quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

37 - A maça, o rubi e a obsidiana

            Siana largou o pergaminho no chão. Ao terminar de recitar os versos em runas antigas da magia, a escrita mágica desapareceu, deixando apenas marcas queimadas no lugar. Era um pergaminho muito bem feito, raríssimo, de uma magia muito poderosa.
            A maga era jovem e inexperiente. Mesmo assim, esta era uma magia tão rara que mesmo os magos mais poderosos ainda se sentiriam sobrepujados pelo poder que ela podia sentir. O tempo havia parado, e ela estava livre.
            Siana correu para a passagem de onde tinha vindo a dracolich e os outros monstros. Pelo mapa, sabia exatamente onde deveria ir. E sabia também que teria de agir muito rapidamente, porque as ações dela seriam extremamente limitadas pela duração da magia.
            Entrando na sala indicada pelo mapa, conseguiu ver o que buscava assim que passou pela porta. Em cima de um pedestal, ao lado de outras gemas gigantescas, estava o rubi que buscava. A gema brilhava pulsando, viva. Emitia calor e um tamborilar baixo, constante, como o ronronar de um gato. Ao lado, em outros pedestais, outras gemas descansavam imóveis, sem brilho. Não pareciam ainda ter recebido a essência de nenhum dragão.
            Siana, enfiando a mão na bolsa que carregava, retirou uma maça pesada, com detalhes em ouro. Empunhando-a acima da cabeça, golpeou fortemente o rubi, estilhaçando-o em infinitos cacos pontiagudos. O tempo voltou a passar normalmente assim que Siana atingira a superfície da gema. Ao redor de Siana, a poeira recomeçou a cair como antes, e a batalha na sala anterior voltou a produzir sons ensurdecedores. À percepção dos outros, Siana tinha desaparecido.
Phidain, ao ver que a maga não estava mais no lugar para onde estava olhando, sabia que esta era sua deixa, como o combinado. Imediatamente, com a rapidez de quem tinha sido um ladino muito experiente, empunhou a besta e atirou a única seta encantada que conseguira. A seta, por causa do ótimo posicionamento de Phidain, acertou em cheio o olho direito da fera. O dragão putrefato urrou mais uma vez, desta vez demonstrando dor. A outra órbita vazia da dracolich fazia com que o monstro parecesse cego, mas ela não parecia ser incapaz de enxergar. Virou-se violentamente, fitando Phidain diretamente, com o focinho a poucos centímetros do rosto do bardo. O olho vazio e o olho perfurado ainda eram capazes de transmitir a fúria do dragão vermelho morto. Em apenas uma fração de segundo, quando Phidain começava a contrair suas pernas para fugir, a bocarra pavorosa se abriu. Junto ao urro veio um sopro de temperaturas impensáveis, que envolveu Phidain em labaredas mortais. Siana ainda abaixava a maça e os cacos ainda caíam no chão quando Phidain tragou a chama, na tentativa nula de gritar.
            Alguns segundos depois, Siana alcançou a porta e começou a correr de volta ao salão, já com o segundo pergaminho nas mãos. A enorme besta pareceu perceber que sua essência tinha sido dissipada da filactéria, e urrou mais uma vez, enfurecido. O ferimento no olho deixava escorrer sangue negro apodrecido, tornando a aparência do monstro ainda mais aterradora.
           
            Siana chegou à passagem altíssima por onde tinha saído do salão. Em vez do dragão morto vivo, a primeira coisa que avistou foi um pequeno corpo carbonizado, exatamente onde Phidain havia se posicionado quando ela saíra.
            Levantou os olhos e alcançou o rosto do dragão, que a havia visto. A dracolich iniciou marcha enfurecida em direção a ela. Siana teve tempo de ler o pergaminho que já estava em sua mão, com apenas uma palavra em língua antiga estava escrita nele a tinta de ouro e desenhos decorativos intrincados nas margens. A única palavra, dita com pesar, por olhos que começavam a se encher de lágrimas observando diretamente o monstro que avançava ferozmente em sua direção pareceu funcionar imediatamente. Sem nenhum aviso, mais nenhum urro, nenhuma resistência, a dracolich simplesmente caiu com os músculos completamente relaxados. A inércia provocada pela velocidade em que se movia fez com que o corpanzil cavasse uma trincheira até que o movimento cessasse, deixando uma série de pedaços de carne apodrecida pela extensão do buraco.
            Se o dragão vivesse e tivesse ainda pupilas, elas estariam dilatadas, imóveis.
            O pergaminho caiu das mãos de Siana, que não conseguia reagir. Deixou seu corpo cair de joelhos, com os olhos ainda fixos no pequeno monte de carne queimada que ela tinha certeza que havia sido Phidain poucos momentos antes.
Os Amlugnehtar e os outros recomeçaram o ataque aos illithids, ao beholder e aos mortos vivos, correndo em direção a eles. Alguns momentos depois, Nyx conseguiu se recuperar o suficiente para se levantar. Criaturas morriam em grandes números nas mãos dos Amlugnehtar e dos outros. Askáth recebeu um largo ferimento no abdômen, mas conseguiu estancar o sangue com as mãos. Sentou-se ao lado de Nyx e esperou por ajuda. Quando Orsin percebeu, correu até ele e fechou o rasgo utilizando sua poderosa magia divina de cura.  Thaal curou ainda em batalha um largo ferimento na perna de Randal, que esguichava sangue.
Siana se levantou, tentando recompor-se e terminar de executar sua parte no plano. De sua bolsa retirou o último pergaminho. Leu em voz alta as pequenas rimas rúnicas. O chão começou a tremer furiosamente, enquanto gigantescos pedaços de rocha flamejante atingiam os grupos de inimigos, esmagando-os e carbonizando-os. Os meteoros pareciam sair do teto do salão, desafiando o senso comum. Por algum motivo provavelmente mágico, os enormes pedregulhos em chamas não atingiram nenhum dos companheiros de Siana, que apenas testemunharam a batalha que travavam terminar abruptamente.
O silêncio que se seguiu era quebrado apenas pelo som das chamas que ainda queimavam nos meteoros caídos. O ambiente estava muito iluminado pela luz alaranjada que vinha das brasas e das chamas produzidas pela magia, tornando a visão da enorme dracolich morta ainda mais sobrenatural. Siana caminhou silenciosamente até o corpo de Phidain, passando por todos os outros no caminho. Ninguém proferiu palavra por muito tempo, apenas sons de respirações ofegantes no ar cheio de fumaça e cheiro de carne queimada. Os mortos vivos que cozinhavam nas chamas produziam um odor insuportável, quase tóxico, pela queima de sua carne podre.
Siana ignorou a dracolich morta, agachando-se ao lado do antigo mestre. Seus restos estavam fumegantes e muito quentes, com partes ainda em brasa. A forma era vagamente humanoide, muito menor do que o halfling havia sido em vida. A maga permitiu-se chorar, soluçante.


