O silêncio
durou alguns segundos. Quando abriram os olhos, não esperavam enxergar o que
viram. Os cinco trocaram olhares confusos. Estavam dispostos em círculo, como
cinco pontas em um pentagrama imaginário, disposto no interior de um círculo
físico. Este círculo era composto de runas brilhantes, muito bem desenhadas.
Enquanto as observavam, as runas luminescentes perderam seu brilho azul
gradativamente, até apagarem por completo.
O ambiente
ao redor do círculo era uma sala com paredes de pedra muito antigas. Não era
uma construção grande, mas tinha em todas as paredes altíssimas estantes cheias
de livros variados. O frio era quase palpável e em poucos minutos estavam todos
com os dedos arroxeados e dormentes. Nas paredes haviam suportes com velas
muito antigas, que Desmond se pôs a acender, uma por uma, começando pela vela
em cima de uma superfície. Quando a última vela foi acesa, a sala inteira
pareceu ganhar calor e luminosidade muito além do que as velas poderiam
fornecer. A atmosfera parecia mágica e o ambiente se tornou agradável. Eles
puderam observar com mais clareza o que parecia ser uma biblioteca. As estantes
estavam cheias em cada espaço, e havia uma escrivaninha muito bonita e de ótima
qualidade, com quatro gavetas. Em cima, papéis e pergaminhos estavam
organizados num canto, com pena e tinteiro ao lado. Um carimbo e um pedaço de
cera vermelha para selar estavam organizadamente colocados ao lado de uma das
velas acesas por Desmond. A bela poltrona que acompanhava a mesa tinha veludo
vermelho no estofado.
Mais outras
duas poltronas muito bonitas e confortáveis estavam colocadas nos cantos, perto
das estantes. Uma grande escada estava apoiada em uma das estantes, de forma a
permitir que os livros colocados em posições mais altas pudessem ser acessados
com facilidade.
“Onde
estamos?”, Askáth finalmente teve coragem de perguntar. A pergunta pairava
entre eles pelos últimos dez minutos, mas o choque do teleporte era tão grande
que nenhum deles tinha tido a ousadia de colocar em palavras o medo e a dúvida.
“Eu... não
sei.” Desmond respondeu. Se o mais experiente deles não tinha ideia de onde
estavam, os outros não tinham meios de saber.
Enquanto
Randal andava em círculos, Askáth e Desmond exploravam a sala por mais
informações e segredos, Thaal e Navere se sentaram nas poltronas, e começaram a
explorar os papéis, pergaminhos e livros.
Nos
pergaminhos, entre cartas indecifráveis e informações aparentemente
irrelevantes, havia um nome, Evernight,
uma data de dois dias atrás e um nome: Amlugnehtar.
Navere,
ainda segurando o pergaminho, chamou por Desmond. Ao ler, Desmond pareceu
confuso.
“Se foi
para lá que os levaram, estamos perdidos... nunca ouvi falar neste lugar.”,
disse ele, demonstrando perder as esperanças.
A vela em
cima da escrivaninha pareceu tremular. Eles guardaram este pergaminho e mais
alguns outros dentro da bolsa. Durante todo o tempo, Desmond e Askáth tinham
procurado uma saída da sala, sem sucesso. O círculo estava completamente
inativo e nenhuma das tentativas deles fora produtiva.
Navere
exauriu seus olhos e sua mente. Viu que a vela em cima da escrivaninha estava
quase no fim. Resolveu extingui-la, antes que eles ficassem sem luz. Apagou-a
com um sopro, e instantaneamente a sala se tornou mais escura e mais fria, como
se a magia que todas as velas acesas ao mesmo gerava tivesse sido interrompida.
Na mesma
hora, Desmond percebeu que um dos cantos da sala parecia particularmente escuro,
desproporcionalmente à quantidade de luz produzida pelas velas que ainda
rodeavam a sala. Mais ninguém pareceu perceber, e apenas viram Desmond se
encaminhando a um canto e examinando uma sombra escura.
