela e adormeceram em seus sacos de dormir, ao som da cachoeira.

Foram acordados algum tempo não pelo sol, mas pela sensação de adagas afiadas pressionadas contra seus pescoços. 

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