Internamente, Navere não entendeu as próprias reações.
Apesar de estar enraivecido pelas atitudes de Phidain, toda a história que
dividiam fez com que seu coração se sentisse acolhido de alguma forma. Seu
rosto não permitiu o sorriso, mas ele ficou feliz que a noite escura escondeu o
brilho em seus olhos.
“Olá,
Navere. Olá, pessoal.”
“Isso está
ficando muito estranho”, disse Askáth. “Como você veio parar aqui neste fim de
mundo?”
“Este não é
o fim do mundo, ladino... é apenas outro.”
Eles
ficaram em silêncio com a resposta do bardo. Ele se aproximou mais, se fazendo
mais visível à luz fraca da fogueira. Largou a bolsa no chão e sentou-se,
infiltrando-se na roda.
“Eu... acho
que vocês devem ter muitas perguntas”, afirmou Phidain, um pouco inseguro.
“Estou pronto para responder a todas, desde que sigamos viagem assim que o dia
nascer.”
“Viagem?
Você está louco? Depois de tudo o que aconteceu, o que faria com que
permitíssemos que viajasse conosco?”, perguntou Askáth, um pouco mais sério.
“Posso
explicar tudo o que aconteceu, se vocês me permitirem.”
“Pois
comece do começo, Phidain.”, falou Thaal, com o rosto sério e a voz profunda.
“Eu nunca
quis colocar vocês em risco. Foi tudo por causa... de um erro muito grave que
cometi.”, começou ele, respirando fundo. “Eu me aliei a pessoas erradas no
passado, bem antes do Culto do Dragão se tornar o que virou. Eu era um ladino,
como você, Askáth. E modéstia à parte, eu era muito bom.”
O clima de
espanto entre eles foi quase palpável.
“Então, o
líder da guilda resolveu nos afiliar ao Culto. Eu não queria ir, eu juro para
vocês que eu não queria. Um dia, me mandaram matar mais alguns desertores.
Vejam, eu era um assassino, e eu era muito bom. Por favor... por favor me
perdoem...”, disse Phidain numa voz tremida.
“Continue”,
respondeu Navere, com a voz seca.
“Então,
depois dessa missão eu... eu me arrependi de tudo. Percebi que o Culto não
poderia ser bom e resolvi fugir. Levei comigo o filho dos dois que matei,
morto, nos meus braços. Ele morreu por engano... não sabia que tinha uma
criança lá...”
“Por que
você levou o corpo?”, perguntou Askáth.
“Porque não
conseguiria dormir nunca mais se não tentasse. A morte daquele menino foi
causada por uma magia que o próprio pai dele conjurou, mas que estava destinada
a mim, que os atacava sob seu próprio teto. Eu sou um monstro, um monstro...”.
Phidain parecia estar perdido em remorso. Seus olhos marejados olharam
diretamente para Navere. “Levei o menino para um templo, onde me disseram que
uma pequena fortuna era necessária para revivê-lo, mas que seria possível.
Sabia exatamente onde encontrar este dinheiro. Então, fui até a guilda
novamente, levando as cabeças dos pais do garoto. Voltei até a casa deles para
decepá-las, eu... eu precisava de uma prova...”. Phidain desabou em lágrimas.
Não parecia capaz de continuar.
“Por favor,
continue. Precisamos saber. Temos esse direito”, disse Thaal.
“Eu
demonstrei que havia cumprido a missão. Na sala do tesouro, matei os dois
guardas que contavam o dinheiro que a guilda estava juntando para o Culto e
roubei tudo o que podia. Saí dali o mais rápido que pude, levei as moedas ao
templo e o garoto foi revivido. ”, continuou Phidain, tentando se acalmar.”
“O que você
fez com o menino? Para onde ele foi, depois que você matou seus pais e decepou
suas cabeças?”, perguntou Navere. Os olhos de Phidain demonstraram dor
profunda, principalmente pela pergunta ter vindo de Navere.
“Ele... não
se lembrava de nada... então eu... eu... menti para ele. Contei que ele havia
batido a cabeça ao tentar me roubar. Disse que... disse que eu o perdoava e que
iria ensiná-lo a ser uma pessoa melhor. Disse que tinha o ouvido cantar e sua
voz era linda.”
Navere
parecia profundamente estarrecido. Não esperava de forma alguma que a história
de Phidain fosse se revelar desta forma. Não achava que sua vida tivesse sido
diferente do que imaginava, um menino de rua abandonado pela mãe prostituta,
que vivia fazendo pequenos truques, furtos e traquinagens.
“Phidain...”,
foi tudo o que conseguiu dizer, antes que suas pernas o fizessem se levantar
subitamente. Como se não controlasse sua linguagem corporal, levou às mãos à
boca e saiu da roda da fogueira a passos largos.
“Espere,
Navere... me perdoe, me perdoe!”, gritou Phidain, se levantando e tentando
seguir o bardo. Thaal o segurou pelo braço e o fez sentar novamente.
“Dê um
tempo a ele. Sua história foi demais para ele, e quase para nós também.
Prossiga. Dê a Navere tempo para que compreenda a dimensão de tudo o que você
falou.”
