Ao
levantar o pequeno menino morto do chão, Phidain não sabia o que fazer. Sentia
o desespero tomando conta de sua cabeça, e sua respiração começou a perder o
ritmo, tornando-se superficial e frenética.
Os
pais do menino estavam jogados no chão, também mortos. A mãe, uma bela elfa, tinha
resistido por alguns minutos com sua garganta cortada não fundo o bastante,
tempo suficiente para ver Phidain atirando com uma besta contra seu marido, um
humano mago, vestido com longos robes escuros. A elfa perdeu os sentidos pouco
depois de ver seu marido tentar reagir, atirando raios de fogo em direção ao
atacante desconhecido.
Phidain
havia recebido aquela missão de última hora, com alta prioridade. Usava suas
roupas negras de couro, clássicas dos ladinos daquela guilda. Em seu peito,
entretanto, ele ostentava um broche de ouro trabalhado. Cinco cabeças de dragão
se alinhavam no broche, a cabeça central em evidência. Alguns detalhes em cada
cabeça tinham tinta esmaltada realçando o relevo. Cada cabeça, com uma cor:
preta, branca, azul, verde e a central, vermelha.
O
broche prendeu-se à roupa do menino enquanto ele o levantava. Devia ter por
volta de doze anos, mas Phidain não entendia muito bem como os meio-elfos se
desenvolviam.
Quando
ele recebera esta missão, fora informado pelo líder da guilda que esta família,
uma elfa arqueira e seu marido, um humano mago, decidiram desertar do Culto do
Dragão e pretendiam fugir muito em breve, levando consigo informações muito
preciosas. Phidain deveria impedi-los e levar suas cabeças como prova de sua
eficiência para o líder da guilda. Assim como Phidain, eles haviam sido incluídos
no Culto contra suas vontades, pois seus superiores haviam cedido à força
opressora da organização do Culto do Dragão. Nesta época, o Culto angariava
forças na maioria das organizações mágicas, ladinas, políticas e comerciais, com
a intenção de fortalecer suas bases para a invocação de Tiamat.
Aquela
família tinha recebido algumas missões de escolta, pois não eram
particularmente influentes nem poderosos. Ainda assim, a deserção deles poderia
representar um grande retrocesso para o Culto, caso eles decidissem expor as
informações às quais tiveram acesso durante o tempo que passaram alistados.
O
mago, ao ver sua esposa ter a garganta cortada inesperadamente enquanto
jantavam, levantou-se imediatamente, fitando Phidain de frente. A altura do
halfling o permitiu esgueirar-se sem ser percebido, abordando a família em um
de seus momentos mais frágeis.
Quando
a elfa caiu da cadeira e atingiu o chão, respirando de forma entrecortada, Phidain
arrependeu-se pela primeira vez. Uma das mãos dela levou-se à garganta, na
esperança de conter o sangramento. A outra, ela levou à barriga. De relance,
Phidain pôde ver, do lado de dentro do inchaço característico, o bebê se
mexendo por baixo dos dedos da mãe, provavelmente pela última vez. Desviou o
olhar, já atirando setas com a besta que carregava na direção do mago.
O
mago urrou ao erguer-se, estendendo as mãos e atirando raios de fogo. Phidain
agachou-se, com a agilidade de ladino experiente. Os raios ultrapassaram o
espaço que ele havia ocupado menos de um segundo antes. Sem a esquiva, ele
teria sido atingido em cheio. Reergueu-se. Uma última seta foi necessária para parar o
mago, atingindo-o diretamente no centro do peito. O mago fez um barulho seco ao
atingir o chão, e não se mexeu de novo. Ao ver os olhos do mago se apagando, Phidain
se arrependeu pela segunda vez.
Atrás
de Phidain, um gemido baixo precedeu o barulho de algo caindo no chão. Ao
virar-se, o ladino pôde ver um menino meio elfo, franzino, levando as mãos ao peito.
Ele havia deixado cair uma vasilha com legumes que provavelmente acrescentaria
ao jantar que já acontecia. Folhas de repolho espalhadas pelo chão começavam a
se mesclar a pedaços chamuscados das roupas do menino, que se desprendiam por
causa do fogo e caíam levemente sobre as folhas de verdura.
Além
do fogo, os mísseis flamejantes haviam atingido o menino com muita força, e ele
perdera o fôlego por causa da brutalidade do trauma seco. Enquanto seu peito
queimava, ele fazia sons que misturavam gemidos e tentativas de inspirar o ar,
em vão. Phidain via a fumaça da própria carne em chamas do menino invadindo os
pulmões dele. Em menos de um minuto, o ladino assistiu o meio elfo franzino cair
e morrer sufocado. Phidain se arrependeu pela terceira vez.
O
choque causado pela presença inesperada do menino e de seu irmão ainda não
nascido impediu que Phidain fosse capaz de socorrer o meio elfo nos últimos
instantes de sua vida. Quando o menino finalmente parou de tentar respirar e
seus olhos se vitrificaram, Phidain conseguiu agachar-se ao lado dele e tomá-lo
nos braços.
Quando
seu superior incluiu a guilda toda no Culto do Dragão, Phidain não concordara e
não tinha se sentido seguro em aceitar a proposta de fazer parte da organização.
Ainda assim, fora obrigado a participar, como todo o resto dos ladinos da
guilda. Não tinha tido coragem de desertá-los antes, principalmente depois de
ver o que acontecia com os desertores como os que acabara de eliminar. Em seus
braços pendia o corpo de uma criança, vítima do Culto. Seus pais, punidos por
tentarem preservar a vida de seus filhos, agora jaziam mortos, sabendo que
falharam em sua missão.
