quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

37 - A maça, o rubi e a obsidiana

            Siana largou o pergaminho no chão. Ao terminar de recitar os versos em runas antigas da magia, a escrita mágica desapareceu, deixando apenas marcas queimadas no lugar. Era um pergaminho muito bem feito, raríssimo, de uma magia muito poderosa.
            A maga era jovem e inexperiente. Mesmo assim, esta era uma magia tão rara que mesmo os magos mais poderosos ainda se sentiriam sobrepujados pelo poder que ela podia sentir. O tempo havia parado, e ela estava livre.
            Siana correu para a passagem de onde tinha vindo a dracolich e os outros monstros. Pelo mapa, sabia exatamente onde deveria ir. E sabia também que teria de agir muito rapidamente, porque as ações dela seriam extremamente limitadas pela duração da magia.
            Entrando na sala indicada pelo mapa, conseguiu ver o que buscava assim que passou pela porta. Em cima de um pedestal, ao lado de outras gemas gigantescas, estava o rubi que buscava. A gema brilhava pulsando, viva. Emitia calor e um tamborilar baixo, constante, como o ronronar de um gato. Ao lado, em outros pedestais, outras gemas descansavam imóveis, sem brilho. Não pareciam ainda ter recebido a essência de nenhum dragão.
            Siana, enfiando a mão na bolsa que carregava, retirou uma maça pesada, com detalhes em ouro. Empunhando-a acima da cabeça, golpeou fortemente o rubi, estilhaçando-o em infinitos cacos pontiagudos. O tempo voltou a passar normalmente assim que Siana atingira a superfície da gema. Ao redor de Siana, a poeira recomeçou a cair como antes, e a batalha na sala anterior voltou a produzir sons ensurdecedores. À percepção dos outros, Siana tinha desaparecido.
Phidain, ao ver que a maga não estava mais no lugar para onde estava olhando, sabia que esta era sua deixa, como o combinado. Imediatamente, com a rapidez de quem tinha sido um ladino muito experiente, empunhou a besta e atirou a única seta encantada que conseguira. A seta, por causa do ótimo posicionamento de Phidain, acertou em cheio o olho direito da fera. O dragão putrefato urrou mais uma vez, desta vez demonstrando dor. A outra órbita vazia da dracolich fazia com que o monstro parecesse cego, mas ela não parecia ser incapaz de enxergar. Virou-se violentamente, fitando Phidain diretamente, com o focinho a poucos centímetros do rosto do bardo. O olho vazio e o olho perfurado ainda eram capazes de transmitir a fúria do dragão vermelho morto. Em apenas uma fração de segundo, quando Phidain começava a contrair suas pernas para fugir, a bocarra pavorosa se abriu. Junto ao urro veio um sopro de temperaturas impensáveis, que envolveu Phidain em labaredas mortais. Siana ainda abaixava a maça e os cacos ainda caíam no chão quando Phidain tragou a chama, na tentativa nula de gritar.
            Alguns segundos depois, Siana alcançou a porta e começou a correr de volta ao salão, já com o segundo pergaminho nas mãos. A enorme besta pareceu perceber que sua essência tinha sido dissipada da filactéria, e urrou mais uma vez, enfurecido. O ferimento no olho deixava escorrer sangue negro apodrecido, tornando a aparência do monstro ainda mais aterradora.
           
            Siana chegou à passagem altíssima por onde tinha saído do salão. Em vez do dragão morto vivo, a primeira coisa que avistou foi um pequeno corpo carbonizado, exatamente onde Phidain havia se posicionado quando ela saíra.