Juntos, fizeram o caminho de volta, utilizando a passagem das sombras que ficava a alguns dias de viagem. Todos falaram muito pouco. Siana levava o corpo de Phidain num disco flutuante mágico, enrolado em um cobertor.
Quando alcançaram Águas Profundas finalmente, Siana foi calorosamente recebida pelos pais. Sepultaram Phidain em uma cerimônia simples, que teve seu silêncio quebrado apenas pelas curtas palavras de Navere, finalmente perdoando o mestre morto.
Os Amlugnehtar retomaram a Taverna, insistindo que os outros cinco sempre seriam bem-vindos. A reputação lendária dos Amlugnehtar não foi abalada, mas não receberam nenhum reconhecimento por terem erradicado o Culto em Shadowfell. Em Águas Profundas, muito tempo havia se passado e as atividades do Culto não haviam sido expressivas o suficiente para que fossem notados.
Siana, Askáth, Navere, Randal e Thaal continuaram absolutamente desconhecidos, com apenas a certeza de que aquele tinha sido apenas o primeiro dos horrores que enfrentariam juntos dali para a frente.

FIM

Epílogo

            Enquanto o pequeno gnomo se escondia, ninguém notara. Seu corpo frágil fora imobilizado pelo tempo parado, mesmo que ele não tenha percebido; seus pequenos pés foram sacudidos pelo enorme corpo da dracolich atingindo o chão durante a morte súbita à qual foi submetida; sua compleição pálida fora iluminada pelas chamas dos meteoros.
            Durante tudo isso, o gnomo permanecera absolutamente encolhido, dentro de uma pequena rachadura na parede ao lado da grande passagem.
            Quando tudo terminara, observou os atacantes irem embora lentamente, carregando o corpo do halfling que matara Vellath, o dragão morto-vivo. Finalmente, pôde se esgueirar para fora da pequena rachadura. Conseguiu observar o campo de batalha, o grande salão que tinha servido de palco para a transformação do dragão e que teria abrigado outros sacrifícios, se o Culto não tivesse sido obliterado pelos invasores.
            Apesar de sua aparência, o gnomo era uma criatura extremamente inteligente, que havia sido cuidadosamente treinado para aquele momento. Não acreditava que teria que aplicar seus conhecimentos tão cedo, mas Nabara deixara sua missão detalhada. Nabara aceitara sua natureza svirfneblin como ninguém jamais havia, e respeitara seus costumes e habilidades. O gnomo das profundezas costumava esconder sua cabeça sem cabelos sob um pequeno manto negro. Ao lado de Nabara, suas habilidades necromantes se desenvolveram brilhantemente, e ela havia confiado a ele a mais importante das tarefas.
            Caminhando até o corpo da mestra morta, tentou levantá-la, mas não conseguiu. Mesmo o corpo leve da elfa era pesado demais para o gnomo. Decidiu começar ali mesmo o ritual.
            Sentou-se ao lado do corpo e por mais de duas horas proferiu uma série de rimas em uma língua morta. Se alguém estivesse ali e fosse capaz de compreender os versos alienígenas, teria ouvido cânticos de paz e vingança, de vida e morte, do valor do sangue e do conhecimento.
            De dentro do bolso costurado em seu manto, retirou uma obsidiana lapidada, perfeita e muito brilhante. Sua superfície lisa era negra arroxeada e quase gélida. Pousando a gema sobre o peito de Nabara, permaneceu produzindo as estrofes por mais duas horas.
            Ao final das longas rimas, uma fraca névoa escura emanou do peito de Nabara, penetrando a pedra como se esta sugasse o ar ao seu redor. A gema brilhou, deixando seu interior exposto, com um brilho arroxeado.

            O svirfneblin sorriu largamente quando Nabara abriu os olhos, com as pupilas completamente dilatadas.

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