Durante a conversa que tiveram na
taverna, Navere explicou a Siana sobre a ação dos Zhentarim por toda Faerûn.
A
iminência de serem descobertos fazia o coração de Siana um pouco mais
acelerado, mas Navere insistia que nada mudaria, mesmo que tivessem aquela
conversa em uma caverna. Os contatos dos Zhentarim eram tão absolutamente
espalhados que não havia lugar verdadeiramente seguro.
A
conversa era necessária, e Siana concordou com Navere sobre isso assim que
concluíram. Phidain cometera um erro:
fora contra os Amlugnehtar e a favor do Culto, justamente quando o que deveria
ter feito era o oposto.
Navere
discorreu por algumas horas sobre como Phidain havia fornecido informações valiosas
ao Culto que resultaram nas dezenas de emboscadas que os Amlugnehtar sofreram durante
a jornada. Fora Phidain que dera a informação que gerou o ataque do dragão na
guilda de ladrões de Ulzu, o que acarretou em centenas de mortes. Fora Phidain
que dera as informações necessárias para um doppelganger manipular os Amlugnehtar
e colocá-los em riscos sérios.
Navere
não sabia por que Phidain havia começado a transmitir as informações. Em algum
ponto, mais ou menos na metade do caminho contra o Culto, Phidain se arrependera.
Ainda assim, fora coagido a continuar a transmissão de informações sob ameaça
de ser utilizado como oferenda durante o ritual de invocação de Tiamat. Mesmo
muito contrariado, Phidain continuara a informar o Culto. Um agente duplo dos
Zhentarim esperou que tudo se concluísse e os louros caíssem sobre os Amlugnehtar;
então, sem piedade, chantageou Phidain para que informasse os Zhentarim do paradeiro
e atividades dos Amlugnehtar. As motivações dos Zhentarim continuavam obscuras
para Phidain, mas se ele não obedecesse às demandas, ele seria exposto para
toda Faerûn como o homem que quase parou Amlugnehtar e colaborou para tentar
trazer Tiamat de volta ao plano.
Siana
não estava absorvendo facilmente as informações que Navere lhe transmitia. Depois
de tanto tempo sob as asas de Phidain, encará-lo como uma ameaça à segurança de
Faerûn era quase impensável. Ainda assim, firmaram um acordo para salvar Phidain
dos Zhentarim. A perspectiva de se envolver novamente em combate aterrorizou a
barda, mas de alguma forma ela pensava que seria uma boa oportunidade para
desenvolver suas habilidades mágicas.
A
conversa se estendeu por horas, mas Orsin não voltou a procurá-los. O anão se
mantinha ocupado conversando com amigos. Os olhos atentos de Siana percebiam
que ele continuava acompanhando a presença deles ali, mas que provavelmente não
havia ouvido a conversa.
Navere
e Siana já tinham consumido mais cervejas do que deveriam durante a conversa. Decidiram
ir embora, para descansar e pensar em tudo o que decidiram e planejaram depois
da troca de informações.
Já
em casa, Siana ponderava sozinha em seu quarto sobre a decepção que tivera com
Phidain. Seu mestre era o norte, o exemplo de pessoa correta para Siana. Ela, mesmo
com a cabeça girando, deixou que a dúvida tomasse conta de si; a falha de caráter
de Phidain parecia tão grave à barda que as opiniões, ordens e treinamentos que
ele lhe fornecera nunca lhe pareceram tão duvidosos e vazios.
A
certeza de que Siana não suportaria treinamento entre magos, tão bem fixada em
sua mente pelo mestre, parecia ser abalada. Considerava procurar alguma escola
arcana apenas porque Phidain disse que ela não conseguiria. Considerava
utilizar os poderes que aprenderia apenas para que o mestre tivesse que admitir
que estava errado. Cogitava salvá-lo apenas para que pudesse provar que ela conseguiria
ser maga.
