sábado, 14 de novembro de 2015

14 - Mestre

Ao lado de seu Mestre, Navere não tinha absolutamente nenhuma autonomia. Seu corpo parecia dominado por inteiro, e cada célula sua funcionava apenas sob o comando do illithid.
Ele sentia que todas as suas memórias, todos os níveis de pensamento, todas as suas habilidades pertenciam ao seu mestre agora. Sentia que cada camada de Navere tinha sido perdida e era invadida mentalmente como se ele utilizasse aqueles tentáculos fisicamente. Exceto a camada onde ele estava.
De alguma forma, Navere conseguira manter alguma consciência do que acontecia. Havia visto o illithid invadir sua casa, acordando-o com carícias na cabeça. Sentiu-se sendo tomado e levado para o lado de Mestre como seu escravo. Sentiu as mentes dos outros escravos, todas misturadas como numa grande sopa de experiências, medo, saberes e amores. Viu Siana entrar, interagir com Mestre, ser invadida por ele e depois deixada de lado. Assim que Mestre penetrou Siana, permitiu que seus escravos tivessem vislumbres de quem a meia elfa era, o que pensava e o que sentia. Navere se lembrava de ter visitado alguns medos da amiga, principalmente derivados de sua frustração pela inaptidão para a magia.

Mestre é a salvação; Mestre é tudo, é todos, é a Verdade.

Interessantemente, Navere não conseguia acessar quaisquer resquícios de consciência nos outros escravos. Também, não entendia como aquela parte específica poderia ter sido poupada de alguma forma por Mestre; talvez, Mestre tenha deliberadamente fornecido a Navere um refúgio. Talvez, Mestre tenha considerado aquela parte insignificante demais para dominar. Mestre não erraria, disso, Navere tinha certeza.
Navere estava sentado à frente de uma penteadeira trabalhada em madrepérola, olhando-se fixamente no espelho. O ambiente da única memória que restara como apenas sua era extremamente escuro, iluminado apenas pela vela que o acompanhava na superfície do móvel, ao lado de seus potes de cosméticos e escovas de cabelo.  Ele fitava incessantemente seus próprios olhos, que mudavam de cor, indecisos. Entre cada ciclo de cores da íris, o olhar desviava-se para seus ombros. Esperava ver o rosto de Mestre ali. Esperava que ele o encontrasse a qualquer momento.

Mestre irá completar todas as lacunas; a Verdade tomará cada parte de meu ser. Eu sou Mestre e Mestre sou eu.

Os minutos e horas foram passando e Navere continuava sozinho. Fisicamente, acompanhava o Mestre entre salas com paredes de pedra, onde ele sentava-se calmamente para ler, ou encontrava alguns iguais para conversar. A voz física de Mestre não pôde ser ouvida em nenhum momento, assim como a dos outros illithids. Apesar disso, as conversas eram extremamente eloquentes, mas aos escravos de ambos não era permitida a compreensão do contexto. As palavras chegavam por inteiro, mas o significado delas juntas era intangível. Navere não compreendia mais espaço ou tempo, e nem se importava.

Eu não sou nada, eu não sou ninguém; eu sou tudo e todos, e eu sou o Mestre.

 Navere esticou sua mão imaterial e alcançou a escova de pelos. De forma a manter o resto do corpo absolutamente imóvel, penteou os fios de seu cabelo. Um a um, viu-os se desprendendo de sua cabeça, deixando para trás espaços vazios em seu couro cabeludo. Em alguns minutos, sua cabeça estava completamente lisa. O resto do seu corpo ainda estava perfeitamente imóvel, e seu braço se movia como o de um boneco de madeira. A sensação de insegurança era obliterante; sentia que se respirasse no ritmo errado, que se piscasse apenas uma vez fora do tempo, seu esconderijo seria descoberto. Ainda assim, sentia que Mestre era a única verdade, e seu medo se mesclava com conforto, quase na mesma proporção.