            Levantou os olhos e alcançou o rosto do dragão, que a havia visto. A dracolich iniciou marcha enfurecida em direção a ela. Siana teve tempo de ler o pergaminho que já estava em sua mão, com apenas uma palavra em língua antiga estava escrita nele a tinta de ouro e desenhos decorativos intrincados nas margens. A única palavra, dita com pesar, por olhos que começavam a se encher de lágrimas observando diretamente o monstro que avançava ferozmente em sua direção pareceu funcionar imediatamente. Sem nenhum aviso, mais nenhum urro, nenhuma resistência, a dracolich simplesmente caiu com os músculos completamente relaxados. A inércia provocada pela velocidade em que se movia fez com que o corpanzil cavasse uma trincheira até que o movimento cessasse, deixando uma série de pedaços de carne apodrecida pela extensão do buraco.
            Se o dragão vivesse e tivesse ainda pupilas, elas estariam dilatadas, imóveis.
            O pergaminho caiu das mãos de Siana, que não conseguia reagir. Deixou seu corpo cair de joelhos, com os olhos ainda fixos no pequeno monte de carne queimada que ela tinha certeza que havia sido Phidain poucos momentos antes.
Os Amlugnehtar e os outros recomeçaram o ataque aos illithids, ao beholder e aos mortos vivos, correndo em direção a eles. Alguns momentos depois, Nyx conseguiu se recuperar o suficiente para se levantar. Criaturas morriam em grandes números nas mãos dos Amlugnehtar e dos outros. Askáth recebeu um largo ferimento no abdômen, mas conseguiu estancar o sangue com as mãos. Sentou-se ao lado de Nyx e esperou por ajuda. Quando Orsin percebeu, correu até ele e fechou o rasgo utilizando sua poderosa magia divina de cura.  Thaal curou ainda em batalha um largo ferimento na perna de Randal, que esguichava sangue.
Siana se levantou, tentando recompor-se e terminar de executar sua parte no plano. De sua bolsa retirou o último pergaminho. Leu em voz alta as pequenas rimas rúnicas. O chão começou a tremer furiosamente, enquanto gigantescos pedaços de rocha flamejante atingiam os grupos de inimigos, esmagando-os e carbonizando-os. Os meteoros pareciam sair do teto do salão, desafiando o senso comum. Por algum motivo provavelmente mágico, os enormes pedregulhos em chamas não atingiram nenhum dos companheiros de Siana, que apenas testemunharam a batalha que travavam terminar abruptamente.
O silêncio que se seguiu era quebrado apenas pelo som das chamas que ainda queimavam nos meteoros caídos. O ambiente estava muito iluminado pela luz alaranjada que vinha das brasas e das chamas produzidas pela magia, tornando a visão da enorme dracolich morta ainda mais sobrenatural. Siana caminhou silenciosamente até o corpo de Phidain, passando por todos os outros no caminho. Ninguém proferiu palavra por muito tempo, apenas sons de respirações ofegantes no ar cheio de fumaça e cheiro de carne queimada. Os mortos vivos que cozinhavam nas chamas produziam um odor insuportável, quase tóxico, pela queima de sua carne podre.
Siana ignorou a dracolich morta, agachando-se ao lado do antigo mestre. Seus restos estavam fumegantes e muito quentes, com partes ainda em brasa. A forma era vagamente humanoide, muito menor do que o halfling havia sido em vida. A maga permitiu-se chorar, soluçante.


Juntos, fizeram o caminho de volta, utilizando a passagem das sombras que ficava a alguns dias de viagem. Todos falaram muito pouco. Siana levava o corpo de Phidain num disco flutuante mágico, enrolado em um cobertor.
Quando alcançaram Águas Profundas finalmente, Siana foi calorosamente recebida pelos pais. Sepultaram Phidain em uma cerimônia simples, que teve seu silêncio quebrado apenas pelas curtas palavras de Navere, finalmente perdoando o mestre morto.
Os Amlugnehtar retomaram a Taverna, insistindo que os outros cinco sempre seriam bem-vindos. A reputação lendária dos Amlugnehtar não foi abalada, mas não receberam nenhum reconhecimento por terem erradicado o Culto em Shadowfell. Em Águas Profundas, muito tempo havia se passado e as atividades do Culto não haviam sido expressivas o suficiente para que fossem notados.
