sábado, 28 de novembro de 2015

28 – A sombra mais escura

            O silêncio durou alguns segundos. Quando abriram os olhos, não esperavam enxergar o que viram. Os cinco trocaram olhares confusos. Estavam dispostos em círculo, como cinco pontas em um pentagrama imaginário, disposto no interior de um círculo físico. Este círculo era composto de runas brilhantes, muito bem desenhadas. Enquanto as observavam, as runas luminescentes perderam seu brilho azul gradativamente, até apagarem por completo.
            O ambiente ao redor do círculo era uma sala com paredes de pedra muito antigas. Não era uma construção grande, mas tinha em todas as paredes altíssimas estantes cheias de livros variados. O frio era quase palpável e em poucos minutos estavam todos com os dedos arroxeados e dormentes. Nas paredes haviam suportes com velas muito antigas, que Desmond se pôs a acender, uma por uma, começando pela vela em cima de uma superfície. Quando a última vela foi acesa, a sala inteira pareceu ganhar calor e luminosidade muito além do que as velas poderiam fornecer. A atmosfera parecia mágica e o ambiente se tornou agradável. Eles puderam observar com mais clareza o que parecia ser uma biblioteca. As estantes estavam cheias em cada espaço, e havia uma escrivaninha muito bonita e de ótima qualidade, com quatro gavetas. Em cima, papéis e pergaminhos estavam organizados num canto, com pena e tinteiro ao lado. Um carimbo e um pedaço de cera vermelha para selar estavam organizadamente colocados ao lado de uma das velas acesas por Desmond. A bela poltrona que acompanhava a mesa tinha veludo vermelho no estofado.
            Mais outras duas poltronas muito bonitas e confortáveis estavam colocadas nos cantos, perto das estantes. Uma grande escada estava apoiada em uma das estantes, de forma a permitir que os livros colocados em posições mais altas pudessem ser acessados com facilidade.
            “Onde estamos?”, Askáth finalmente teve coragem de perguntar. A pergunta pairava entre eles pelos últimos dez minutos, mas o choque do teleporte era tão grande que nenhum deles tinha tido a ousadia de colocar em palavras o medo e a dúvida.
            “Eu... não sei.” Desmond respondeu. Se o mais experiente deles não tinha ideia de onde estavam, os outros não tinham meios de saber.
            Enquanto Randal andava em círculos, Askáth e Desmond exploravam a sala por mais informações e segredos, Thaal e Navere se sentaram nas poltronas, e começaram a explorar os papéis, pergaminhos e livros.
            Nos pergaminhos, entre cartas indecifráveis e informações aparentemente irrelevantes, havia um nome, Evernight, uma data de dois dias atrás e um nome: Amlugnehtar.
            Navere, ainda segurando o pergaminho, chamou por Desmond. Ao ler, Desmond pareceu confuso.
            “Se foi para lá que os levaram, estamos perdidos... nunca ouvi falar neste lugar.”, disse ele, demonstrando perder as esperanças.
            A vela em cima da escrivaninha pareceu tremular. Eles guardaram este pergaminho e mais alguns outros dentro da bolsa. Durante todo o tempo, Desmond e Askáth tinham procurado uma saída da sala, sem sucesso. O círculo estava completamente inativo e nenhuma das tentativas deles fora produtiva.
            Navere exauriu seus olhos e sua mente. Viu que a vela em cima da escrivaninha estava quase no fim. Resolveu extingui-la, antes que eles ficassem sem luz. Apagou-a com um sopro, e instantaneamente a sala se tornou mais escura e mais fria, como se a magia que todas as velas acesas ao mesmo gerava tivesse sido interrompida.
            Na mesma hora, Desmond percebeu que um dos cantos da sala parecia particularmente escuro, desproporcionalmente à quantidade de luz produzida pelas velas que ainda rodeavam a sala. Mais ninguém pareceu perceber, e apenas viram Desmond se encaminhando a um canto e examinando uma sombra escura.