Os
pensamentos mesquinhos iam de encontro a quem Siana achava que era. Sua natureza
pura e bondosa não permitia mágoas se transformarem em vingança, nem mesmo moral
ou verbal. Siana se sentiu profundamente envergonhada e decidiu dormir antes
que seu cérebro sabotasse seu caráter mais alguma vez.
Navere
prometeu encontrar Siana no dia seguinte pela manhã, para que iniciassem as
investigações. Às nove horas, Siana já
estava absolutamente impaciente. Às dez, não aguentava mais esperar; tomou uma
enxada nas mãos e ajudou o pai a arar a terra da horta. À uma da tarde, depois
de almoçar, ela não suportou mais a espera. Depois de lutar com seu cérebro e a
orgulho que a impedia de querer procurar Navere, decidiu ir até a casa dele. Achava
que devia a ele algum retorno, mesmo que ele a tivesse deixado esperando por
tantas horas. A segurança de Navere parecia motivo de preocupação, subitamente.
Caminhando
até o casebre de Navere, Siana tentou não apertar o passo desnecessariamente. Não
havia motivos para duvidar da integridade física de Navere; “Ele há de estar
dormindo ainda”, pensou ela.
Ao
chegar à porta da casa do bardo, notou que não estava trancada, nem ao menos fechada
propriamente. Uma fresta separava a porta do batente, expondo o interior da
casa e permitindo um feixe de luz invadir metade do cômodo.
“Navere?”
, perguntou ela, um pouco apreensiva. “Navere?”
Das
sombras, ao fundo da cabana, uma figura alienígena emergiu, exibindo um corpo
humanoide. Vestido em longas vestes de couro trabalhadas com metal e uma cabeça
muito característica, com tentáculos no lugar da boca e queixo e a cabeça
totalmente careca, a criatura se aproximou de Siana.
“Olá.
Perdeu alguma coisa, criança?”
A
cabeça da criatura parecia um polvo, e uma boca de lampreia se escondia embaixo
dos tentáculos. Mesmo com os múltiplos tentáculos tremulando incessantemente,
sua boca não se mexia.
“Oh,
não se assuste. Venha, podemos conversar com mais calma sentados aqui nesta
mesa...”, disse a criatura.
As
palavras chegavam à Siana não pelos ouvidos, mas como tambores dentro de sua testa.
Os significados a tomavam por completo, como se a compreensão corresse por suas
veias. Se sentiu absolutamente compelida a sentar à mesa com a criatura, e o
fez de bom grado.
Atrás
dele, quatro pessoas saíram da obscuridade e se enfileiraram lado a lado, como
se fizessem um escudo para proteger as costas do monstro.
“É um illithid, é um illithid, é um
illithid, fuja daqui, é um illithid”; em algum lugar, o cérebro de Siana
protestava contra a passividade dela, mas ela não parecia ter capacidade de
obedecer ao bom senso. Seus pés a levaram contra sua vontade até a mesa, onde
ela se sentou obedientemente.
“Criança,
veja, tome aqui um pouco de vinho. Sinta-se à vontade, estamos apenas
começando...”
Siana
conseguiu levantar os olhos e observar os humanoides que acompanhavam o Illithid.
Três homens e uma mulher, completamente nus. Um dos homens era negro, parecia
ter cerca de trinta anos. Seu corpo estava tão emaciado que ela conseguiria contar
as costelas dele sem nenhum esforço, se fosse dona de sua própria mente. Sua
mente insistia em lutar, mas profundamente ela conheceu o homem. Soube que seu
nome era Sarth e que ele tinha sido espancado quando criança, e teve seus ossos
quebrados em vários lugares. Sentiu a dor de cada fratura.
A mulher era baixa
e provavelmente tinha sido gorda um dia, mas parecia agora ser sustentada pelo
seu esqueleto, parcos músculos e muita pele que caía como uma cortina de sua
barriga, coxas, seios e braços. Sua barriga tinha muitas estrias, e em algum
lugar no fundo de sua mente, Siana soube que ela tinha tido alguns filhos.
