quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

31 - Phidain e seu Filho

Internamente, Navere não entendeu as próprias reações. Apesar de estar enraivecido pelas atitudes de Phidain, toda a história que dividiam fez com que seu coração se sentisse acolhido de alguma forma. Seu rosto não permitiu o sorriso, mas ele ficou feliz que a noite escura escondeu o brilho em seus olhos.
            “Olá, Navere. Olá, pessoal.”
            “Isso está ficando muito estranho”, disse Askáth. “Como você veio parar aqui neste fim de mundo?”
            “Este não é o fim do mundo, ladino... é apenas outro.”
            Eles ficaram em silêncio com a resposta do bardo. Ele se aproximou mais, se fazendo mais visível à luz fraca da fogueira. Largou a bolsa no chão e sentou-se, infiltrando-se na roda.
            “Eu... acho que vocês devem ter muitas perguntas”, afirmou Phidain, um pouco inseguro. “Estou pronto para responder a todas, desde que sigamos viagem assim que o dia nascer.”
            “Viagem? Você está louco? Depois de tudo o que aconteceu, o que faria com que permitíssemos que viajasse conosco?”, perguntou Askáth, um pouco mais sério.
            “Posso explicar tudo o que aconteceu, se vocês me permitirem.”
            “Pois comece do começo, Phidain.”, falou Thaal, com o rosto sério e a voz profunda.
            “Eu nunca quis colocar vocês em risco. Foi tudo por causa... de um erro muito grave que cometi.”, começou ele, respirando fundo. “Eu me aliei a pessoas erradas no passado, bem antes do Culto do Dragão se tornar o que virou. Eu era um ladino, como você, Askáth. E modéstia à parte, eu era muito bom.”
            O clima de espanto entre eles foi quase palpável.
            “Então, o líder da guilda resolveu nos afiliar ao Culto. Eu não queria ir, eu juro para vocês que eu não queria. Um dia, me mandaram matar mais alguns desertores. Vejam, eu era um assassino, e eu era muito bom. Por favor... por favor me perdoem...”, disse Phidain numa voz tremida.
            “Continue”, respondeu Navere, com a voz seca.
            “Então, depois dessa missão eu... eu me arrependi de tudo. Percebi que o Culto não poderia ser bom e resolvi fugir. Levei comigo o filho dos dois que matei, morto, nos meus braços. Ele morreu por engano... não sabia que tinha uma criança lá...”
            “Por que você levou o corpo?”, perguntou Askáth.
            “Porque não conseguiria dormir nunca mais se não tentasse. A morte daquele menino foi causada por uma magia que o próprio pai dele conjurou, mas que estava destinada a mim, que os atacava sob seu próprio teto. Eu sou um monstro, um monstro...”. Phidain parecia estar perdido em remorso. Seus olhos marejados olharam diretamente para Navere. “Levei o menino para um templo, onde me disseram que uma pequena fortuna era necessária para revivê-lo, mas que seria possível. Sabia exatamente onde encontrar este dinheiro. Então, fui até a guilda novamente, levando as cabeças dos pais do garoto. Voltei até a casa deles para decepá-las, eu... eu precisava de uma prova...”. Phidain desabou em lágrimas. Não parecia capaz de continuar.
            “Por favor, continue. Precisamos saber. Temos esse direito”, disse Thaal.
            “Eu demonstrei que havia cumprido a missão. Na sala do tesouro, matei os dois guardas que contavam o dinheiro que a guilda estava juntando para o Culto e roubei tudo o que podia. Saí dali o mais rápido que pude, levei as moedas ao templo e o garoto foi revivido. ”, continuou Phidain, tentando se acalmar.”
            “O que você fez com o menino? Para onde ele foi, depois que você matou seus pais e decepou suas cabeças?”, perguntou Navere. Os olhos de Phidain demonstraram dor profunda, principalmente pela pergunta ter vindo de Navere.
            “Ele... não se lembrava de nada... então eu... eu... menti para ele. Contei que ele havia batido a cabeça ao tentar me roubar. Disse que... disse que eu o perdoava e que iria ensiná-lo a ser uma pessoa melhor. Disse que tinha o ouvido cantar e sua voz era linda.”
            Navere parecia profundamente estarrecido. Não esperava de forma alguma que a história de Phidain fosse se revelar desta forma. Não achava que sua vida tivesse sido diferente do que imaginava, um menino de rua abandonado pela mãe prostituta, que vivia fazendo pequenos truques, furtos e traquinagens.
            “Phidain...”, foi tudo o que conseguiu dizer, antes que suas pernas o fizessem se levantar subitamente. Como se não controlasse sua linguagem corporal, levou às mãos à boca e saiu da roda da fogueira a passos largos.
            “Espere, Navere... me perdoe, me perdoe!”, gritou Phidain, se levantando e tentando seguir o bardo. Thaal o segurou pelo braço e o fez sentar novamente.