Siana, Askáth, Navere, Randal e Thaal continuaram absolutamente desconhecidos, com apenas a certeza de que aquele tinha sido apenas o primeiro dos horrores que enfrentariam juntos dali para a frente.

FIM

Epílogo

            Enquanto o pequeno gnomo se escondia, ninguém notara. Seu corpo frágil fora imobilizado pelo tempo parado, mesmo que ele não tenha percebido; seus pequenos pés foram sacudidos pelo enorme corpo da dracolich atingindo o chão durante a morte súbita à qual foi submetida; sua compleição pálida fora iluminada pelas chamas dos meteoros.
            Durante tudo isso, o gnomo permanecera absolutamente encolhido, dentro de uma pequena rachadura na parede ao lado da grande passagem.
            Quando tudo terminara, observou os atacantes irem embora lentamente, carregando o corpo do halfling que matara Vellath, o dragão morto-vivo. Finalmente, pôde se esgueirar para fora da pequena rachadura. Conseguiu observar o campo de batalha, o grande salão que tinha servido de palco para a transformação do dragão e que teria abrigado outros sacrifícios, se o Culto não tivesse sido obliterado pelos invasores.
            Apesar de sua aparência, o gnomo era uma criatura extremamente inteligente, que havia sido cuidadosamente treinado para aquele momento. Não acreditava que teria que aplicar seus conhecimentos tão cedo, mas Nabara deixara sua missão detalhada. Nabara aceitara sua natureza svirfneblin como ninguém jamais havia, e respeitara seus costumes e habilidades. O gnomo das profundezas costumava esconder sua cabeça sem cabelos sob um pequeno manto negro. Ao lado de Nabara, suas habilidades necromantes se desenvolveram brilhantemente, e ela havia confiado a ele a mais importante das tarefas.
            Caminhando até o corpo da mestra morta, tentou levantá-la, mas não conseguiu. Mesmo o corpo leve da elfa era pesado demais para o gnomo. Decidiu começar ali mesmo o ritual.
            Sentou-se ao lado do corpo e por mais de duas horas proferiu uma série de rimas em uma língua morta. Se alguém estivesse ali e fosse capaz de compreender os versos alienígenas, teria ouvido cânticos de paz e vingança, de vida e morte, do valor do sangue e do conhecimento.
            De dentro do bolso costurado em seu manto, retirou uma obsidiana lapidada, perfeita e muito brilhante. Sua superfície lisa era negra arroxeada e quase gélida. Pousando a gema sobre o peito de Nabara, permaneceu produzindo as estrofes por mais duas horas.
            Ao final das longas rimas, uma fraca névoa escura emanou do peito de Nabara, penetrando a pedra como se esta sugasse o ar ao seu redor. A gema brilhou, deixando seu interior exposto, com um brilho arroxeado.

            O svirfneblin sorriu largamente quando Nabara abriu os olhos, com as pupilas completamente dilatadas.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

36 - Desatam-se as amarras

            Nyx recebeu ali mesmo os cuidados de Thaal e Orsin. Assim que fora retirada da parede, a perna esfolada começara a sangrar mais. Orsin, o primeiro a ser descido da prisão vertical, não hesitou. O paladino anão dispensou magia e cuidados para si, simplesmente esfregando as mãos onde as amarras estiveram antes e pondo-se a trabalhar. Nyx apenas recobrou a consciência quando Thaal e Orsin produziram magias suficientes para que sua perna recobrasse a pele. Seu corpo nu fora coberto com um manto que Siana vestia. Observava suas novas e extremamente extensas cicatrizes em silêncio. Siana percebeu que mesmo o rosto impassível de Nyx demonstrava medo e desespero, principalmente quando seus olhos alcançaram o pequeno amontoado de pele de sua perna que tinha ficado no chão.
