quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

35 - Névoa cor de pérola

            “Certo. Agora que nos contou sobre toda essa desgraça, o que faremos? Não consigo imaginar como poderíamos vencer Nabara, dracolichs, illithids, cultistas e toda aquela corja de coisas horrorosas que vimos nos últimos tempos”, disse Askáth.
            “Eu tenho isso”, respondeu Siana, “Garek preparou vários feitiços nestes pergaminhos aqui. Dêem uma olhada.”
            Curvaram-se mais sobre a mesa, onde a maga estendia alguns pergaminhos escritos em runas diversas. Ninguém pareceu entender muita coisa, exceto Navere, que reconheceu uma magia ou duas.
            “São feitiços muito poderosos, que podem nos dar uma chance. Não vou mentir para vocês, não vai ser nada fácil”, disse Phidain. O humor do halfling mudara completamente, se comparado ao que era quando sentou-se na taverna dos Amlugnehtar com Siana para começar a pesquisa com o grupo de heróis. Navere, por outro lado, lembra de Phidain como um bardo mais calado, pois desde a infância, quando se viu sob os cuidados de Phidain, notara que o bardo carregava um semblante sombrio grande parte das vezes. Depois de Navere sair da casa do mestre bardo, Phidain fora surpreendido por Siana, de espírito leve e determinado. A benevolência inerente a ela tornou Phidain menos amargo, mais comunicativo e, obviamente, um bardo de mais sucesso.
            Siana levantou-se e foi até o quarto. Não a viam, mas ouviram o som característico de uma tranca antiga sendo manipulada e destravada. Logo depois, o som de uma tampa de baú rangera. Alguns segundos separaram a abertura do som pesado da tampa se fechando novamente. Siana reapareceu na sala, carregando um pequeno orbe de brilho fraco, branco. Dentro das paredes de vidro circulares do orbe, uma névoa esbranquiçada podia ser vista dançando, como se feita de vapor. No entanto, ao contrário do vapor, a névoa parecia perolada, com pequenos pontos brilhantes. Navere ficou encantado pelo objeto. Ao pedir para tocá-lo, Siana não permitiu, dizendo que seria perigoso deixar aquele artefato ser tocado por mãos não treinadas na magia como as dela.
            “Estão prontos? É hora de partirmos. Iremos primeiro resgatar Desmond, depois seguiremos até Evernight.”, disse a maga.
            “Estamos. Vamos acabar logo com isso, quero sair desse inferno o mais rápido possível, filha.”, respondeu Randal. Siana levantou os olhos ao ouvir o mercenário se referindo a ela como filha, mas ele não pareceu estar ciente do termo que usara. Siana percebeu que não se importara e que de fato também enxergava Randal como uma figura paternal.
Ninguém mais falou nada. Siana decidiu iniciar o processo. Posicionou o orbe no centro da mesa, instruindo a todos que deveriam dar-se as mãos. Siana disse a Navere que segurasse em seu ombro. “Preparem-se. Provavelmente vamos atacá-los assim que os virmos. Temos o elemento surpresa em nossas mãos”, disse ela.
Observando o orbe, Siana concentrou-se e esticou sua mão direita e o tocou levemente. Dentro da esfera vítrea, a névoa condensou-se, exibindo a imagem difusa de Desmond sendo levado por cultistas ao longo de uma estrada.  O ladino era seguido de perto pela enorme figura de armadura que tinha invadido o abrigo onde estavam. Os outros cultistas seguiam atrás, a passos lentos e cadenciados. O grupo não parecia estar com pressa.
Alguns segundos depois, o orbe emitiu luz forte, capaz de atordoar a todos.
Todos, mesmo Siana, sofreram com o leve atordoamento que o teleporte costuma causar. Em algumas pessoas, a visão se torna um pouco turva, dificultando a recuperação da propriocepção. Finalmente, ao se reorientarem, perceberam que haviam sido transportados para a imediata frente do grupo de cultistas que levava Desmond.
