Ao lado de seu
Mestre, Navere não tinha absolutamente nenhuma autonomia. Seu corpo parecia
dominado por inteiro, e cada célula sua funcionava apenas sob o comando do illithid.
Ele sentia que
todas as suas memórias, todos os níveis de pensamento, todas as suas habilidades
pertenciam ao seu mestre agora. Sentia que cada camada de Navere tinha sido
perdida e era invadida mentalmente como se ele utilizasse aqueles tentáculos
fisicamente. Exceto a camada onde ele estava.
De alguma
forma, Navere conseguira manter alguma consciência do que acontecia. Havia
visto o illithid invadir sua casa, acordando-o com carícias na cabeça. Sentiu-se
sendo tomado e levado para o lado de Mestre como seu escravo. Sentiu as mentes dos
outros escravos, todas misturadas como numa grande sopa de experiências, medo,
saberes e amores. Viu Siana entrar, interagir com Mestre, ser invadida por ele e
depois deixada de lado. Assim que Mestre penetrou Siana, permitiu que seus
escravos tivessem vislumbres de quem a meia elfa era, o que pensava e o que
sentia. Navere se lembrava de ter visitado alguns medos da amiga, principalmente
derivados de sua frustração pela inaptidão para a magia.
Mestre é a salvação; Mestre é tudo, é todos,
é a Verdade.
Interessantemente,
Navere não conseguia acessar quaisquer resquícios de consciência nos outros
escravos. Também, não entendia como aquela parte específica poderia ter sido
poupada de alguma forma por Mestre; talvez, Mestre tenha deliberadamente
fornecido a Navere um refúgio. Talvez, Mestre tenha considerado aquela parte
insignificante demais para dominar. Mestre não erraria, disso, Navere tinha certeza.
Navere estava
sentado à frente de uma penteadeira trabalhada em madrepérola, olhando-se
fixamente no espelho. O ambiente da única memória que restara como apenas sua
era extremamente escuro, iluminado apenas pela vela que o acompanhava na superfície
do móvel, ao lado de seus potes de cosméticos e escovas de cabelo. Ele fitava incessantemente seus próprios olhos,
que mudavam de cor, indecisos. Entre cada ciclo de cores da íris, o olhar
desviava-se para seus ombros. Esperava ver o rosto de Mestre ali. Esperava que
ele o encontrasse a qualquer momento.
Mestre irá completar todas as lacunas; a
Verdade tomará cada parte de meu ser. Eu sou Mestre e Mestre sou eu.
Os minutos e
horas foram passando e Navere continuava sozinho. Fisicamente, acompanhava o
Mestre entre salas com paredes de pedra, onde ele sentava-se calmamente para
ler, ou encontrava alguns iguais para conversar. A voz física de Mestre não pôde
ser ouvida em nenhum momento, assim como a dos outros illithids. Apesar disso,
as conversas eram extremamente eloquentes, mas aos escravos de ambos não era
permitida a compreensão do contexto. As palavras chegavam por inteiro, mas o significado
delas juntas era intangível. Navere não compreendia mais espaço ou tempo, e nem
se importava.
Eu não sou nada, eu não sou ninguém; eu sou
tudo e todos, e eu sou o Mestre.
Navere esticou sua mão imaterial e alcançou a escova
de pelos. De forma a manter o resto do corpo absolutamente imóvel, penteou os
fios de seu cabelo. Um a um, viu-os se desprendendo de sua cabeça, deixando para
trás espaços vazios em seu couro cabeludo. Em alguns minutos, sua cabeça estava
completamente lisa. O resto do seu corpo ainda estava perfeitamente imóvel, e
seu braço se movia como o de um boneco de madeira. A sensação de insegurança era
obliterante; sentia que se respirasse no ritmo errado, que se piscasse apenas
uma vez fora do tempo, seu esconderijo seria descoberto. Ainda assim, sentia
que Mestre era a única verdade, e seu medo se mesclava com conforto, quase na
mesma proporção.