            Orsin, ao ter certeza que Nyx estava fora de perigo, dirigiu-se a Phalos. O bárbaro se recusava a abrir a boca. Askáth e Navere permaneciam ao seu lado, tentando convencê-lo a deixar que Orsin e Thaal avaliassem a extensão dos danos.
            Para Thaal, o processo de cura de todos era muito exaustivo, mas a oportunidade de trabalhar ao lado de alguém tão talentoso como Orsin era de valor inestimável. Quando sua mente se enevoava de cansaço, a benevolência nos olhos e nos gestos do paladino ferido o revigoravam.
            Phalos ainda não obedecia, e Orsin decidiu que ele precisaria de algum tempo. Dirigiu-se a Sonam, enquanto Thaal permaneceu ao lado de Phalos.
            O monge, assim que fora libertado das amarras, recobrou a consciência. Em silêncio, arrancou um pedaço das roupas em frangalhos que haviam restado em seu corpo, enrolou em uma bandagem e amarrou sobre suas órbitas vazias. Seus olhos arrancados foram postos em um canto da sala. À frente deles, Sonam permanecia em posição de meditação.
            Orsin tinha pressa para curar Sonam. Assim que o encontrara, percebera que seus olhos tinham sido arrancados há mais tempo do que as mutilações com os outros, e que as chances de restauração eram muito pequenas. Não se lembrava de quase nada do que acontecera antes de serem encontrados. Não presenciara as agressões com os outros. Suspeitava que os olhos de Sonam tivessem sido arrancados de forma ritualística.
            “Sonam... eu sinto muito”, disse Orsin.
            “Esse é meu destino, paladino. Não se sinta mal.”
            “Ainda existe uma chance... mas você precisa tirá-los da terra, Sonam... a cada minuto, as chances de você recobrar sua visão são cada vez menores...”
            “Eu não recuperarei a visão, Orsin. Este é meu destino. Meu caminho agora será trilhado na escuridão física e na iluminação da alma. Vá, cuide dos outros. Eu estou em paz.”
            Orsin não sentiu necessidade de prolongar a conversa. As chances de conseguir recuperar os olhos do monge eram realmente tão pequenas que talvez fosse menos nocivo que ele não cultivasse falsas esperanças. O paladino desejou internamente que o processo de aceitação da cegueira viesse com calma, constante e com sucesso.
            Voltando a Phalos, Orsin percebera que Thaal, enquanto ele trocara palavras com Sonam, havia conseguido que o bárbaro finalmente abrisse a boca. Examinando mais de perto, o paladino percebeu que os dentes haviam sido arrancados por completo, com raiz e tudo, um a um. Certamente, Phalos passara por um sofrimento sem tamanho. Os dentes não haviam sido perfurados para a confecção tosca do colar, apenas enrolados em um barbante sangrento.
            “Sua boca ainda está sangrando, Phalos. Posso colocar seus dentes de volta. Infelizmente, isso vai ser muito dolorido. Você quer que eu faça assim mesmo?”
            Phalos não tentou produzir som, mas acenou com a cabeça, abrindo mais a boca. Enquanto Thaal desenrolava os dentes do colar, um por um, Orsin foi recolocando-os nos buracos da gengiva do bárbaro. A anatomia diferente do draconato era desafiadora para Orsin, mas ele conseguiu, como se montasse um quebra-cabeças, encaixar todos os dentes exatamente onde estavam antes. Utilizando-se de magia divina complexa e poderosa, restaurou a boca completamente, deixando apenas algumas cicatrizes para trás.
            Phalos agradeceu intensamente o amigo paladino, abraçando-o emocionalmente. Sua alegria durou apenas alguns segundos, quando percebeu que todos haviam sido mutilados e que Sonam, ao contrário dos outros, não ficaria tão bem assim.
