sábado, 7 de novembro de 2015

7 - Phidain e os Zhentarim

Navere tentava manter a calma. Levantou a mão esquerda , e sussurrou algo quase inaudível. O ar foi preenchido de sons sobrenaturais que formavam uma cacofonia insuportável. A criatura pareceu sentir muita dor nos ouvidos e pôs-se a correr. Quando virou as costas, Navere estendeu a mão e disse mais algumas palavras incompreensíveis. Um tremor, como uma onda de choque, viajou pelo ar e atingiu a criatura, que foi arremessada para trás. Se Navere tivesse parado para observar, teria visto que quando caiu, a figura atingiu de volta a água, onde permaneceu boiando de bruços. Não olhou; Siana grunhia e cuspia sangue. Navere estava desesperado, mas conseguiu manter o controle de seu corpo e suas ações.
                Fez como ela a ele: agachou-se ao lado dela, estendeu a mão direita e arrancou a flecha do pescoço de Siana. O sangue escorreu copiosamente, empoçando-se abaixo da nuca da barda. Cobrindo o ferimento com a mão esquerda, comprimiu o buraco para que o sangue parasse de fluir. Assim que uma de suas mãos conseguiu conter a maior parte do fluxo sozinha, a outra ergueu-se alguns centímetros. Ainda pingando sangue, a mão emitiu uma luz fraca. Sob os dedos de Navere, o furo da seta fechou-se, deixando para trás a pele ferida e muito sangue, mas ao menos o buraco não mais representava a morte iminente a Siana.
                Com Siana fora de perigo mas ainda inconsciente, Navere sentiu que deveria certificar-se de que o intruso não representava mais uma ameaça. Andando rápido, alcançou a ponta externa do píer a tempo de ver um par de pernas vestidos com calça negra e botas de couro da mesma cor boiando, virados para baixo, entrando embaixo da estrutura do píer. Levado pela correnteza, a mais absoluta imobilidade não deixara dúvidas de que os golpes mágicos de Navere haviam sido eficazes.
                Algumas lágrimas decidiram escorrer pela lateral de ambas as bochechas de Navere. Ao caírem, deixaram para trás um vale brilhante na maquiagem dele. Um olhar cuidadoso notaria que a cor da pele por baixo das lágrimas parecia muito menos alienígena. Onde a maquiagem ainda escondia a tez do bardo, a pele era de um branco azulado, tal qual o luar que os banhava.
                Ajoelhou-se, tomou o corpo inerte de Siana nos braços e pôs-se a caminhar o mais rápido que podia. Seus braços não eram fortes, mas Siana era uma pessoa pequena e isso não o impediu de prosseguir. 
                Mesmo sabendo que havia tirado Siana de perigo de morte, a inexperiência de Navere em salvar companheiros tão perto de perecer o deixava inseguro. Frequentemente parava de andar, para tentar observar o peito de Siana se levantando. A respiração dela era leve, mas constante. Quando conseguia a confirmação de que necessitava, retomava o passo acelerado.
                Não a levou de volta para casa, nem para sua própria cabana. Decidiu que por Phidain ela quase havia morrido, e por ele deveria ser curada. Vinte minutos depois, invadiu de súbito a casa de Phidain, empurrando a porta da frente com o ombro, ainda com Siana nos braços. O barulho fez com que o halfling se assustasse e acordasse com um sobressalto, do outro lado do cômodo.
                “Mas o que é isso? ESTOU ARMADO! CAIA FORA SEJA LÁ QUEM FOR!”, defendeu-se Phidain.
                “Mestre. Ela está morrendo.”, Navere permitiu-se dizer. Proferir seus medos os tornaram mais reais e tangíveis, e mais e mais lágrimas perseguiram seu queixo. Apoiou-a no chão, não se levantando novamente. Com suas mãos em seu rosto, culpava-se por tê-la exposto aos inimigos.
                Havia decidido que não contaria para Phidain quem tinha atacado Siana. Ele não seria capaz de perdoar a si mesmo.              
                “Navere... o que está fazendo aqui... SIANA? O que aconteceu com ela!? Diga-me!”. Phidain correu, levantando-se com pressa e desajeitadamente da cama. Ajoelhou ao lado de sua aluna, sentindo seu pulso e observando o ferimento em sua garganta. “O que é isso, Navere? O que causou este ferimento?”
                “Foi... uma seta. De besta. Eu a curei como pude. Infelizmente não consigo fazer melhor do que isso. Por isso a trouxe até você.”, respondeu ele, humilde e consternadamente.
                “Você fez bem, rapaz. Acho que posso ajudá-la. Pobre criança! Vamos, me ajude, homem! Ponha-a na minha cama, precisamos mantê-la aquecida!”
                Navere levantou-a novamente, desta vez, com as pernas muito trêmulas. Depositou-a na cama desarrumada de Phidain, e foi prontamente expulso da lateral do colchão.
 “Preciso de espaço”, disse o mestre.
Acomodando-a debaixo de cobertas, posicionou seu pescoço de forma a ficar bem exposto. Estendeu as mãos e proferiu palavras de poder. Uma luz forte partiu de sua mão, e a ferida ainda aberta na garganta de Siana terminou de fechar. Ela parecia dormir em paz, mas estava com os cabelos e as roupas cobertos de sangue que terminava de coagular e secar, grudento. Phidain orientou Navere a buscar água do tonel do lado de fora com dois baldes. Em um deles, colocaram um pouco de uma barra de sabão de baixa qualidade, o único disponível na casa do mestre. Encharcaram alguns trapos com a água com sabão e puseram-se a limpar o rosto e roupas de Siana. O outro balde servia para que enxaguassem os panos sujos e lavassem suas próprias mãos e rostos, cobertos pelo sangue dela. Além disso, sangue de Navere estava nas mãos de Siana e nas roupas dele, perto do furo que havia acontecido.