 O espanto os congelou por alguns segundos, tornando Siana, um pouco mais experiente com teleportes e já recuperada do atordoamento, capaz de atacar de surpresa. Utilizando as mãos, colocou-as à frente do corpo  e produziu instantaneamente um leque de fogo que varreu todos eles, causando-lhes dano massivo. Desmond, mais experiente em batalhas e conhecedor da magia que Siana acabara de utilizar, aproveitou a surpresa dos captores para desviar. Não se machucou. Mesmo com as mãos amarradas, conseguira rolar e se posicionar atrás de um deles, fazendo-o servir como um escudo vivo.
O cultista e os dois mortos vivos lacaios caíram mortos instantaneamente, mas a armadura permaneceu intacta. Elevando as mãos gigantescas, empunhou a espada a posicionou diretamente no ângulo da cabeça de Siana, que já se preparava para conjurar outra magia. Antes que ele conseguisse baixar a arma e repartir sua cabeça ao meio, a maga, mais uma vez, estendeu as mãos. Desta vez, agarrou a armadura e liberou uma poderosa descarga elétrica. A figura pareceu titubear, derrubando a espada. O choque causara a hesitação necessária para que Phidain acertasse entre as placas de seu peito com uma adaga, fazendo com que a lâmina perfurasse o espaço entre as placas onde Phidain acreditava levar ao coração da criatura.
O enorme cavaleiro caiu de joelhos, colocando o peito estufado e metálico da armadura completa à altura exata dos olhos de Siana. Com a mão estendida, ainda sem demonstrar medo, a maga produziu um jato ácido, fazendo o peitoral da armadura derreter lentamente.  Quando o peitoral danificado deveria expor o usuário da armadura, nada apareceu.
A armadura desmontou completamente e parou de se mover. Desmond levantou e se dirigiu até eles.
“Vocês demoraram. Quase tive que matar todos eles sozinho.”
“Claro, você conseguiria.”, disse Askáth, sarcástico.
Desmond não respondeu. Apenas virou-se, indicando não-verbalmente as amarras que continham seus pulsos. Askáth cortou as cordas com uma adaga, libertando o outro ladino.
“Todos estão bem? Se estiverem, é hora de resgatar os Amlugnehtar”.
Mais uma vez, se juntaram em círculo ao redor do orbe que Siana carregava. Ela refez o ritual. Desta vez, o orbe mostrou não um pequeno grupo de pessoas, mas um lugar escuro e indistinguível.
            O clarão determinou o início e o fim da curtíssima viagem. Siana havia calculado que economizariam centenas de milhas desta forma, mesmo às custas de um artefato tão raro e de tão limitado uso. Nesta mesma hora, o orbe apagou-se. A névoa perolada dissipou-se por completo e o objeto tão obviamente mágico há poucos segundos, tornara-se na mais mundana das esferas de vidro.  
            A sala onde tinham ido parar parecia completamente vazia. Nenhum som provindo de monstros ou humanos podia ser ouvido, e eles tinham certeza de que estavam absolutamente sozinhos. A própria certeza foi questionada por Phidain, internamente, mas ele decidiu não compartilhar a dúvida com os companheiros de viagem.
            “Não precisaremos mais disso”, disse ela, largando o orbe, que atingiu de pronto o chão no meio do círculo que formavam. O som do vidro se estilhaçando não foi tão alto quanto imaginavam, mas ecoou nas galerias escuras e úmidas para onde tinham sido transportados. “Estranho... devíamos ter saído exatamente à frente dos Amlugnehtar sequestrados. ”          
            Som de líquidos gotejantes, como em uma galeria de esgotos desativada podia ser ouvido, ecoando indistintamente por todas as paredes. A sala toda era construída em pedra, cheia de limo e sem decorações. Parecia absolutamente vazia, até onde conseguiam enxergar. O pé direito era baixo. Com a exceção de Phidain, todos os outros conseguiam encostar as palmas das mãos com facilidade no teto apenas levantando os braços.
            Durante algum tempo, eles vasculharam a sala, à procura de saídas, itens, pistas. O ambiente muito escuro não facilitava a procura. Desmond, Askáth e mesmo Phidain pareciam intrigados com a perfeição da vedação da sala. Mais alguns minutos se passaram até que Thaal pisasse, sem querer, num dos blocos que compunha o chão.