“Daquele
dia em diante, me dediquei apenas à música, que sempre fora minha paixão, mesmo
nos tempos da ladinagem. Desenvolvi a magia e me tornei um bardo profissional.
Por medo que Navere se tornasse o que fui, o levei junto para a música e o
treinei o melhor que pude. Satisfiz com mentiras a necessidade de conhecimento
sobre seu próprio passado, dizendo que o criava por pena, que ele não tinha
pais, que tinha sido abandonado. Jamais... jamais poderia assumir que eu tinha
causado a morte daquele casal que apenas havia percebido a verdadeira face do
Culto e tentava fugir para proteger a cria.” O bardo parecia cheio de pesar,
falava baixo. Sua voz fina e anasalada de halfling, normalmente carregada de
alegria, não remetia ao bardo que conheceram. “Depois de alguns anos, encontrei
Siana e a tomei como aprendiz da mesma forma.”
“Certo.
Linda história. E os Amlugnehtar? Nós sabemos que a culpa foi sua. Desmond
achou o pergaminho com as suas ordens na sua casa, quando foi confrontá-lo. Ele
nos mostrou.”, disse Askáth, firme e apressadamente.
“Eu não
sei... eu estava sendo chantageado pelos Illithids, que descobriram meu
paradeiro e ameaçaram contar para o remanescente do Culto sobre meu roubo e
deserção. Consegui me safar por algum tempo das demandas deles, mas acabaram
por sequestrar Navere e Siana e tive que cumprir o que pediram. A única coisa
que me pediram foi para plantar uma pedra num canto específico da Taverna. Se
eu fizesse isso, poderia buscar meus pupilos. E foi assim que eu os encontrei,
quase mortos, sendo sugados pelo Illithid que matei. Ouvi vocês chegando e saí,
com medo de ser descoberto. Esperei escondido do lado de fora, até que vocês
saíram com Navere e Siana carregados.”
“Mas ONDE
ESTÃO ELES?!”, exaltou-se Askáth. “ESTOU CANSADO DESSE SEU FALATÓRIO!”,
continuou. Perdemos Siana, Desmond e todos os Amlugnehtar por sua culpa!
“Eu não
sei.”
Desta vez,
foi Askáth quem levantou e pôs-se a caminhar com passos firmes, demonstrando
raiva. Alcançou Navere e começaram a conversar em voz baixa. Os outros permaneceram em silêncio por algum
tempo, até que Askáth gritou mais uma vez, agora, com Navere. “EU NÃO QUERO
SABER! A CULPA FOI DESSE HALFLING!”.
Mais algumas frases inaudíveis e
foi a vez de Navere se exaltar. “VOCÊ ACHA QUE EU NÃO SEI DISSO? E SIANA?
PERDEMOS SIANA, E AGORA ELA ESTÁ MORTA!”
Thaal olhou para Phidain, que
apertou os olhos e abaixou a cabeça.
“Acho melhor deixarmos o resto da
conversa para amanhã. Você vai ter que seguir conosco. É o mínimo que pode
fazer para pagar suas dívidas com Navere. E Desmond, quando o encontrarmos. ”,
disse Thaal.
“Foi para isso que vim até aqui”,
respondeu Phidain, humildemente.
Deitaram em seus sacos de dormir.
Askáth e Navere continuaram conversando por meia hora depois que os outros já
estavam deitados, e acabaram tomando o primeiro turno de vigia para si.
Na manhã seguinte, o céu
acinzentado os acordou com a parca luminosidade de Shadowfell. Enquanto eles juntavam
os aparatos do acampamento, Phidain observava uma pequena pedra avermelhada que
tirou do bolso.
“Temos mais muito tempo de
viagem. Mais de dois meses.” Os três se entreolharam assustados com a previsão,
mas não demonstraram verbalmente o espanto. “Vejo que suas provisões são
escassas e de má qualidade. Não se preocupem, eu estou preparado. A seis horas
daqui há uma cabana, com tudo o que precisamos para seguirmos viagem.”,
anunciou Phidain.
“E como você sabe disso? Já veio
aqui também?”, perguntou Askáth. “Parece que você está em todos os lugares, é
uma coisa impressionante”. A voz do ladino soava sarcástica e seca.
“O suficiente. Precisamos estar
bem preparados e descansados para o que virá pela frente.”
Nas horas seguintes seguiram pela
estrada vazia e abandonada. Navere seguia sozinho, cabisbaixo, por último. Os
poucos rastros que o grupo que levava Desmond havia deixado foram apagados por
uma chuva fina e gelada que os acompanhou boa parte do caminho. O chão de terra
preta com pedriscos esparsos se tornou uma lama espessa que engolia os passos
deles com voracidade. A viagem até a cabana seria completada até metade do dia,
mas acabaram alcançando-a apenas no começo da noite. A chuva já havia parado há
algumas horas, mas o ar permanecia gelado e úmido.
Ao avistarem a cabana, depois de
uma curva a mais ou menos meio quilômetro de distância, se surpreenderam com as
luzes acesas do lado de dentro. A luminosidade era azulada, característica da
iluminação mágica.
Alguns minutos depois, antes
mesmo de tentarem alcançar a porta, esta se abriu espontaneamente.
“Oi, pessoal”, disse Siana.
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