sexta-feira, 20 de novembro de 2015

20 – A redenção do Ladino

Ao levantar o pequeno menino morto do chão, Phidain não sabia o que fazer. Sentia o desespero tomando conta de sua cabeça, e sua respiração começou a perder o ritmo, tornando-se superficial e frenética.
Os pais do menino estavam jogados no chão, também mortos. A mãe, uma bela elfa, tinha resistido por alguns minutos com sua garganta cortada não fundo o bastante, tempo suficiente para ver Phidain atirando com uma besta contra seu marido, um humano mago, vestido com longos robes escuros. A elfa perdeu os sentidos pouco depois de ver seu marido tentar reagir, atirando raios de fogo em direção ao atacante desconhecido.
Phidain havia recebido aquela missão de última hora, com alta prioridade. Usava suas roupas negras de couro, clássicas dos ladinos daquela guilda. Em seu peito, entretanto, ele ostentava um broche de ouro trabalhado. Cinco cabeças de dragão se alinhavam no broche, a cabeça central em evidência. Alguns detalhes em cada cabeça tinham tinta esmaltada realçando o relevo. Cada cabeça, com uma cor: preta, branca, azul, verde e a central, vermelha.
O broche prendeu-se à roupa do menino enquanto ele o levantava. Devia ter por volta de doze anos, mas Phidain não entendia muito bem como os meio-elfos se desenvolviam.
Quando ele recebera esta missão, fora informado pelo líder da guilda que esta família, uma elfa arqueira e seu marido, um humano mago, decidiram desertar do Culto do Dragão e pretendiam fugir muito em breve, levando consigo informações muito preciosas. Phidain deveria impedi-los e levar suas cabeças como prova de sua eficiência para o líder da guilda. Assim como Phidain, eles haviam sido incluídos no Culto contra suas vontades, pois seus superiores haviam cedido à força opressora da organização do Culto do Dragão. Nesta época, o Culto angariava forças na maioria das organizações mágicas, ladinas, políticas e comerciais, com a intenção de fortalecer suas bases para a invocação de Tiamat.
Aquela família tinha recebido algumas missões de escolta, pois não eram particularmente influentes nem poderosos. Ainda assim, a deserção deles poderia representar um grande retrocesso para o Culto, caso eles decidissem expor as informações às quais tiveram acesso durante o tempo que passaram alistados.
O mago, ao ver sua esposa ter a garganta cortada inesperadamente enquanto jantavam, levantou-se imediatamente, fitando Phidain de frente. A altura do halfling o permitiu esgueirar-se sem ser percebido, abordando a família em um de seus momentos mais frágeis.
Quando a elfa caiu da cadeira e atingiu o chão, respirando de forma entrecortada, Phidain arrependeu-se pela primeira vez. Uma das mãos dela levou-se à garganta, na esperança de conter o sangramento. A outra, ela levou à barriga. De relance, Phidain pôde ver, do lado de dentro do inchaço característico, o bebê se mexendo por baixo dos dedos da mãe, provavelmente pela última vez. Desviou o olhar, já atirando setas com a besta que carregava na direção do mago.
O mago urrou ao erguer-se, estendendo as mãos e atirando raios de fogo. Phidain agachou-se, com a agilidade de ladino experiente. Os raios ultrapassaram o espaço que ele havia ocupado menos de um segundo antes. Sem a esquiva, ele teria sido atingido em cheio. Reergueu-se.  Uma última seta foi necessária para parar o mago, atingindo-o diretamente no centro do peito. O mago fez um barulho seco ao atingir o chão, e não se mexeu de novo. Ao ver os olhos do mago se apagando, Phidain se arrependeu pela segunda vez.
Atrás de Phidain, um gemido baixo precedeu o barulho de algo caindo no chão. Ao virar-se, o ladino pôde ver um menino meio elfo, franzino, levando as mãos ao peito. Ele havia deixado cair uma vasilha com legumes que provavelmente acrescentaria ao jantar que já acontecia. Folhas de repolho espalhadas pelo chão começavam a se mesclar a pedaços chamuscados das roupas do menino, que se desprendiam por causa do fogo e caíam levemente sobre as folhas de verdura.
Além do fogo, os mísseis flamejantes haviam atingido o menino com muita força, e ele perdera o fôlego por causa da brutalidade do trauma seco. Enquanto seu peito queimava, ele fazia sons que misturavam gemidos e tentativas de inspirar o ar, em vão. Phidain via a fumaça da própria carne em chamas do menino invadindo os pulmões dele. Em menos de um minuto, o ladino assistiu o meio elfo franzino cair e morrer sufocado. Phidain se arrependeu pela terceira vez.
O choque causado pela presença inesperada do menino e de seu irmão ainda não nascido impediu que Phidain fosse capaz de socorrer o meio elfo nos últimos instantes de sua vida. Quando o menino finalmente parou de tentar respirar e seus olhos se vitrificaram, Phidain conseguiu agachar-se ao lado dele e tomá-lo nos braços.
Quando seu superior incluiu a guilda toda no Culto do Dragão, Phidain não concordara e não tinha se sentido seguro em aceitar a proposta de fazer parte da organização. Ainda assim, fora obrigado a participar, como todo o resto dos ladinos da guilda. Não tinha tido coragem de desertá-los antes, principalmente depois de ver o que acontecia com os desertores como os que acabara de eliminar. Em seus braços pendia o corpo de uma criança, vítima do Culto. Seus pais, punidos por tentarem preservar a vida de seus filhos, agora jaziam mortos, sabendo que falharam em sua missão.
