Nyx recebeu
ali mesmo os cuidados de Thaal e Orsin. Assim que fora retirada da parede, a
perna esfolada começara a sangrar mais. Orsin, o primeiro a ser descido da
prisão vertical, não hesitou. O paladino anão dispensou magia e cuidados para
si, simplesmente esfregando as mãos onde as amarras estiveram antes e pondo-se
a trabalhar. Nyx apenas recobrou a consciência quando Thaal e Orsin produziram
magias suficientes para que sua perna recobrasse a pele. Seu corpo nu fora
coberto com um manto que Siana vestia. Observava suas novas e extremamente
extensas cicatrizes em silêncio. Siana percebeu que mesmo o rosto impassível de
Nyx demonstrava medo e desespero, principalmente quando seus olhos alcançaram o
pequeno amontoado de pele de sua perna que tinha ficado no chão.
Orsin, ao
ter certeza que Nyx estava fora de perigo, dirigiu-se a Phalos. O bárbaro se
recusava a abrir a boca. Askáth e Navere permaneciam ao seu lado, tentando
convencê-lo a deixar que Orsin e Thaal avaliassem a extensão dos danos.
Para Thaal,
o processo de cura de todos era muito exaustivo, mas a oportunidade de
trabalhar ao lado de alguém tão talentoso como Orsin era de valor inestimável.
Quando sua mente se enevoava de cansaço, a benevolência nos olhos e nos gestos
do paladino ferido o revigoravam.
Phalos
ainda não obedecia, e Orsin decidiu que ele precisaria de algum tempo.
Dirigiu-se a Sonam, enquanto Thaal permaneceu ao lado de Phalos.
O monge,
assim que fora libertado das amarras, recobrou a consciência. Em silêncio,
arrancou um pedaço das roupas em frangalhos que haviam restado em seu corpo,
enrolou em uma bandagem e amarrou sobre suas órbitas vazias. Seus olhos
arrancados foram postos em um canto da sala. À frente deles, Sonam permanecia
em posição de meditação.
Orsin tinha
pressa para curar Sonam. Assim que o encontrara, percebera que seus olhos
tinham sido arrancados há mais tempo do que as mutilações com os outros, e que
as chances de restauração eram muito pequenas. Não se lembrava de quase nada do
que acontecera antes de serem encontrados. Não presenciara as agressões com os
outros. Suspeitava que os olhos de Sonam tivessem sido arrancados de forma
ritualística.
“Sonam...
eu sinto muito”, disse Orsin.
“Esse é meu
destino, paladino. Não se sinta mal.”
“Ainda
existe uma chance... mas você precisa tirá-los da terra, Sonam... a cada
minuto, as chances de você recobrar sua visão são cada vez menores...”
“Eu não
recuperarei a visão, Orsin. Este é meu destino. Meu caminho agora será trilhado
na escuridão física e na iluminação da alma. Vá, cuide dos outros. Eu estou em
paz.”
Orsin não
sentiu necessidade de prolongar a conversa. As chances de conseguir recuperar
os olhos do monge eram realmente tão pequenas que talvez fosse menos nocivo que
ele não cultivasse falsas esperanças. O paladino desejou internamente que o
processo de aceitação da cegueira viesse com calma, constante e com sucesso.
Voltando a
Phalos, Orsin percebera que Thaal, enquanto ele trocara palavras com Sonam,
havia conseguido que o bárbaro finalmente abrisse a boca. Examinando mais de
perto, o paladino percebeu que os dentes haviam sido arrancados por completo,
com raiz e tudo, um a um. Certamente, Phalos passara por um sofrimento sem
tamanho. Os dentes não haviam sido perfurados para a confecção tosca do colar,
apenas enrolados em um barbante sangrento.
“Sua boca
ainda está sangrando, Phalos. Posso colocar seus dentes de volta. Infelizmente,
isso vai ser muito dolorido. Você quer que eu faça assim mesmo?”
Phalos não
tentou produzir som, mas acenou com a cabeça, abrindo mais a boca. Enquanto
Thaal desenrolava os dentes do colar, um por um, Orsin foi recolocando-os nos
buracos da gengiva do bárbaro. A anatomia diferente do draconato era
desafiadora para Orsin, mas ele conseguiu, como se montasse um quebra-cabeças,
encaixar todos os dentes exatamente onde estavam antes. Utilizando-se de magia
divina complexa e poderosa, restaurou a boca completamente, deixando apenas
algumas cicatrizes para trás.
Phalos
agradeceu intensamente o amigo paladino, abraçando-o emocionalmente. Sua
alegria durou apenas alguns segundos, quando percebeu que todos haviam sido
mutilados e que Sonam, ao contrário dos outros, não ficaria tão bem assim.
Sonam
levantou-se depois de quase duas horas de meditação. Nyx ainda não conversava.
Phalos permanecia cabisbaixo. Orsin finalmente estancara seu próprio sangue do
ferimento no peito. De todos, era o menos grave. O paladino suspeitava que
provavelmente aquele tinha sido só o primeiro ritual. Ele fora levado de sua cela na mesma hora que
Phalos, mas sua mutilação fora conduzida em uma sala separada. Sozinho com
apenas um cultista, suas vestes foram arrancadas e com uma adaga pouco afiada,
aquele dragão fora desenhado.