“Foram
nove, criança, nove filhos que Thriann pariu... pena que só dois ainda vivem...”,
a voz disse gentilmente. A sensação de batidas permanecia, mas o tom era como a
carícia de uma brisa de verão. Viu os rostos dos filhos da mulher, tanto vivos
quanto mortos. Viu suas lembranças, a dor do parto, o amor pelo falecido marido;
sentiu-se enterrando sete filhos de seu próprio ventre.
O
outro homem era velho, com uma longa barba branca e os olhos cansados. Sua pele
exibia as marcas do tempo: rugas profundas e muitas sardas, depois de anos de
exposição ao sol. Sentiu-se sábia, detentora de um vasto conhecimento sobre
ervas.
O
outro homem era Navere.
Ainda
vestido, Navere fitava o vazio à frente. Seu dedo médio da mão esquerda se
contorcia automaticamente, sem controle e sem motivo. As contrações musculares
eram visíveis por todo o corpo por olhos atentos. Apesar disso, os únicos olhos
verdadeiramente atentos daquele recinto eram os do Illithid, que demonstrava
ferocidade em seu olhar fixo em Siana.
Todos
os olhos dos quatro humanoides atrás de Siana estavam esbranquiçados, sem
expressão e sem brilho. Navere começou lentamente a se despir, expondo seu tórax
branco, discrepando grandemente do tom avermelhado e bronzeado que exibia no
rosto e braços.
Siana
não conseguia se mexer. Seus olhos se moveram de Navere para a face aberrante do
illithid. Seu cérebro parecia dividido em camadas, e cada uma delas estava
sendo escrutinizada sem distinção pela criatura. Ele parecia tomá-la
absolutamente por inteiro, e em algum nível, Siana se sentia violada. A
criatura pareceu gostar do que sentiu, e penetrava cada vez mais fundo. Siana
derrubou uma lágrima, que molhou a mesa muito pequena de madeira do casebre de
Navere. Uma mancha branca começou a se formar.
O
illithid começava a mostrar para Siana não verbalmente o que pretendia fazer ali
e como iria utilizá-la. Sabia que Siana e Navere pretendiam livrar Phidain dos
Zhentarim, mas também sabia que eles não conheciam o mestre verdadeiramente. Sabia
que eles achavam que Phidain era apenas um halfling bardo mediano, e que
pensavam que seu envolvimento com o Culto e os Zhentarim tinha sido acidental e
apenas um erro.
Siana
agora reconhecia Phidain como um grande poder, absolutamente maligno. Sabia que
ele planejava acabar com os Amlugnehtar para que o mal pudesse tomar conta de
Faerûn, e que ele tinha de fato poder para isso.
A
meia elfa tremia sentada na cadeira, suas mãos firmemente agarradas à madeira
da mesa. As unhas perfuravam a superfície, deixando marcas finas e definitivas
na mobília.
O
illithid mostrou para Siana um futuro próspero, onde ela poderia finalmente
treinar a magia e se tornar muito poderosa. Mostrou o que aconteceria se ela se
juntasse aos Zhentarim e derrotasse Phidain, ao invés do contrário. Mostrou os Zhentarim
trabalhando junto com os Amlugnehtar, mantendo a segurança de Faerûn. Expôs a
mente de Navere, onde ele parecia estar em paz e decidido a seguir os passos de
seu novo mestre.
Ao
contrário dos outros humanoides, o illithid não destruiu Siana por inteiro. A
fez se encaminhar para a cama de Navere e deitar, onde a cobriu e acariciou sua
cabeça.
“Agora
durma, criança.”, disse ele. Ela dormiu.
Quando
ela acordou novamente, já era noite, e não havia sinal do illithid, os humanos
e Navere.
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