Eu não sou nada, eu não sou ninguém, e sou todas as coisas, e todas elas pertencem ao Mestre. Eu sou o Mestre, e eu sou tudo.

O ambiente ficava cada vez mais escuro, como se a memória onde Navere se escondia ficasse mais fraca a cada segundo que ele questionava a própria existência. Ao contrário do que seu coração insistia em dizer, não havia sinal do illithid ali.
Mestre se despediu do último semelhante com quem conversava. De pé, pareceu ponderar por alguns minutos, parado onde estava. Suas decisões não foram compartilhadas entre os escravos.
Andando com leveza sobrenatural, Mestre caminhara de volta por uma escada longa, que atravessava grandes paredes sólidas de pedra. Após alguns minutos de caminhada, Mestre, Navere e os outros escravos emergiram dentro de uma pequena cabana. Navere não identificou o local. Sentia que sua capacidade de compreensão do ambiente tinha sido também aniquilada.

Mestre, eu lhe agradeço esta graça; meus passos são seus para serem guiados eternamente.

Era uma noite clara, e a luz da lua não os deixava muito obscuros. Apesar disso, as poucas pessoas acordadas por quem eles passavam eram incapazes de percebê-los. Mestre os escondia em espaços profundos em suas próprias mentes, reservados aos pesadelos e aos medos. Quando cruzavam-se os caminhos, os outros apenas viravam o rosto, ou engajavam-se em conversas banais com outrem. Guardas decidiam afiar suas espadas, dormir ou mudar a área da patrulha. Prostitutas mudavam sua rota e se dirigiam a outras ruas escuras. O padeiro, sovando a massa com a janela aberta, olhou diretamente para Mestre. Sua face deixou explícito o mais profundo pavor. Mestre retribuiu o olhar. Navere e os outros sentiram quando Mestre tomou o padeiro e dizimou sua memória, fazendo-o voltar a sovar a massa do pão da manhã, retomando o assobio de onde parou.
Entraram na rua onde Siana morava. Ainda à frente da penteadeira, Navere entendeu para onde estavam indo. Não tinha recebido a informação de Mestre, tinha decifrado sozinho. A independência do raciocínio o assustou, como se Mestre o tivesse abandonado. A sensação foi ao mesmo tempo libertadora e aterrorizante.
Em seu quarto escuro, Navere sentiu que tinha a liberdade para sorrir.

Mestre, me ilumine, me tome, eu sou seu e você é meu.

O illithid terminou a viagem à frente da casa de Siana, onde abriu o portão sem hesitar. Adentrou a casa simples pela porta da frente. Passou pela porta do quarto de Halyna e Illithor, que dormiam pacificamente.
Ao alcançar o quarto de Siana, Navere percebeu que Mestre já era esperado.
“Criança, vejo que já está preparada. Venha, venha, vamos. ”, disse Mestre gentilmente, em coro com todas as vozes dos escravos. As vozes alcançavam a mente de Siana de forma completa.
Siana tinha planejado reagir. Não conseguira dormir nesta noite. Sabia que provavelmente seria procurada novamente, e o medo permeava seu corpo até a ponta de seus cabelos.  Apesar da decisão, não conseguira de forma alguma impedir que o illithid a tomasse novamente.
A meia elfa levantou-se, deixando as cobertas caírem no chão. Ela não estava vestida para dormir, mas também não estava usando sapatos. Os pés desnudos tocaram os tacos do chão sem hesitar, e iniciaram a caminhada por onde Mestre a enviava.

Ela é minha, ela é nossa, ela somos nós.

Navere, completamente careca, via seus olhos fundos sob a pele pálida das pálpebras. Sentia-se muito velho, mas ainda resiliente. Seu abrigo era impenetrável, o que restava de si estava a salvo. Seus olhos se fecharam e abriram novamente, em uma fração quase negligenciável de um segundo.
Ao permitirem a visão novamente, se focaram em Siana.
Ela estava parada, não em seu quarto, nem depois na rua, acompanhando Mestre. Siana estava ao seu lado, tão refletida no espelho da penteadeira quanto ele. Seus pés estavam descalços e sujos de terra; sua bochecha exibia o rastro brilhante de uma lágrima.