            Sonam levantou-se depois de quase duas horas de meditação. Nyx ainda não conversava. Phalos permanecia cabisbaixo. Orsin finalmente estancara seu próprio sangue do ferimento no peito. De todos, era o menos grave. O paladino suspeitava que provavelmente aquele tinha sido só o primeiro ritual.  Ele fora levado de sua cela na mesma hora que Phalos, mas sua mutilação fora conduzida em uma sala separada. Sozinho com apenas um cultista, suas vestes foram arrancadas e com uma adaga pouco afiada, aquele dragão fora desenhado.
            “Eu sinto que podemos ir”, disse Sonam. Seu tom de voz estava diferente. Outrora calado e falando baixo, o monge parecia mais certo de sua própria opinião e participação. A cabeça permanecia erguida.
            “Eu acho que é uma boa ideia. Estamos muito próximos de conseguir finalmente acabar com o Culto. Estão todos bem? Nyx? Você consegue andar?”, perguntou Siana.
            “Estou pronta”, disse ela, finalmente falando depois de tanto tempo em silêncio. Ao contrário de Sonam, Nyx parecia muito abalada. Teve dificuldade em se erguer, manifestando medo de apoiar a perna esfolada no chão. A pele que se formara por cima dos músculos expostos era muito branca, brilhante, como a que se forma depois de uma queimadura extensa. Não era mais uma bela perna, como outrora, mas parecia funcional. Orsin parecia demonstrar pesar, como se se sentisse culpado por não ter conseguido restaurar a beleza de Nyx da mesma forma como restaurou a saúde.
            Todos eles se juntaram. Phidain, Siana, Navere, Thaal, Randal e Askáth, e os Amlugnehtar mais uma vez reunidos, Orsin, Phalos, Desmond, Nyx e Sonam.
            Avançaram em fila, liderados por Siana, que havia estudado o caminho. A sala onde estavam presos os Amlugnehtar parecia ser uma indicada por um “T” no mapa que Siana possuía. A única porta que a sala continha parecia levar a um corredor longo.
            Tentando não se desviar muito do caminho que haviam estudado, entraram em uma das portas no corredor, acertando exatamente o ponto central do caminho que percorreriam dentro da construção. Em várias salas pelas quais atravessaram haviam depósitos de recursos, como comida, valores e até pessoas. Passaram por um grande ambiente repleto de gaiolas grandes, cada uma contendo cerca de dez prisioneiros emaciados, subnutridos e muito pálidos. Seus rostos demonstravam medo profundo e aceitação da morte iminente. Prometeram a todos que voltariam para libertá-los assim que conseguissem parar Nabara e o Culto.
            Siana insistiu para que todos fossem libertados naquele momento, mas Nyx pontuou que não poderiam arcar com o risco de os prisioneiros se comportarem de forma errática, por medo, e alertarem o Culto de alguma forma.
            Durante o trajeto, Desmond teve que assassinar seis guardas. De todos eles, o ladino cortou as gargantas de surpresa, atacando-os por trás sorrateiramente. Os outros não eram mais capazes de sentir mais o choque ao assistir outras pessoas sendo mortas. É como se a vida desses guardas fosse apenas dano colateral, como um arranhão ao fazer um trabalho braçal.
            Sonam se locomovia com fluidez e não parecia estar particularmente abalado pela perda dos olhos. Assim como todos os outros, ele não iniciava conversas e apenas respondia o estritamente necessário. Um olhar desatento não perceberia que o monge tinha uma faixa cobrindo as órbitas vazias.
            Ultrapassaram todas as salas, obstáculos e desvios até chegarem ao salão onde os batedores haviam testemunhado o sacrifício ritual do dragão. Uma grande porta em madeira trabalhada fechava a passagem. A porta parecia nova, e tinha, em baixo relevo, a representação de Tiamat. Nyx sentiu um calafrio que ascendeu da base de sua coluna até sua nuca. Decidiram abrir a porta de súbito.