“Eu sinto
que podemos ir”, disse Sonam. Seu tom de voz estava diferente. Outrora calado e
falando baixo, o monge parecia mais certo de sua própria opinião e
participação. A cabeça permanecia erguida.
“Eu acho
que é uma boa ideia. Estamos muito próximos de conseguir finalmente acabar com
o Culto. Estão todos bem? Nyx? Você consegue andar?”, perguntou Siana.
“Estou
pronta”, disse ela, finalmente falando depois de tanto tempo em silêncio. Ao
contrário de Sonam, Nyx parecia muito abalada. Teve dificuldade em se erguer,
manifestando medo de apoiar a perna esfolada no chão. A pele que se formara por
cima dos músculos expostos era muito branca, brilhante, como a que se forma
depois de uma queimadura extensa. Não era mais uma bela perna, como outrora,
mas parecia funcional. Orsin parecia demonstrar pesar, como se se sentisse
culpado por não ter conseguido restaurar a beleza de Nyx da mesma forma como
restaurou a saúde.
Todos eles
se juntaram. Phidain, Siana, Navere, Thaal, Randal e Askáth, e os Amlugnehtar
mais uma vez reunidos, Orsin, Phalos, Desmond, Nyx e Sonam.
Avançaram
em fila, liderados por Siana, que havia estudado o caminho. A sala onde estavam
presos os Amlugnehtar parecia ser uma indicada por um “T” no mapa que Siana
possuía. A única porta que a sala continha parecia levar a um corredor longo.
Tentando
não se desviar muito do caminho que haviam estudado, entraram em uma das portas
no corredor, acertando exatamente o ponto central do caminho que percorreriam
dentro da construção. Em várias salas pelas quais atravessaram haviam depósitos
de recursos, como comida, valores e até pessoas. Passaram por um grande
ambiente repleto de gaiolas grandes, cada uma contendo cerca de dez
prisioneiros emaciados, subnutridos e muito pálidos. Seus rostos demonstravam
medo profundo e aceitação da morte iminente. Prometeram a todos que voltariam
para libertá-los assim que conseguissem parar Nabara e o Culto.
Siana
insistiu para que todos fossem libertados naquele momento, mas Nyx pontuou que
não poderiam arcar com o risco de os prisioneiros se comportarem de forma
errática, por medo, e alertarem o Culto de alguma forma.
Durante o
trajeto, Desmond teve que assassinar seis guardas. De todos eles, o ladino
cortou as gargantas de surpresa, atacando-os por trás sorrateiramente. Os
outros não eram mais capazes de sentir mais o choque ao assistir outras pessoas
sendo mortas. É como se a vida desses guardas fosse apenas dano colateral, como
um arranhão ao fazer um trabalho braçal.
Sonam se
locomovia com fluidez e não parecia estar particularmente abalado pela perda
dos olhos. Assim como todos os outros, ele não iniciava conversas e apenas
respondia o estritamente necessário. Um olhar desatento não perceberia que o
monge tinha uma faixa cobrindo as órbitas vazias.
Ultrapassaram
todas as salas, obstáculos e desvios até chegarem ao salão onde os batedores
haviam testemunhado o sacrifício ritual do dragão. Uma grande porta em madeira
trabalhada fechava a passagem. A porta parecia nova, e tinha, em baixo relevo,
a representação de Tiamat. Nyx sentiu um calafrio que ascendeu da base de sua
coluna até sua nuca. Decidiram abrir a porta de súbito.
O enorme
salão correspondia às descrições compostas pelos batedores. O salão tinha o pé
direito muito alto e as paredes pouco trabalhadas, parecendo feitas de pedra nua.
Ao centro, uma mesa de pedra, como um altar, fazia as vezes de mesa ritualística.
A superfície estava suspensa por pedras colocadas como pés da mesa. As descrições
não mencionavam nenhum altar, portanto, presumia-se que era uma adição recente.
Antes, naquele espaço, o dragão havia sido acomodado durante o ritual de
transformação.
Dentro do
salão, sobre a mesa, havia um corpo provavelmente humano. Ao redor da mesa, vários
mortos vivos se enfileiravam. À frente deles, diretamente atrás da mesa, estava
a elfa dos cabelos muito negros que imaginavam ser Nabara, a atual líder do culto.
“Afinal,
vocês chegaram cedo!”, disse ela.
Nenhum
deles foi capaz de responder.
“Venham,
vamos participar da festa. Tragam nossos anfitriões, nossos convidados de honra
chegaram!”, continuou Nabara.
Um dos
mortos vivos atravessou uma grande passagem escura, de mais de dez metros de altura.
Enquanto Nabara observava o morto vivo se distanciando, a parte lateral do seu
rosto ficara exposta. Nyx não hesitou. De suas mãos, um raio de luz avermelhada
e escura, parecendo ser feita de calor puro, atingiu Nabara na mandíbula,
pescoço e bochecha direita. O ferimento fumegante deixara expostos ossos, tendões
e músculos da face da elfa.