Eu não sou nada, eu não sou ninguém, e sou
todas as coisas, e todas elas pertencem ao Mestre. Eu sou o Mestre, e eu sou
tudo.
O ambiente
ficava cada vez mais escuro, como se a memória onde Navere se escondia ficasse
mais fraca a cada segundo que ele questionava a própria existência. Ao contrário
do que seu coração insistia em dizer, não havia sinal do illithid ali.
Mestre se
despediu do último semelhante com quem conversava. De pé, pareceu ponderar por
alguns minutos, parado onde estava. Suas decisões não foram compartilhadas entre
os escravos.
Andando com
leveza sobrenatural, Mestre caminhara de volta por uma escada longa, que atravessava
grandes paredes sólidas de pedra. Após alguns minutos de caminhada, Mestre,
Navere e os outros escravos emergiram dentro de uma pequena cabana. Navere não
identificou o local. Sentia que sua capacidade de compreensão do ambiente tinha
sido também aniquilada.
Mestre, eu lhe agradeço esta graça; meus
passos são seus para serem guiados eternamente.
Era uma noite
clara, e a luz da lua não os deixava muito obscuros. Apesar disso, as poucas
pessoas acordadas por quem eles passavam eram incapazes de percebê-los. Mestre os
escondia em espaços profundos em suas próprias mentes, reservados aos pesadelos
e aos medos. Quando cruzavam-se os caminhos, os outros apenas viravam o rosto,
ou engajavam-se em conversas banais com outrem. Guardas decidiam afiar suas
espadas, dormir ou mudar a área da patrulha. Prostitutas mudavam sua rota e se
dirigiam a outras ruas escuras. O padeiro, sovando a massa com a janela aberta,
olhou diretamente para Mestre. Sua face deixou explícito o mais profundo pavor.
Mestre retribuiu o olhar. Navere e os outros sentiram quando Mestre tomou o
padeiro e dizimou sua memória, fazendo-o voltar a sovar a massa do pão da manhã,
retomando o assobio de onde parou.
Entraram na
rua onde Siana morava. Ainda à frente da penteadeira, Navere entendeu para onde
estavam indo. Não tinha recebido a informação de Mestre, tinha decifrado
sozinho. A independência do raciocínio o assustou, como se Mestre o tivesse
abandonado. A sensação foi ao mesmo tempo libertadora e aterrorizante.
Em seu quarto
escuro, Navere sentiu que tinha a liberdade para sorrir.
Mestre, me ilumine, me tome, eu sou seu e
você é meu.
O illithid terminou
a viagem à frente da casa de Siana, onde abriu o portão sem hesitar. Adentrou a
casa simples pela porta da frente. Passou pela porta do quarto de Halyna e Illithor,
que dormiam pacificamente.
Ao alcançar o
quarto de Siana, Navere percebeu que Mestre já era esperado.
“Criança, vejo
que já está preparada. Venha, venha, vamos. ”, disse Mestre gentilmente, em
coro com todas as vozes dos escravos. As vozes alcançavam a mente de Siana de
forma completa.
Siana tinha
planejado reagir. Não conseguira dormir nesta noite. Sabia que provavelmente
seria procurada novamente, e o medo permeava seu corpo até a ponta de seus
cabelos. Apesar da decisão, não conseguira
de forma alguma impedir que o illithid a tomasse novamente.
A meia elfa levantou-se,
deixando as cobertas caírem no chão. Ela não estava vestida para dormir, mas também
não estava usando sapatos. Os pés desnudos tocaram os tacos do chão sem
hesitar, e iniciaram a caminhada por onde Mestre a enviava.
Ela é minha, ela é nossa, ela somos nós.
Navere,
completamente careca, via seus olhos fundos sob a pele pálida das pálpebras. Sentia-se
muito velho, mas ainda resiliente. Seu abrigo era impenetrável, o que restava de
si estava a salvo. Seus olhos se fecharam e abriram novamente, em uma fração
quase negligenciável de um segundo.
Ao permitirem
a visão novamente, se focaram em Siana.