            O enorme salão correspondia às descrições compostas pelos batedores. O salão tinha o pé direito muito alto e as paredes pouco trabalhadas, parecendo feitas de pedra nua. Ao centro, uma mesa de pedra, como um altar, fazia as vezes de mesa ritualística. A superfície estava suspensa por pedras colocadas como pés da mesa. As descrições não mencionavam nenhum altar, portanto, presumia-se que era uma adição recente. Antes, naquele espaço, o dragão havia sido acomodado durante o ritual de transformação.
            Dentro do salão, sobre a mesa, havia um corpo provavelmente humano. Ao redor da mesa, vários mortos vivos se enfileiravam. À frente deles, diretamente atrás da mesa, estava a elfa dos cabelos muito negros que imaginavam ser Nabara, a atual líder do culto.
            “Afinal, vocês chegaram cedo!”, disse ela.
            Nenhum deles foi capaz de responder.
            “Venham, vamos participar da festa. Tragam nossos anfitriões, nossos convidados de honra chegaram!”, continuou Nabara.
            Um dos mortos vivos atravessou uma grande passagem escura, de mais de dez metros de altura. Enquanto Nabara observava o morto vivo se distanciando, a parte lateral do seu rosto ficara exposta. Nyx não hesitou. De suas mãos, um raio de luz avermelhada e escura, parecendo ser feita de calor puro, atingiu Nabara na mandíbula, pescoço e bochecha direita. O ferimento fumegante deixara expostos ossos, tendões e músculos da face da elfa.
            A elfa emitiu um som agudo e virou-se imediatamente. Nyx foi atingida por energia necrótica concentrada, diretamente no peito. Seu corpo, normalmente pálido, transcendeu a palidez e tornou-se tão branco quanto algodão. Seus olhos perderam o brilho. O ferimento de Nabara se fechava progressivamente enquanto ela mantinha o fluxo de energia, como se sugasse a vitalidade da feiticeira. Quando o feixe de energia finalmente cessou, o corpo de Nyx caiu inerte no chão.
            Ao contrário do que pretendia, Nabara cessou o feixe vampírico não porque seu ferimento havia se curado, mas porque outro lhe fora causado entre as costelas. Utilizando-se da distração causada por Nyx, Desmond se moveu rápida e furtivamente até Nabara, a atingindo pelas costas com a adaga entre as costelas.
            A concentração de Nabara perdeu-se com a dor lancinante, ainda pior do que a que Nyx lhe causara.
            Quando Nyx atacou Nabara, os mortos vivos reagiram. Askáth, Navere, Sonam e Orsin se encarregaram de mantê-los ocupados, acertando as cabeças com setas, flechas e ataques de espada. Sonam parecia seguro o suficiente para permear a pequena horda e acertar múltiplos ataques manuais letais nas cabeças e corpos decrépitos. Desviou de todos os ataques direcionados a ele, permanecendo ileso por ainda mais tempo do que costumava conseguir.
            Nabara perdeu o equilíbrio e deixou seu corpo flácido. Desmond retirou violentamente a adaga do tórax da elfa. Aproveitando a perda de controle de Nabara, Desmond a golpeou mais uma vez. O corpo terminou de cair, morto.
            Assim que Nabara atingiu o chão, de dentro da passagem escura um urro ensurdecedor foi emitido por mandíbulas profanas. Um enorme jato de fogo invadiu o salão, precedendo patas pesadas marchando enraivecidamente em direção a eles.
            O dragão vermelho irrompeu, soprando fogo para todos os lados. Como se estivesse completamente fora de controle, varria o chão com suas labaredas, queimando mortos vivos de seu exército tanto quanto os invasores. Atrás dele, seguiram cultistas, illithids e o próprio monstro que tinham visto na saída do templo, o beholder cego.