Somos todos um;  o Mestre somos nós.

“Navere...”, disse ela, fracamente. “Eu não sei o que fazer... estou com tanto medo...”. Navere via a imagem de Siana ficando transparente.
Siana não sentia a dor das pedras pontiagudas se enfiando na sola de seus pés ao caminhar pela rua de terra. Não viu quando caíra e levantara inconscientemente. Ela era Mestre, e Mestre era ela. Não havia Siana, não havia Navere, não havia realidade. Sua própria existência era apenas um sonho, um delírio. Talvez, um regalo do Mestre, uma esmola a sua mente obliterada.
“Siana, não se deixe ir... permaneça. Lute.” . A visão dela no espelho pareceu um pouco mais nítida.

A ilusão não existe, a realidade é apenas um sonho. A Verdade é o Mestre e a Verdade somos nós.

Navere teve um vislumbre da realidade. Não estava com Mestre, caminhando de volta para a sala com as paredes de pedra. Ele nunca tinha saído dela. Mestre fora sozinho buscar Siana. Fechou os olhos novamente, procurando o conforto da prisão do Mestre. Buscou sua sala com a penteadeira dentro da mente de Mestre e fitou-se no espelho.  

Mestre, Mestre, Mestre; dentro da mente de Mestre não há refúgio, há esmola, há Mestre, Mestre, Mestre...

Como se estivesse caindo, teve a sensação de vertigem e depois de aceleração. Abriu os olhos. Navere olhou para os lados, confuso. Sentia-se de alguma forma, presente em todas as camadas de si. Procurou Mestre. Nada. Buscou os outros e teve como resposta apenas a solidão, tão alienígena depois de tanto tempo.
Tentou levantar seu corpo, mas lhe faltaram forças. A leveza e conforto que Mestre lhe dera desde que lhe possuíra se extinguira. Não havia mais medo.
A visão se tornou um pouco mais funcional. Conseguiu distinguir barras metálicas à sua frente, e um leve baloiçar, como de uma cadeira de balanço, que o levava inteiramente.  Assim que seus olhos permitiram a visão a uma distância um pouco maior, vislumbrou uma gaiola suspensa que guardava um corpo emaciado, acinzentado e nu. Seios flácidos, pouco mais que bolsas de pele pendiam para a lateral, enquanto o tórax desafiava o bom senso e parecia ainda se levantar de forma ritmada. Estava viva.
Siana.
Navere olhou as próprias mãos. Tão esqueléticas como as dela. Não conseguia levantar. Conseguiu correr os dedos acinzentados pelas costelas; a magreza extrema lhe permitiu contar. Um, dois, três... dez, onze, doze. O esterno marcava o final do tórax com uma protuberância pontiaguda. A pele em cima do pequeno monte parecia amortecida.
Tentou esticar-se, mas as dimensões reduzidas da gaiola apenas permitiram que seus membros atravessassem as grades. Conseguiu arrastar-se até o limite da gaiola e olhar para baixo.
Quase diretamente abaixo dele, Mestre jazia imóvel, com seu rosto coberto por tentáculos deixando a boca monstruosa visível. Uma figura pequena estava agachada diante de Mestre, fazendo força para arrancar uma adaga dourada, diretamente do peito do illithid. Um som molhado indicou que o estranho havia conseguido puxar a adaga. O peito do illithid deixou escapar um líquido negro.
Navere procurou a mente de Mestre mais uma vez. Nada. A figura olhou para cima, diretamente para ele.

Navere olhou de volta, primeiro para a adaga dourada manchada de negro nas mãos do assassino, e depois para o rosto tão familiar de Phidain. 

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