Umbra
estava confuso. Seu cérebro o sabotava todas as vezes que ele tentava entender
como chegara ali.
Estava
em uma sala pequena, de paredes de pedra. A porta era inexistente. Em seu
lugar, um portão de grades de ferro o mantinha ali dentro. Sua cabeça doía
ferozmente, e na sua têmpora esquerda um grande inchaço denunciava a provável
causa de sua amnésia. Ao tocar na área intumescida, a face contorceu-se
involuntariamente por causa da dor. A sensação de sangue seco craquelando sobre
a pele inflamada era inconfundível. Pequenos flocos de sangue pontuaram seus
dedos depois da investigação do ferimento. Mais sangue se acumulava sobre a
clavícula, onde ele parecia ter escorrido de um pequeno ferimento em seu
pescoço e se acumulado na reentrância que antecede o ombro. Ao tocar o
ferimento, um corte pequeno e raso, alguma memória começou a voltar.
Tentou
se levantar. Utilizava a grade na saída como orientação, porque a escuridão
quase absoluta desafiava até mesmo sua capacidade de enxergar no escuro. Tonto,
apoiou-se na grade e tentou observar o lado de fora.
“Randal?”,
perguntou ele, inseguro quanto ao volume de voz que poderia usar de forma
segura. “Randal?”, repetiu, aumentando em uma grandeza o volume.
“Umbra,
estou aqui.”, uma voz fraca respondeu.
Ele não
conseguia ver Randal Evenwood, porque estavam posicionados em celas geminadas.
Ao colocar o braço para fora, viu que Randal fez o mesmo. O braço dele exibia
grandes manchas de sangue seco escorrido.
“O que é esse
lugar?”, disse Askáth Umbra.
“Eu não
consigo pensar em nenhuma resposta válida”, disse Evenwood. “Mas precisamos
sair daqui.”
“Isso eu posso
resolver. Mas para onde iremos? Provavelmente estamos cercados daqueles que nos
prenderam aqui.”
“Isso EU posso
resolver. Vamos, nos tire daqui, Umbra.”, disse Randal.
Askáth Umbra
não se considerava um bom ladino. Ele sabia que conseguia se disfarçar bem, e a
personalidade do Duque de Lestars era conhecida e bem consolidada. Ainda assim,
suas habilidades de arrombamento e roubo eram um pouco menos desenvolvidas. A
responsabilidade de ter de tirar ambos dali parecia pesar em seus ombros como
uma bigorna.
Vasculhando o
chão, encontrou algumas farpas que poderiam ser utilizadas. Juntou-as com
alguns detalhes metálicos que ainda estavam presos à sua roupa negra que ele
usava quando não estava disfarçado e forjou ali mesmo ferramentas improvisadas
para arrombar a porta. Depois de dois cliques delicados, a porta se abriu.
Askáth estava nervoso e tentava não fazer barulhos, para não despertar a
suspeita dos captores deles. Pisava com cuidado e tentou não produzir som
nenhum quando abriu a sua porta, caminhou até a cela ao lado, destrancou a cela
de Randal e o deixou sair.
Ele obteve
sucesso e nenhum som pôde ser percebido a mais de três metros de distância. Ele
e Randal, agora do lado de fora, observaram com mais cuidado as celas
adjacentes. Em uma delas, havia um corpo, já muito decomposto. A carne
mumificada não exalava mais mau cheiro. Na outra cela, um homem em vestes
brancas muito sujas estava deitado, com a face voltada para a parede. Ele não
parecia dormir, parecia absolutamente inconsciente.
Esticando os
braços e evitando mover seus pés mais do que o necessário, Askáth conseguiu
destrancar a porta da cela do homem, que parecia muito mais enferrujada do que
as outras. Entraram na cela,
abaixaram-se e tocaram no ombro do homem, que teve um espasmo muscular ao sentir
o toque alheio em seu corpo.
“Amigo.
Shhhhh. Shhhhh! Não faça barulhos! ”, disse Askáth. “Você está bem? Onde estamos?
”
O homem
parecia muito confuso e incapaz de responder. Seus olhos amarelados tentavam
se fixar nos de Umbra, mas sem sucesso. Evenwood e Umbra acomodaram o homem de
forma mais confortável. Ao virá-lo, notaram um grave ferimento na barriga, que
deixava exposta uma alça de intestino. Entreolharam-se preocupadamente, mas a
vontade de fugir era muito mais expressiva do que a vontade de salvar o homem
desconhecido.
Enquanto
decidiam o que fazer, observando o intestino exposto, um barulho chamou-lhes a
atenção. O som de chaves balançando e depois destrancando a porta que separava
aquela área com as celas do resto da construção. Askáth e Randal conseguiram
agir rapidamente. Em alguns momentos, estavam de volta às respectivas celas,
com as portas fechadas. Quando o guarda entrou, fingiram estar sentados,
dormindo.
Acreditaram
que estavam a salvo, mas logo o guarda notou a falha na reação deles: a porta
da cela do homem moribundo estava entreaberta.
“Mas
que porra é es...”, iniciou o guarda. A frase foi cortada pela metade, quando
uma adaga, num movimento certeiro, rasgou seu pescoço de orelha a orelha.
Randal
observou Askáth com espanto. Notou que assim que soltou o homem que
assassinara, Umbra abriu um sorriso psicótico. Evenwood se sentiu um pouco
intimidado pela facilidade com a qual Askáth dilacerara o pescoço do guarda,
mas em grande parte estava agradecido.