            O dragão abocanhou cegamente um punhado de mortos vivos que lutavam com Sonam. Mesmo cego, o monge conseguiu desviar da bocarra apodrecida do dragão, deixando que apenas seis mortos vivos fossem levados entre o dente. O dragão mastigou superficialmente duas ou três vezes, depois terminou de engolir os próprios soldados mortos vivos do culto.  A pele do monstro pendia em abas, pedaços de couro com escamas pendurados fracamente na carne em decomposição. A morte do dragão havia acontecido de forma ritual, mas é como se o processo de putrefação fosse comum, como o que atinge todos os animais. Uma parte do crânio estava exposta, deixando a face do dragão transformado em dracolich ainda mais feroz e desfigurada. Um de seus olhos estava ausente, com o crânio esbranquiçado insistindo em aparecer sob a pele friável. Quando o monstro fazia um movimento violento, pedaços de carne atingiam o chão e os combatentes. A cada ataque, os ossos do dragão tentavam se desprender da carne, como uma borboleta deixando seu casulo.
            Os illithids, o beholder e a dracolich partiram em direção dos Amlugnehtar.  Nyx ainda permanecia caída no chão, inerte. Orsin, continuava cortando cabeças em longas sequências de golpes certeiros, enquanto Sonam corria novamente para perto dos companheiros para protegê-los. Phalos, atacava com a boca recém regenerada, além de cravar a espada em peitos putrefatos de mortos vivos também em sequência memorável de acertos.
            Desmond correu, largando Nabara onde caíra. O reagrupamento era parte do plano. Siana havia desenhado cuidadosamente cada passo daquela batalha, então sabia que agora era a hora que deveriam finalmente acabar com a dracolich, os illithids e o beholder. O único que não se esforçava para se juntar aos outros era Phidain, que se locomovia furtivamente em direção à dracolich. Seus pés hábeis do bardo, outrora ladino, foram capazes de fazê-lo alcançar quase o espaço imediatamente à direita da enorme pata apodrecida do monstro.
            Quando viu todos os companheiros se agruparem ao redor dela, Siana abriu o pergaminho que segurava e leu as runas em voz alta. Enquanto lia, aproveitou uma vírgula para conferir o posicionamento de Phidain.
Imediatamente, após o fonema final da última palavra, o sopro da dracolich em direção aos invasores cessou, como se as chamas congelassem.  Projéteis, raios de energia mágica, correntes de vento pararam no ar. Ninguém respirava, nada se movia. Tudo estava absolutamente quieto, indiscutivelmente silencioso, imensuravelmente imóvel, da poeira do chão até o Plano por completo.

            Exceto Siana.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

35 - Névoa cor de pérola

            “Certo. Agora que nos contou sobre toda essa desgraça, o que faremos? Não consigo imaginar como poderíamos vencer Nabara, dracolichs, illithids, cultistas e toda aquela corja de coisas horrorosas que vimos nos últimos tempos”, disse Askáth.
            “Eu tenho isso”, respondeu Siana, “Garek preparou vários feitiços nestes pergaminhos aqui. Dêem uma olhada.”
            Curvaram-se mais sobre a mesa, onde a maga estendia alguns pergaminhos escritos em runas diversas. Ninguém pareceu entender muita coisa, exceto Navere, que reconheceu uma magia ou duas.
            “São feitiços muito poderosos, que podem nos dar uma chance. Não vou mentir para vocês, não vai ser nada fácil”, disse Phidain. O humor do halfling mudara completamente, se comparado ao que era quando sentou-se na taverna dos Amlugnehtar com Siana para começar a pesquisa com o grupo de heróis. Navere, por outro lado, lembra de Phidain como um bardo mais calado, pois desde a infância, quando se viu sob os cuidados de Phidain, notara que o bardo carregava um semblante sombrio grande parte das vezes. Depois de Navere sair da casa do mestre bardo, Phidain fora surpreendido por Siana, de espírito leve e determinado. A benevolência inerente a ela tornou Phidain menos amargo, mais comunicativo e, obviamente, um bardo de mais sucesso.