Então,
Desmond não estava mais lá. A olhos vistos o ladino tinha simplesmente
desaparecido. Navere se levantou de súbito muito assustado, tentando achar o
ladino. Correu em direção ao canto onde
Desmond havia estado.
Navere
também desapareceu. Askáth, Randal e Thaal ficaram ainda mais amedrontados e se
aproximaram cautelosamente do canto escurecido. Um a um, desapareceram. Thaal
foi o último. Quando se viu sozinho naquela biblioteca, não viu alternativa
além de se embrenhar naquela sombra que parecia tão comum, na esperança de ser
enviado ao mesmo lugar que todos os outros.
Curiosamente,
eles haviam sido levados para um lugar exatamente igual ao que estavam antes,
com apenas uma diferença: Os livros tinham todos capas negras, as estantes
estavam cobertas de teias de aranha e a escrivaninha decrépita. A escada
apoiada nas estantes era feita de madeira negra, retorcida, e não transmitia
segurança. As velas nas paredes estavam cobertas de pó e não eram acesas há
muito tempo. O frio era cortante como antes, mas desta vez, a umidade do ar era
flagrante, causando uma sensação única nos cabelos e pelos do corpo. Apesar de
tudo isso, a diferença fundamental desta sala para a anterior era que esta tinha
uma porta, ladeada por duas estantes negras.
Sem
compreender o que tinha acontecido, eles começaram a acender as velas que
acreditavam serem as mesmas.
Cada uma
que acendiam permanecia acesa apenas até que a próxima recebesse fogo. Desta
forma, além de não produzirem o efeito mágico presente na outra sala, apenas exercitavam
a futilidade de tentarem se aquecer.
Os papéis e
livros se mostraram absolutamente inúteis. A escrita, quando presente, era ilegível
ou sem sentido. A maioria dos papéis havia sido consumida por fungos e traças.
Em um acordo silencioso feito após a inspeção
do lugar, Desmond se encaminhou para a porta. Para a surpresa de todos, ela
estava destrancada e se abriu com facilidade. No momento em que a primeira fresta
foi aberta, um vento gélido, cortante e úmido invadiu o ambiente e os
surpreendeu. Terminaram de abrir e viram que a porta dava acesso a um corredor que
mais parecia uma varanda. À frente deles, em vez de paredes, o corredor tinha
uma grade de ferro muito antiga, de linhas retas. Várias falhas davam à estrutura
uma aparência muito insegura.
Eles saíram
da sala e se enfileiraram no corredor, observando estarrecidos a paisagem.
Estavam em um
lugar muito alto, como uma torre. A visão do terraço era de muito longo alcance
e o relevo era muito familiar e alienígena ao mesmo tempo. O que parecia ser a cidade
de Randal, Hlath, estava à frente, com as
montanhas que ficavam atrás dela posicionadas exatamente como o esperado. O rio
que cortava aquele vale também estava lá, assim como o bosque. Apesar disso, era
o máximo de reconhecimento possível.
O céu era
cinza escuro, como se uma tempestade se formasse cobrindo cada centímetro da abóbada
celeste. Não havia grama verde nem cobrindo as colinas. Àquela altura, não era
possível discernir com clareza as características do terreno. O chão era negro,
parecendo ser coberto por grama morta e cinzas. As casas, em vez de construídas,
se assemelhavam ao estado em que a cidade tinha ficado após a destruição durante
o ataque de Iljak. Todas as paredes e telhados das casas eram de madeira negra,
como após um incêndio. As ruas eram tortuosas, diferentes das bem ordenadas de
Hlath. Não haviam árvores vivas no bosque, na cidade ou em nenhuma outra região
visível. As montanhas, outrora verdejantes com os topos cobertos de neve perene,
agora eram enormes estruturas negras, pontudas e irregulares como rocha vulcânica.
O rio tinha água, mas era lodosa e de aparência muito insalubre. Todo o
ambiente parecia uma versão corrompida do que conheciam de Hlath e a região.
Randal
observava com os olhos marejados. Acreditava que aquele era seu lar e que havia
sido levado pela desolação. As lágrimas escorreram e ele não manifestou intenção
de limpá-las.