Phidain não se arrependeria pela quarta vez. Ainda carregando o menino, exigindo de seus braços finos de halfling muito mais força do que eles tinham, levou o meio elfo para o templo de Oghma, o deus da sabedoria e dos bardos. O templo ficava próximo à sua casa; Phidain, apesar de não ser um homem de fé, algumas vezes tinha procurado o lugar por ajuda divina, tanto médica quanto espiritual. Sua ligação com a música, ainda que subdesenvolvida, era sua verdadeira vocação. A vida da ladinagem havia sido imposição da vida, quando ele se viu sozinho, infante, passando fome. Gastava seus dias observando bardos cantando nas ruas e tavernas, escondido, comendo pães roubados.
Ao adentrar o templo com o menino no colo, um clérigo bem vestido veio logo ao seu auxílio.
“Podemos trazê-lo de volta”, disse o clérigo, ao ver o desespero de Phidain. “Ele acaba de morrer. Mas infelizmente, este procedimento tem um custo muito alto... precisamos de mil e quinhentas peças de ouro.”
Phidain sentiu-se desabar sob aquelas palavras. Aquela era uma quantidade quase inatingível de dinheiro para ele. Ainda assim, prometeu ao clérigo e a si mesmo: “Volto em uma hora com esta quantia”.
Ao sair do templo, já tinha um plano estabelecido. Voltou à casa onde matara os pais do menino. Respirando fundo, cortou as cabeças inertes do mago e de sua esposa, colocando-as em uma bolsa de couro que lhe havia sido fornecida com este intuito. Encaminhou-se rapidamente para onde o líder da guilda ficava, uma sala malcuidada atrás de um beco, acessada por uma passagem secreta dentro de um açougue. O recinto do líder ficava depois de um longo corredor com várias portas. Antes um lugar reservado para a guilda, agora era um dos centros criminosos controlados pelo Culto.
 Lá, colocou as cabeças em cima da mesa de seu líder com relativa pressa e recebeu os agradecimentos secos que lhe eram sempre reservados após as missões. Saiu sem olhar para trás, com as feições carrancudas características dos ladinos.
Ao invés de sair novamente através do corredor até o açougue, Phidain entrou sorrateiramente em uma das portas. Ali, cumprimentou de forma vazia dois membros da guilda que contavam o dinheiro que retiravam de pequenas bolsas de tecido e couro, roubadas de pessoas variadas diariamente. O dinheiro era separado em baús de madeira, por tipo. Um pequeno guardava as raras peças de platina, outro bem maior as de ouro, dois do mesmo tamanho as de prata e mais quatro de tamanho médio guardavam as de cobre. Era uma quantidade imensa de dinheiro, que crescia a cada dia. Os valores seriam utilizados no ritual de invocação de Tiamat, que envolveria somas incontáveis de dinheiro.
Com dois movimentos certeiros, cortou as gargantas dos dois membros da guilda enquanto eles estavam com as cabeças baixas, contando as moedas. Ambos fizeram sons secos ao atingirem a mesa. Os pescoços abertos permitiram que as duas poças de sangue se tocassem em cima da mesa, cobrindo peças de ouro que se empilhavam displicentemente entre as mãos deles.
Com muita rapidez, Phidain utilizou a mesma bolsa onde tinha levado as cabeças dos pais do menino e a preencheu de peças de platina. Conseguiu quase esvaziar o baú antes que a bolsa ficasse pesada demais. Saiu com cuidado da sala e retomou o passo normal para sair pelo corredor e açougue, sem levantar maiores suspeitas.
Ao atingir a rua, começou a andar cada vez mais rápido, até atingir um trote ligeiro, com a bolsa cheia de moedas segura sob seu braço. O movimento impedia que o barulho causado pelas moedas fosse incontrolável. Ninguém o parou nem o questionou. Em cinquenta e dois minutos, Phidain retornara ao templo com a quantia necessária para a ressuscitação do menino.
O clérigo, observando a aparência de Phidain e sua expressão que misturava consternação com esperança, decidiu não questionar a origem de tamanha soma em tão pouco tempo.
Levou o pagamento para a sala onde realizaria o ritual divino e pediu que Phidain aguardasse do lado de fora.
Nas horas em que o clérigo demorou para trazer o menino de volta à vida, Phidain se desfizera de suas armas, ofertando-as a Oghma sob o altar. O olhar benevolente da estátua do deus, representado como um bardo em plena execução de uma música em um bandolim, fez-lhe aceitar seu verdadeiro destino.
Quando o menino lhe foi entregue, finalmente, Phidain estava descalço, desarmado e com os olhos marejados de lágrimas.
“Me desculpe, me desculpe, me desculpe...”, disse ele, ao menino. “Eu vou lhe compensar, eu prometo...”
“Te desculpar pelo que, moço? Olha, estou com fome, vamos comer alguma coisa?”, disse ele, soltando a mão da segurança da mão do clérigo e indo investigar a saída.
“Ele... não recobrou a memória. Ele não sabe quem é.”, disse o clérigo.

“Então agora ele é meu filho”, disse Phidain, determinado. “E o nome dele é Navere.” 

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