Depois de um exame rápido, Phidain decidiu que Navere merecia ter sua saúde recobrada magicamente, e estendeu a mão, mais uma vez produzindo cura. A ferida de Navere fechou completamente, deixando para trás uma grande cicatriz esbranquiçada.
Navere sentou-se ao lado da cama de Phidain, mantendo suas pernas cruzadas e seu rosto com uma expressão preocupada.
Phidain, largando os trapos depois de deixar Siana um pouco mais limpa, sentou-se ao lado de Navere.
“Certo, é a hora que você me conta o que aconteceu.”, disse o mestre.
“Você... deve imaginar.               “
“Eu achei que ela não tivesse percebido. Ela me seguiu hoje, e eu consegui trazê-la de volta em segurança.”
“Agora que ela sabe, estamos todos em perigo, Phidain.”
Navere percebeu que não precisaria decidir contar ou não; Phidain obviamente havia entendido.
“E você tinha que meter seu nariz nisso! Por que não deixou ela acreditar no que eu disse?”
“Porque você é um péssimo mentiroso! Quando ela te seguiu, ela já sabia que tinha algo errado. Ela quase acreditou na sua história de família com problemas.”
“Mas aí você foi lá e envolveu ela nisso, Navere! Depois de tudo que passamos quando você descobriu!”
“Porque você precisa de ajuda, mestre. Sabe que estou aqui por isso, pelo seu bem.”
“Pelo meu bem? Você quase matou a Siana por isso! Ela é só uma criança!”
Phidain, que usualmente se mostra um espírito leve e brincalhão, não deixava nada além de tristeza e revolta transparecerem por suas expressões. Navere, normalmente afetado e extravagante, expunha não mais do que preocupação e desolação por trás de seus profundos olhos azuis. Ele usara um dos trapos para limpar suas mãos e rosto. A vaidade foi deixada de lado, e sua maquiagem havia sido removida apenas na frente da face. As laterais do rosto e queixo ainda continuavam manchadas de pó.
Ao ouvir seu nome em voz tão alta, Siana começou a sentir que recobrava consciência de alguma forma. Até então, perdia-se em estados de pseudo-consciência e oníricos, onde tentava situar-se e entender o que se passava. Não sentiu dor em momento algum.
“Já chega, Navere! Você não pode mais se envolver nisso. O erro foi meu, a dívida é minha!”
                “Phidain, você não entende. Você coloca todos nós em perigo quando se envolve com essas pessoas. Você sabe disso, e ainda insiste que consegue lidar sozinho, mas nós todos estamos enfiados até o pescoço nessa.”
“Navere... vá embora. Leve Siana de volta para casa. Ela deve acordar amanhã de manhã e não vai se lembrar de muita coisa. Navere... livre ela disso... dê a ela uma chance!”
“Você não pode nos envolver nisso e depois nos mandar embora, Phidain! Não pode! Nós nos preocupamos com você. Você errou, você se enfiou nessa sozinho, mas o perigo é tão grande que estamos na berlinda juntos. VOCÊ NEGOCIOU COM OS ZHENTARIM, PHIDAIN!”, berrou Navere, esquecendo por alguns segundos que gritar essa informação a plenos pulmões era uma ideia muito ruim.
“CALE A BOCA!”, berrou Phidain. Os olhos dele brilharam de medo, e ele estapeou o rosto de Navere, com muita força.
“Você não sabe o que está fazendo, mestre... vai perder a todos nós e depois vai morrer sozinho...”
                Navere tomou Siana nos braços mais uma vez, explodiu em passos pesados através da porta. Não notou que Siana já estava consciente e o observando aterrorizada com olhos arregalados.
                “Me ponha no chão...”, sussurrou ela, com a voz muito fraca, mas determinada.
                Navere se assustou com a manifestação de Siana, e a colocou rápida e desajeitadamente no chão, de pé.
                “O quanto você ouviu, Siana?”
                “O suficiente. Me deixe ir para casa. Não me acompanhe.”
                “Mas...”, protestou Navere.
                “Mas nada! Eu ouvi muito bem! Agora me deixe ir para pensar em paz e escolher entre a minha segurança e meu mestre. Oh, espere! Eu não tenho essa escolha! Você a fez por mim, me levando até lá!”
                “Siana, isso não é verdade.”
                “MAS É CLARO QUE É! Agora eu vou ficar, todos os dias, me perguntando se é naquele momento que morrerei, ou se terei o desprazer de ver meu mestre e minha família morrerem primeiro! Eu não tenho escolha, Navere, e eu nem o conheço! Eu nem o conheço e agora vou morrer por você e por Phidain!”
                Navere não teve resposta. Sabia que apesar da mágoa nas palavras de Siana, ela falava a verdade. Ela fora envolvida em negócios extremamente obscuros contra a vontade dela, e provavelmente morreria pelo erro de Phidain e por sua própria tentativa vã de ajudar o mestre utilizando sua pupila.

                Se sentindo profundamente solitário e perdido, Navere caminhou de volta à sua cabana, onde guardava seus parcos pertences. O resto da madrugada passou-se sem que nenhum dos três conseguisse dormir. O medo parecia ser físico, como pequenas pedras de gelo rolando por dentro de suas veias como pedras num rio. 

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