            “Dê um tempo a ele. Sua história foi demais para ele, e quase para nós também. Prossiga. Dê a Navere tempo para que compreenda a dimensão de tudo o que você falou.”
            “Daquele dia em diante, me dediquei apenas à música, que sempre fora minha paixão, mesmo nos tempos da ladinagem. Desenvolvi a magia e me tornei um bardo profissional. Por medo que Navere se tornasse o que fui, o levei junto para a música e o treinei o melhor que pude. Satisfiz com mentiras a necessidade de conhecimento sobre seu próprio passado, dizendo que o criava por pena, que ele não tinha pais, que tinha sido abandonado. Jamais... jamais poderia assumir que eu tinha causado a morte daquele casal que apenas havia percebido a verdadeira face do Culto e tentava fugir para proteger a cria.” O bardo parecia cheio de pesar, falava baixo. Sua voz fina e anasalada de halfling, normalmente carregada de alegria, não remetia ao bardo que conheceram. “Depois de alguns anos, encontrei Siana e a tomei como aprendiz da mesma forma.”
            “Certo. Linda história. E os Amlugnehtar? Nós sabemos que a culpa foi sua. Desmond achou o pergaminho com as suas ordens na sua casa, quando foi confrontá-lo. Ele nos mostrou.”, disse Askáth, firme e apressadamente.
            “Eu não sei... eu estava sendo chantageado pelos Illithids, que descobriram meu paradeiro e ameaçaram contar para o remanescente do Culto sobre meu roubo e deserção. Consegui me safar por algum tempo das demandas deles, mas acabaram por sequestrar Navere e Siana e tive que cumprir o que pediram. A única coisa que me pediram foi para plantar uma pedra num canto específico da Taverna. Se eu fizesse isso, poderia buscar meus pupilos. E foi assim que eu os encontrei, quase mortos, sendo sugados pelo Illithid que matei. Ouvi vocês chegando e saí, com medo de ser descoberto. Esperei escondido do lado de fora, até que vocês saíram com Navere e Siana carregados.”
            “Mas ONDE ESTÃO ELES?!”, exaltou-se Askáth. “ESTOU CANSADO DESSE SEU FALATÓRIO!”, continuou. Perdemos Siana, Desmond e todos os Amlugnehtar por sua culpa!
            “Eu não sei.”
            Desta vez, foi Askáth quem levantou e pôs-se a caminhar com passos firmes, demonstrando raiva. Alcançou Navere e começaram a conversar em voz baixa.  Os outros permaneceram em silêncio por algum tempo, até que Askáth gritou mais uma vez, agora, com Navere. “EU NÃO QUERO SABER! A CULPA FOI DESSE HALFLING!”.
Mais algumas frases inaudíveis e foi a vez de Navere se exaltar. “VOCÊ ACHA QUE EU NÃO SEI DISSO? E SIANA? PERDEMOS SIANA, E AGORA ELA ESTÁ MORTA!”
Thaal olhou para Phidain, que apertou os olhos e abaixou a cabeça.
“Acho melhor deixarmos o resto da conversa para amanhã. Você vai ter que seguir conosco. É o mínimo que pode fazer para pagar suas dívidas com Navere. E Desmond, quando o encontrarmos. ”, disse Thaal.
“Foi para isso que vim até aqui”, respondeu Phidain, humildemente.
Deitaram em seus sacos de dormir. Askáth e Navere continuaram conversando por meia hora depois que os outros já estavam deitados, e acabaram tomando o primeiro turno de vigia para si.  
Na manhã seguinte, o céu acinzentado os acordou com a parca luminosidade de Shadowfell. Enquanto eles juntavam os aparatos do acampamento, Phidain observava uma pequena pedra avermelhada que tirou do bolso.
“Temos mais muito tempo de viagem. Mais de dois meses.” Os três se entreolharam assustados com a previsão, mas não demonstraram verbalmente o espanto. “Vejo que suas provisões são escassas e de má qualidade. Não se preocupem, eu estou preparado. A seis horas daqui há uma cabana, com tudo o que precisamos para seguirmos viagem.”, anunciou Phidain.
“E como você sabe disso? Já veio aqui também?”, perguntou Askáth. “Parece que você está em todos os lugares, é uma coisa impressionante”. A voz do ladino soava sarcástica e seca.
“O suficiente. Precisamos estar bem preparados e descansados para o que virá pela frente.”
Nas horas seguintes seguiram pela estrada vazia e abandonada. Navere seguia sozinho, cabisbaixo, por último. Os poucos rastros que o grupo que levava Desmond havia deixado foram apagados por uma chuva fina e gelada que os acompanhou boa parte do caminho. O chão de terra preta com pedriscos esparsos se tornou uma lama espessa que engolia os passos deles com voracidade. A viagem até a cabana seria completada até metade do dia, mas acabaram alcançando-a apenas no começo da noite. A chuva já havia parado há algumas horas, mas o ar permanecia gelado e úmido.
Ao avistarem a cabana, depois de uma curva a mais ou menos meio quilômetro de distância, se surpreenderam com as luzes acesas do lado de dentro. A luminosidade era azulada, característica da iluminação mágica.
Alguns minutos depois, antes mesmo de tentarem alcançar a porta, esta se abriu espontaneamente.

“Oi, pessoal”, disse Siana. 

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