“Randal...
acho que esta não é a sua cidade.”, disse Desmond, inseguro.
“Como você
pode dizer isso? Veja... aquela ali era minha casa.”
“Todo o
resto está mudado, Randal. Eu... eu acho que sei onde estamos.”
Todos
olharam para Desmond, esperando clarificação. A sensação era de desespero. O
vento frio e úmido colava os cabelos deles às frontes. Onde as mechas umedecidas
tocavam, sentiam a pele ficar ainda mais gelada.
“Não. Eu
preciso ter certeza. Vamos descer lá”, disse Desmond, decidido.
Eles não
perguntaram mais. Preferiam que Desmond respondesse quando realmente estivesse certo do que estava acontecendo e para onde eles tinham sido levados.
Seguindo a varanda da torre,
encontraram uma escada que os levava diretamente para baixo. A torre não parecia
mais do que um observatório e não tinha outras salas interessantes ou fechadas.
Quando
alcançaram o solo, perceberam que ele era negro por ser coberto por carvão,
pedriscos, ossos e teia de aranha. Não havia vegetação visível, insetos,
animais nem nada parecido.
Andaram por
mais de meia hora até alcançarem a entrada da cidade que se assemelhava a
Hlath. Não viram movimento algum, não havia nenhuma indicação de que havia vida
naquele lugar. Randal caminhava cautelosamente, investigando as casas mais ou
menos da mesma forma que as investigara após o ataque. Todas as casas estavam
vazias. Seus interiores pareciam reflexos das casas de Hlath, mas com móveis
queimados, quebrados ou reduzidos a pó. No chão, em duas casas, haviam esqueletos.
Em alguns minutos,
alcançaram a casa do mercenário. Ele hesitou, compreensivelmente, antes de
abrir a porta. Askáth deu um passo à frente e tocou as costas do amigo em sinal
de apoio. Ele olhou para o ladino e finalmente estendeu a mão para a fechadura
da porta.
Ao observar
o interior da casa, seus pesadelos mais cruéis se tornaram realidade. Lana, sua
esposa estava sentada em uma cadeira, de mãos dadas com sua filha Sarah. Os
corpos delas estavam parcialmente decompostos, sua carne embranquecida marcada
por ferimentos, queimaduras. Haviam ossos expostos, pedaços de cabelo faltantes.
Ambas haviam morrido fitando o teto, com seus olhos enevoados vidrados e paralisados
no tempo.
Randal se
aproximou delas, ajoelhou-se no chão e gritou, liberando toda a força do pesar
em seus pulmões. O silêncio pareceu ainda mais pesado quando o ar terminou e
ele se calou.
Lana abriu
os olhos. Sarah a seguiu, e ambas levantaram as cabeças. Randal não percebeu.
Lana
gritou, produzindo um som profano, sobrenatural e bizarro. Levantou a mão que estava
solta e golpeou Randal na lateral da cabeça. Ele caiu para o lado, com os olhos
muito arregalados. Sarah soltou-se da mão da mãe, abriu a boca e expôs dentes muito
afiados, apodrecidos. Agarrou o pai pelo pescoço e mordeu a carne acima de sua
clavícula. Sangue escorreu pelos lados da mordida.
Desmond
agiu rápido, atirando uma adaga no centro da testa de Sarah, fazendo-a soltar a
mordida e pender para a frente inerte, com a cabeça ainda sobre Randal. Thaal
produziu uma forte luz com as mãos que atingiu Lana no centro do peito, causando
queimaduras que fizeram
sua carne sibilar em protesto. Ela gritou mais uma vez, teve movimentos
convulsivos e parou de se mexer, ainda sentada na cadeira. Randal cobriu o ferimento
no ombro com a mão, soluçando e gritando. Thaal correu até ele e o auxiliou,
utilizando as mãos para estancar o sangramento.
Enquanto Thaal
curava Randal com uma fraca luz que vinha das mãos, Desmond finalmente falou com um pesar imenso na voz:
“Estamos em Shadowfell”.
“Estamos em Shadowfell”.
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