            À frente deles, uma parte da parede deslizou. Os outros se viraram ao som pesado do arrastar da porta secreta. Um a um, cautelosamente, avançaram para a sala seguinte, intrigados pela obscuridade e acesso quase impossível. Quando Randal, o último a entrar na sala teve a chance de observar com clareza o que havia dentro da sala secreta, a respiração dele cessou por completo por alguns segundos. Os outros já estavam absolutamente imóveis pela surpresa. Nenhum deles percebeu que Siana fora a primeira a se recuperar do choque, e que a maneira que conseguiu para lidar com a visão que tivera fora curvar-se e vomitar profusamente, entre lágrimas de medo, repulsa e choque.
            Ao longo da parede lateral da sala fracamente iluminada por braseiros aos pés de quatro colunas centrais, quatro pessoas jaziam acorrentadas. Thaal soltou seu peso em cima de seus joelhos e abaixou a cabeça, pondo-se a rezar. Randal agachou-se ao lado de Siana. Askáth permaneceu imóvel, enquanto Desmond iniciara uma lenta marcha em direção aos companheiros, para que pudesse observá-los de perto. Caminhou até a feiticeira, a primeira, no canto da parede. A mão de Desmond tampava sua boca, como em um estado de espanto constante.
            Nyx estava nua, seu corpo, outrora bem formado e de beleza excepcional, demonstrava uma palidez mortiça sob inúmeras manchas de sangue. Uma de suas pernas era branca como o resto do corpo. A outra, vermelha como o sangue. Embaixo de seus pés, pendentes a mais de trinta centímetros do solo, sangrentos pedaços de carne se amontoavam entre poças de sangue coagulado. A carne de sua coxa e perna estava exposta, e o rosto da feiticeira, desacordada, transmitia ter sentido a mais profunda dor antes de perder a consciência.
            Ao lado da feiticeira, pendurado pelos pulsos, estava Orsin, o anão. Ele parecia menos ferido do que Nyx. Ao contrário de como Desmond se lembrava, Orsin não usava armadura, apenas uma calça rasgada, de tecido puído. Em seu peito, alguém havia cravado o contorno de um dragão. A mutilação parecia recente; do ferimento, o sangue ainda escorria fraco, mas constante.  Orsin estava consciente, ofegante. Seus olhos encontraram os de Desmond, e demonstravam uma profunda tristeza ao lado da dor imensa. Ele virou a cabeça, apontando para Phalos e Sonam, ao lado.
            Em terceiro havia o draconato, ainda acordado. Em vez de seus habituais enfeites feitos de partes dos monstros que ele derrotara, Desmond viu que ele tinha em seu pescoço um colar feito de dentes afiados e sangrentos, arrancados à força. Sua cabeça pendia para a frente, com seu longo focinho dracônico tocando seu peito. Os olhos estavam fechados, mas a boca entreaberta deixava sangue viscoso escorrer pelo peito e pingar no chão. Desmond percebeu de onde tinham saído os dentes que compunham o colar no pescoço do amigo.
            Ainda perplexo pela crueldade irônica cometida com Phalos, o ladino se sentia próximo a perder o controle de seu estômago, assim como Siana. Ao caminhar mais um pouco e observar Sonam, seu fôlego perdeu-se, e seus olhos finalmente cederam. Desmond gritou, cobrindo o rosto com as mãos e deixando que lágrimas escorressem profusamente de seus olhos.
            Sonam, o monge, havia sido um guerreiro implacável. Suas sequências de golpes mortais foram decisivas em diversas batalhas. Desmond devia a Sonam a vida diversas vezes. Por lutar com suas mãos e com elas ter tirado a vida de Severin, o líder do Culto do Dragão na época em que impediram o retorno de Tiamat, aparentemente a tortura vingativa tinha sido mais cruel com ele do que com os outros.
            Sonam pendia preso de braços abertos, como em uma crucificação com correntes. Sua cabeça também apontava para baixo, imóvel, indicando que ele provavelmente estava inconsciente. Seu corpo não trazia nenhum dano, ao contrário de seus companheiros, sua tortura tinha sido localizada.

            Cada uma de suas mãos, em concha, trazia em seu interior um dos olhos do monge. 

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