“Eu
não sabia que você conhecia esse tipo de truque...”, disse Randal.
“Esse
é só um deles... veja, usei uma farpa grande de madeira! ”, respondeu o
tiefling, agachando-se e começando a revistar o corpo do homem que jazia
imóvel. O sangue espalhava-se sob a cabeça, pescoço e tórax do guarda. “Achei!
”, exclamou ele, em voz baixa e discreta.
Esperando
ver na mão do ladino o molho de chaves, Randal se surpreendeu ao ver Askáth
abrindo um pequeno saco de pano para guardar moedas. Depois, ele tirou a
aliança de casamento do guarda, suas armas pequenas, sua insígnia e quase todos
os outros pertences metálicos dele. Por fim, sem cerimônia, Umbra alcançou a
cintura do guarda, onde estava amarrado o molho de chaves num cordão trançado.
Randal
questionou internamente as prioridades do ladino, mas concluiu que a escolha
tinha sido inofensiva.
“Agora
temos que sair logo daqui. Não tarda a perceberem a ausência do amigo aqui.”, disse
Askáth.
“E...
aquele ali? Perguntou Randal.
“Ué,
podemos deixá-lo ali mesmo! Não? É, acho que não!”, respondeu Askáth, tentando
decifrar de que forma Randal gostaria de proceder. “Você quer que eu mate ele
de uma vez, é isso? Me desculpe, não estou entendendo bem o que devo fazer
nessa situação...”
Intrigado
e perturbado, Randal respondeu de forma tímida, “Podemos... ajudá-lo?”
“Oh,
é mesmo, ISSO”. Askáth pareceu entediado.
“Certo, vamos enrolar aquele pedaço de tripa e vamos tirá-lo daqui. Mas você
leva.”
“Nem
mesmo por um minuto imaginei que isso fosse se dar de alguma outra forma...”
Com
apenas um sorriso no canto da boca, Askáth voltou à cela onde estava o homem ferido.
“Venha cá, Randal.”, disse ele.
Randal
foi até Umbra e o homem e se agachou para ajudar com o curativo e a levantá-lo.
Em vez disso, Umbra rasgou um pedaço considerável de sua roupa. “Você não achou
mesmo que eu rasgaria esses meus belos trajes negros, achou?”, disse ele. “Além
disso, não gostei muito desse moço, ele me parece estranho.”
Evenwood
aceitou a realidade e aguardou pacífica e passivamente enquanto Askáth
arrancava grandes faixas de sua roupa até que a camisa ficasse mais curta a
ponto de exibir o umbigo.
O
mercenário e o ladino trabalharam junto e conseguiram fazer um curativo relativamente
seguro para poder carregar o homem. Quando terminaram, decidiram sair dali sem
mais delongas. Randal tomou o homem nos braços e o acomodou por cima dos
ombros. Ele era muito leve, e Evenwood era muito forte.
Askáth
foi na frente. Destrancaram silenciosamente a porta do corredor das celas, não
sem antes conferirem definitivamente que não havia mais nenhum prisioneiro ali.
Abriram a porta e Umbra se esgueirou com muito cuidado para fora do corredor. A
sala onde saíram estava um pouco mais iluminada, mas as cores ainda eram
indistinguíveis, assim como quaisquer detalhes em objetos. Ao fundo da sala, o
que parecia ser luz de velas invadia o cômodo através de uma porta.
Aonde
estavam parecia ser uma copa, com algumas mesas sujas de refeições passadas,
migalhas e pouca decoração. O mais discretamente que conseguiram, caminharam até
a fonte da luz.
Na
sala ao lado viram dois guardas, sentados frente a frente em uma pequena mesa
redonda, jogando alguma coisa que parecia ser um baralho de cartas.
Askáth
instruiu que Randal ficasse para trás. Começou a avançar em direção aos homens,
que não perceberam sua presença.
Assim
que chegou perto, percebeu que as cartas que eles jogavam continham desenhos
curiosos e belos, provavelmente pintados em aquarela. Em menos de meio segundo
o homem por trás de quem Umbra havia se esgueirado já estava morto e caindo de
lado velozmente, indo de encontro ao chão de pedra. A adaga que Askáth roubara do corpo do outro
guarda, agora estava encharcada de sangue vivo.
Antes
que o outro homem pudesse reagir ou que Umbra conseguisse chegar até ele para
que o assassinasse também, o peito do homem tornou-se subitamente um lugar inóspito
para os seus órgãos. Um grande galho reto, provavelmente um cabo de vassoura
quebrado, irrompera pela frente de seu esterno, impalando seu coração.
“Você
também tem seus truques! Gostei de você, Randal, gostei mesmo.”
Askáth
começou a revistar os corpos dos dois guardas enquanto Randal voltava ao homem
ferido para colocá-lo de volta nos ombros. Quando alcançou o lugar onde o tinha deixado,
logo na entrada da outra sala, encontrou-o de pé.
“Amigo,
não tenho como agradecer o resgate. Meu nome é Thaal.”
Nas
mãos, Thaal carregava os retalhos das roupas de Randal. Sob o buraco em suas
vestes brancas e sujas, não havia mais ferimento visível, e a alça intestinal
parecia ter voltado ao lugar de origem. No peito, o homem carregava uma bela insígnia
de uma luva de ferro, símbolo de Torm, o Deus Leal.
Quando
os olhos de Thaal encontraram as feições de Askáth, ainda ocupado roubando os
pertences dos dois guardas, ele sentiu seu rosto endurecer e seu coração se esquecer
de bater por um segundo.
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