A elfa
emitiu um som agudo e virou-se imediatamente. Nyx foi atingida por energia necrótica
concentrada, diretamente no peito. Seu corpo, normalmente pálido, transcendeu a
palidez e tornou-se tão branco quanto algodão. Seus olhos perderam o brilho. O
ferimento de Nabara se fechava progressivamente enquanto ela mantinha o fluxo
de energia, como se sugasse a vitalidade da feiticeira. Quando o feixe de
energia finalmente cessou, o corpo de Nyx caiu inerte no chão.
Ao contrário
do que pretendia, Nabara cessou o feixe vampírico não porque seu ferimento havia
se curado, mas porque outro lhe fora causado entre as costelas. Utilizando-se
da distração causada por Nyx, Desmond se moveu rápida e furtivamente até
Nabara, a atingindo pelas costas com a adaga entre as costelas.
A
concentração de Nabara perdeu-se com a dor lancinante, ainda pior do que a que
Nyx lhe causara.
Quando Nyx
atacou Nabara, os mortos vivos reagiram. Askáth, Navere, Sonam e Orsin se
encarregaram de mantê-los ocupados, acertando as cabeças com setas, flechas e ataques
de espada. Sonam parecia seguro o suficiente para permear a pequena horda e acertar
múltiplos ataques manuais letais nas cabeças e corpos decrépitos. Desviou de
todos os ataques direcionados a ele, permanecendo ileso por ainda mais tempo do
que costumava conseguir.
Nabara
perdeu o equilíbrio e deixou seu corpo flácido. Desmond retirou violentamente a
adaga do tórax da elfa. Aproveitando a perda de controle de Nabara, Desmond a golpeou
mais uma vez. O corpo terminou de cair, morto.
Assim que
Nabara atingiu o chão, de dentro da passagem escura um urro ensurdecedor foi
emitido por mandíbulas profanas. Um enorme jato de fogo invadiu o salão, precedendo
patas pesadas marchando enraivecidamente em direção a eles.
O dragão
vermelho irrompeu, soprando fogo para todos os lados. Como se estivesse
completamente fora de controle, varria o chão com suas labaredas, queimando mortos
vivos de seu exército tanto quanto os invasores. Atrás dele, seguiram cultistas,
illithids e o próprio monstro que tinham visto na saída do templo, o beholder
cego.
O dragão abocanhou
cegamente um punhado de mortos vivos que lutavam com Sonam. Mesmo cego, o monge
conseguiu desviar da bocarra apodrecida do dragão, deixando que apenas seis mortos
vivos fossem levados entre o dente. O dragão mastigou superficialmente duas ou
três vezes, depois terminou de engolir os próprios soldados mortos vivos do culto.
A pele do monstro pendia em abas,
pedaços de couro com escamas pendurados fracamente na carne em decomposição. A
morte do dragão havia acontecido de forma ritual, mas é como se o processo de
putrefação fosse comum, como o que atinge todos os animais. Uma parte do crânio
estava exposta, deixando a face do dragão transformado em dracolich ainda mais
feroz e desfigurada. Um de seus olhos estava ausente, com o crânio esbranquiçado
insistindo em aparecer sob a pele friável. Quando o monstro fazia um movimento
violento, pedaços de carne atingiam o chão e os combatentes. A cada ataque, os
ossos do dragão tentavam se desprender da carne, como uma borboleta deixando
seu casulo.
Os illithids,
o beholder e a dracolich partiram em direção dos Amlugnehtar. Nyx ainda permanecia caída no chão, inerte.
Orsin, continuava cortando cabeças em longas sequências de golpes certeiros,
enquanto Sonam corria novamente para perto dos companheiros para protegê-los. Phalos,
atacava com a boca recém regenerada, além de cravar a espada em peitos
putrefatos de mortos vivos também em sequência memorável de acertos.
Desmond
correu, largando Nabara onde caíra. O reagrupamento era parte do plano. Siana
havia desenhado cuidadosamente cada passo daquela batalha, então sabia que
agora era a hora que deveriam finalmente acabar com a dracolich, os illithids e
o beholder. O único que não se esforçava para se juntar aos outros era Phidain,
que se locomovia furtivamente em direção à dracolich. Seus pés hábeis do bardo,
outrora ladino, foram capazes de fazê-lo alcançar quase o espaço imediatamente à
direita da enorme pata apodrecida do monstro.
Quando viu
todos os companheiros se agruparem ao redor dela, Siana abriu o pergaminho que
segurava e leu as runas em voz alta. Enquanto lia, aproveitou uma vírgula para
conferir o posicionamento de Phidain.
Imediatamente, após o fonema
final da última palavra, o sopro da dracolich em direção aos invasores cessou,
como se as chamas congelassem. Projéteis,
raios de energia mágica, correntes de vento pararam no ar. Ninguém respirava,
nada se movia. Tudo estava absolutamente quieto, indiscutivelmente silencioso, imensuravelmente
imóvel, da poeira do chão até o Plano por completo.
Exceto
Siana.
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