            Então, Desmond não estava mais lá. A olhos vistos o ladino tinha simplesmente desaparecido. Navere se levantou de súbito muito assustado, tentando achar o ladino.  Correu em direção ao canto onde Desmond havia estado.
            Navere também desapareceu. Askáth, Randal e Thaal ficaram ainda mais amedrontados e se aproximaram cautelosamente do canto escurecido. Um a um, desapareceram. Thaal foi o último. Quando se viu sozinho naquela biblioteca, não viu alternativa além de se embrenhar naquela sombra que parecia tão comum, na esperança de ser enviado ao mesmo lugar que todos os outros.
            Curiosamente, eles haviam sido levados para um lugar exatamente igual ao que estavam antes, com apenas uma diferença: Os livros tinham todos capas negras, as estantes estavam cobertas de teias de aranha e a escrivaninha decrépita. A escada apoiada nas estantes era feita de madeira negra, retorcida, e não transmitia segurança. As velas nas paredes estavam cobertas de pó e não eram acesas há muito tempo. O frio era cortante como antes, mas desta vez, a umidade do ar era flagrante, causando uma sensação única nos cabelos e pelos do corpo. Apesar de tudo isso, a diferença fundamental desta sala para a anterior era que esta tinha uma porta, ladeada por duas estantes negras.  
            Sem compreender o que tinha acontecido, eles começaram a acender as velas que acreditavam serem as mesmas.
            Cada uma que acendiam permanecia acesa apenas até que a próxima recebesse fogo. Desta forma, além de não produzirem o efeito mágico presente na outra sala, apenas exercitavam a futilidade de tentarem se aquecer.
            Os papéis e livros se mostraram absolutamente inúteis. A escrita, quando presente, era ilegível ou sem sentido. A maioria dos papéis havia sido consumida por fungos e traças.
             Em um acordo silencioso feito após a inspeção do lugar, Desmond se encaminhou para a porta. Para a surpresa de todos, ela estava destrancada e se abriu com facilidade. No momento em que a primeira fresta foi aberta, um vento gélido, cortante e úmido invadiu o ambiente e os surpreendeu. Terminaram de abrir e viram que a porta dava acesso a um corredor que mais parecia uma varanda. À frente deles, em vez de paredes, o corredor tinha uma grade de ferro muito antiga, de linhas retas. Várias falhas davam à estrutura uma aparência muito insegura.
            Eles saíram da sala e se enfileiraram no corredor, observando estarrecidos a paisagem.
            Estavam em um lugar muito alto, como uma torre. A visão do terraço era de muito longo alcance e o relevo era muito familiar e alienígena ao mesmo tempo. O que parecia ser a cidade de Randal,  Hlath, estava à frente, com as montanhas que ficavam atrás dela posicionadas exatamente como o esperado. O rio que cortava aquele vale também estava lá, assim como o bosque. Apesar disso, era o máximo de reconhecimento possível.
            O céu era cinza escuro, como se uma tempestade se formasse cobrindo cada centímetro da abóbada celeste. Não havia grama verde nem cobrindo as colinas. Àquela altura, não era possível discernir com clareza as características do terreno. O chão era negro, parecendo ser coberto por grama morta e cinzas. As casas, em vez de construídas, se assemelhavam ao estado em que a cidade tinha ficado após a destruição durante o ataque de Iljak. Todas as paredes e telhados das casas eram de madeira negra, como após um incêndio. As ruas eram tortuosas, diferentes das bem ordenadas de Hlath. Não haviam árvores vivas no bosque, na cidade ou em nenhuma outra região visível. As montanhas, outrora verdejantes com os topos cobertos de neve perene, agora eram enormes estruturas negras, pontudas e irregulares como rocha vulcânica. O rio tinha água, mas era lodosa e de aparência muito insalubre. Todo o ambiente parecia uma versão corrompida do que conheciam de Hlath e a região.