Phidain
não se arrependeria pela quarta vez. Ainda carregando o menino, exigindo de seus
braços finos de halfling muito mais força do que eles tinham, levou o meio elfo
para o templo de Oghma, o deus da sabedoria e dos bardos. O templo ficava próximo
à sua casa; Phidain, apesar de não ser um homem de fé, algumas vezes tinha
procurado o lugar por ajuda divina, tanto médica quanto espiritual. Sua ligação
com a música, ainda que subdesenvolvida, era sua verdadeira vocação. A vida da
ladinagem havia sido imposição da vida, quando ele se viu sozinho, infante,
passando fome. Gastava seus dias observando bardos cantando nas ruas e tavernas,
escondido, comendo pães roubados.
Ao
adentrar o templo com o menino no colo, um clérigo bem vestido veio logo ao seu
auxílio.
“Podemos
trazê-lo de volta”, disse o clérigo, ao ver o desespero de Phidain. “Ele acaba
de morrer. Mas infelizmente, este procedimento tem um custo muito alto... precisamos
de mil e quinhentas peças de ouro.”
Phidain
sentiu-se desabar sob aquelas palavras. Aquela era uma quantidade quase inatingível
de dinheiro para ele. Ainda assim, prometeu ao clérigo e a si mesmo: “Volto em
uma hora com esta quantia”.
Ao
sair do templo, já tinha um plano estabelecido. Voltou à casa onde matara os
pais do menino. Respirando fundo, cortou as cabeças inertes do mago e de sua
esposa, colocando-as em uma bolsa de couro que lhe havia sido fornecida com este
intuito. Encaminhou-se rapidamente para onde o líder da guilda ficava, uma sala
malcuidada atrás de um beco, acessada por uma passagem secreta dentro de um
açougue. O recinto do líder ficava depois de um longo corredor com várias portas.
Antes um lugar reservado para a guilda, agora era um dos centros criminosos controlados
pelo Culto.
Lá, colocou as cabeças em cima da mesa de seu
líder com relativa pressa e recebeu os agradecimentos secos que lhe eram sempre
reservados após as missões. Saiu sem olhar para trás, com as feições carrancudas
características dos ladinos.
Ao
invés de sair novamente através do corredor até o açougue, Phidain entrou
sorrateiramente em uma das portas. Ali, cumprimentou de forma vazia dois membros
da guilda que contavam o dinheiro que retiravam de pequenas bolsas de tecido e
couro, roubadas de pessoas variadas diariamente. O dinheiro era separado em baús
de madeira, por tipo. Um pequeno guardava as raras peças de platina, outro bem
maior as de ouro, dois do mesmo tamanho as de prata e mais quatro de tamanho médio
guardavam as de cobre. Era uma quantidade imensa de dinheiro, que crescia a cada
dia. Os valores seriam utilizados no ritual de invocação de Tiamat, que envolveria
somas incontáveis de dinheiro.
Com
dois movimentos certeiros, cortou as gargantas dos dois membros da guilda
enquanto eles estavam com as cabeças baixas, contando as moedas. Ambos fizeram
sons secos ao atingirem a mesa. Os pescoços abertos permitiram que as duas
poças de sangue se tocassem em cima da mesa, cobrindo peças de ouro que se
empilhavam displicentemente entre as mãos deles.
Com
muita rapidez, Phidain utilizou a mesma bolsa onde tinha levado as cabeças dos
pais do menino e a preencheu de peças de platina. Conseguiu quase esvaziar o baú
antes que a bolsa ficasse pesada demais. Saiu com cuidado da sala e retomou o
passo normal para sair pelo corredor e açougue, sem levantar maiores suspeitas.
Ao
atingir a rua, começou a andar cada vez mais rápido, até atingir um trote ligeiro,
com a bolsa cheia de moedas segura sob seu braço. O movimento impedia que o
barulho causado pelas moedas fosse incontrolável. Ninguém o parou nem o
questionou. Em cinquenta e dois minutos, Phidain retornara ao templo com a
quantia necessária para a ressuscitação do menino.
O
clérigo, observando a aparência de Phidain e sua expressão que misturava
consternação com esperança, decidiu não questionar a origem de tamanha soma em tão
pouco tempo.
Levou
o pagamento para a sala onde realizaria o ritual divino e pediu que Phidain
aguardasse do lado de fora.
Nas
horas em que o clérigo demorou para trazer o menino de volta à vida, Phidain se
desfizera de suas armas, ofertando-as a Oghma sob o altar. O olhar benevolente
da estátua do deus, representado como um bardo em plena execução de uma música
em um bandolim, fez-lhe aceitar seu verdadeiro destino.
Quando
o menino lhe foi entregue, finalmente, Phidain estava descalço, desarmado e com
os olhos marejados de lágrimas.
“Me
desculpe, me desculpe, me desculpe...”, disse ele, ao menino. “Eu vou lhe
compensar, eu prometo...”
“Te
desculpar pelo que, moço? Olha, estou com fome, vamos comer alguma coisa?”,
disse ele, soltando a mão da segurança da mão do clérigo e indo investigar a saída.
“Ele...
não recobrou a memória. Ele não sabe quem é.”, disse o clérigo.
“Então
agora ele é meu filho”, disse Phidain, determinado. “E o nome dele é Navere.”
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