Ela estava
parada, não em seu quarto, nem depois na rua, acompanhando Mestre. Siana estava
ao seu lado, tão refletida no espelho da penteadeira quanto ele. Seus pés
estavam descalços e sujos de terra; sua bochecha exibia o rastro brilhante de
uma lágrima.
Somos todos um; o Mestre somos nós.
“Navere...”,
disse ela, fracamente. “Eu não sei o que fazer... estou com tanto medo...”. Navere
via a imagem de Siana ficando transparente.
Siana
não sentia a dor das pedras pontiagudas se enfiando na sola de seus pés ao
caminhar pela rua de terra. Não viu quando caíra e levantara inconscientemente.
Ela era Mestre, e Mestre era ela. Não havia Siana, não havia Navere, não havia
realidade. Sua própria existência era apenas um sonho, um delírio. Talvez, um
regalo do Mestre, uma esmola a sua mente obliterada.
“Siana,
não se deixe ir... permaneça. Lute.” . A visão dela no espelho pareceu um pouco
mais nítida.
A ilusão não existe, a realidade é apenas um
sonho. A Verdade é o Mestre e a Verdade somos nós.
Navere
teve um vislumbre da realidade. Não estava com Mestre, caminhando de volta para
a sala com as paredes de pedra. Ele nunca tinha saído dela. Mestre fora sozinho
buscar Siana. Fechou os olhos novamente, procurando o conforto da prisão do
Mestre. Buscou sua sala com a penteadeira dentro da mente de Mestre e fitou-se no
espelho.
Mestre, Mestre, Mestre; dentro da mente de
Mestre não há refúgio, há esmola, há Mestre, Mestre, Mestre...
Como
se estivesse caindo, teve a sensação de vertigem e depois de aceleração. Abriu
os olhos. Navere olhou para os lados, confuso. Sentia-se de alguma forma, presente
em todas as camadas de si. Procurou Mestre. Nada. Buscou os outros e teve como
resposta apenas a solidão, tão alienígena depois de tanto tempo.
Tentou
levantar seu corpo, mas lhe faltaram forças. A leveza e conforto que Mestre lhe
dera desde que lhe possuíra se extinguira. Não havia mais medo.
A
visão se tornou um pouco mais funcional. Conseguiu distinguir barras metálicas à
sua frente, e um leve baloiçar, como de uma cadeira de balanço, que o levava
inteiramente. Assim que seus olhos permitiram
a visão a uma distância um pouco maior, vislumbrou uma gaiola suspensa que guardava
um corpo emaciado, acinzentado e nu. Seios flácidos, pouco mais que bolsas de
pele pendiam para a lateral, enquanto o tórax desafiava o bom senso e parecia
ainda se levantar de forma ritmada. Estava viva.
Siana.
Navere
olhou as próprias mãos. Tão esqueléticas como as dela. Não conseguia levantar.
Conseguiu correr os dedos acinzentados pelas costelas; a magreza extrema lhe
permitiu contar. Um, dois, três... dez, onze, doze. O esterno marcava o final
do tórax com uma protuberância pontiaguda. A pele em cima do pequeno monte
parecia amortecida.
Tentou
esticar-se, mas as dimensões reduzidas da gaiola apenas permitiram que seus membros
atravessassem as grades. Conseguiu arrastar-se até o limite da gaiola e olhar
para baixo.
Quase
diretamente abaixo dele, Mestre jazia imóvel, com seu rosto coberto por tentáculos
deixando a boca monstruosa visível. Uma figura pequena estava agachada diante
de Mestre, fazendo força para arrancar uma adaga dourada, diretamente do peito
do illithid. Um som molhado indicou que o estranho havia conseguido puxar a adaga.
O peito do illithid deixou escapar um líquido negro.
Navere
procurou a mente de Mestre mais uma vez. Nada. A figura olhou para cima, diretamente
para ele.
Navere
olhou de volta, primeiro para a adaga dourada manchada de negro nas mãos do
assassino, e depois para o rosto tão familiar de Phidain.
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