            Randal observava com os olhos marejados. Acreditava que aquele era seu lar e que havia sido levado pela desolação. As lágrimas escorreram e ele não manifestou intenção de limpá-las.
            “Randal... acho que esta não é a sua cidade.”, disse Desmond, inseguro.
            “Como você pode dizer isso? Veja... aquela ali era minha casa.”
            “Todo o resto está mudado, Randal. Eu... eu acho que sei onde estamos.”
            Todos olharam para Desmond, esperando clarificação. A sensação era de desespero. O vento frio e úmido colava os cabelos deles às frontes. Onde as mechas umedecidas tocavam, sentiam a pele ficar ainda mais gelada.
            “Não. Eu preciso ter certeza. Vamos descer lá”, disse Desmond, decidido.         
            Eles não perguntaram mais. Preferiam que Desmond respondesse quando realmente estivesse certo do que estava acontecendo e para onde eles tinham sido levados.
            Seguindo a varanda da torre, encontraram uma escada que os levava diretamente para baixo. A torre não parecia mais do que um observatório e não tinha outras salas interessantes ou fechadas.
            Quando alcançaram o solo, perceberam que ele era negro por ser coberto por carvão, pedriscos, ossos e teia de aranha. Não havia vegetação visível, insetos, animais nem nada parecido.
            Andaram por mais de meia hora até alcançarem a entrada da cidade que se assemelhava a Hlath. Não viram movimento algum, não havia nenhuma indicação de que havia vida naquele lugar. Randal caminhava cautelosamente, investigando as casas mais ou menos da mesma forma que as investigara após o ataque. Todas as casas estavam vazias. Seus interiores pareciam reflexos das casas de Hlath, mas com móveis queimados, quebrados ou reduzidos a pó. No chão, em duas casas, haviam esqueletos.
            Em alguns minutos, alcançaram a casa do mercenário. Ele hesitou, compreensivelmente, antes de abrir a porta. Askáth deu um passo à frente e tocou as costas do amigo em sinal de apoio. Ele olhou para o ladino e finalmente estendeu a mão para a fechadura da porta.
            Ao observar o interior da casa, seus pesadelos mais cruéis se tornaram realidade. Lana, sua esposa estava sentada em uma cadeira, de mãos dadas com sua filha Sarah. Os corpos delas estavam parcialmente decompostos, sua carne embranquecida marcada por ferimentos, queimaduras. Haviam ossos expostos, pedaços de cabelo faltantes. Ambas haviam morrido fitando o teto, com seus olhos enevoados vidrados e paralisados no tempo.
            Randal se aproximou delas, ajoelhou-se no chão e gritou, liberando toda a força do pesar em seus pulmões. O silêncio pareceu ainda mais pesado quando o ar terminou e ele se calou.
            Lana abriu os olhos. Sarah a seguiu, e ambas levantaram as cabeças. Randal não percebeu.
            Lana gritou, produzindo um som profano, sobrenatural e bizarro. Levantou a mão que estava solta e golpeou Randal na lateral da cabeça. Ele caiu para o lado, com os olhos muito arregalados. Sarah soltou-se da mão da mãe, abriu a boca e expôs dentes muito afiados, apodrecidos. Agarrou o pai pelo pescoço e mordeu a carne acima de sua clavícula. Sangue escorreu pelos lados da mordida.
            Desmond agiu rápido, atirando uma adaga no centro da testa de Sarah, fazendo-a soltar a mordida e pender para a frente inerte, com a cabeça ainda sobre Randal. Thaal produziu uma forte luz com as mãos que atingiu Lana no centro do peito, causando queimaduras que fizeram sua carne sibilar em protesto. Ela gritou mais uma vez, teve movimentos convulsivos e parou de se mexer, ainda sentada na cadeira. Randal cobriu o ferimento no ombro com a mão, soluçando e gritando. Thaal correu até ele e o auxiliou, utilizando as mãos para estancar o sangramento.

            Enquanto Thaal curava Randal com uma fraca luz que vinha das mãos, Desmond finalmente falou com um pesar imenso na voz:

 “Estamos em Shadowfell”.

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