            Siana levantou-se e foi até o quarto. Não a viam, mas ouviram o som característico de uma tranca antiga sendo manipulada e destravada. Logo depois, o som de uma tampa de baú rangera. Alguns segundos separaram a abertura do som pesado da tampa se fechando novamente. Siana reapareceu na sala, carregando um pequeno orbe de brilho fraco, branco. Dentro das paredes de vidro circulares do orbe, uma névoa esbranquiçada podia ser vista dançando, como se feita de vapor. No entanto, ao contrário do vapor, a névoa parecia perolada, com pequenos pontos brilhantes. Navere ficou encantado pelo objeto. Ao pedir para tocá-lo, Siana não permitiu, dizendo que seria perigoso deixar aquele artefato ser tocado por mãos não treinadas na magia como as dela.
            “Estão prontos? É hora de partirmos. Iremos primeiro resgatar Desmond, depois seguiremos até Evernight.”, disse a maga.
            “Estamos. Vamos acabar logo com isso, quero sair desse inferno o mais rápido possível, filha.”, respondeu Randal. Siana levantou os olhos ao ouvir o mercenário se referindo a ela como filha, mas ele não pareceu estar ciente do termo que usara. Siana percebeu que não se importara e que de fato também enxergava Randal como uma figura paternal.
Ninguém mais falou nada. Siana decidiu iniciar o processo. Posicionou o orbe no centro da mesa, instruindo a todos que deveriam dar-se as mãos. Siana disse a Navere que segurasse em seu ombro. “Preparem-se. Provavelmente vamos atacá-los assim que os virmos. Temos o elemento surpresa em nossas mãos”, disse ela.
Observando o orbe, Siana concentrou-se e esticou sua mão direita e o tocou levemente. Dentro da esfera vítrea, a névoa condensou-se, exibindo a imagem difusa de Desmond sendo levado por cultistas ao longo de uma estrada.  O ladino era seguido de perto pela enorme figura de armadura que tinha invadido o abrigo onde estavam. Os outros cultistas seguiam atrás, a passos lentos e cadenciados. O grupo não parecia estar com pressa.
Alguns segundos depois, o orbe emitiu luz forte, capaz de atordoar a todos.
Todos, mesmo Siana, sofreram com o leve atordoamento que o teleporte costuma causar. Em algumas pessoas, a visão se torna um pouco turva, dificultando a recuperação da propriocepção. Finalmente, ao se reorientarem, perceberam que haviam sido transportados para a imediata frente do grupo de cultistas que levava Desmond.
 O espanto os congelou por alguns segundos, tornando Siana, um pouco mais experiente com teleportes e já recuperada do atordoamento, capaz de atacar de surpresa. Utilizando as mãos, colocou-as à frente do corpo  e produziu instantaneamente um leque de fogo que varreu todos eles, causando-lhes dano massivo. Desmond, mais experiente em batalhas e conhecedor da magia que Siana acabara de utilizar, aproveitou a surpresa dos captores para desviar. Não se machucou. Mesmo com as mãos amarradas, conseguira rolar e se posicionar atrás de um deles, fazendo-o servir como um escudo vivo.
O cultista e os dois mortos vivos lacaios caíram mortos instantaneamente, mas a armadura permaneceu intacta. Elevando as mãos gigantescas, empunhou a espada a posicionou diretamente no ângulo da cabeça de Siana, que já se preparava para conjurar outra magia. Antes que ele conseguisse baixar a arma e repartir sua cabeça ao meio, a maga, mais uma vez, estendeu as mãos. Desta vez, agarrou a armadura e liberou uma poderosa descarga elétrica. A figura pareceu titubear, derrubando a espada. O choque causara a hesitação necessária para que Phidain acertasse entre as placas de seu peito com uma adaga, fazendo com que a lâmina perfurasse o espaço entre as placas onde Phidain acreditava levar ao coração da criatura.
O enorme cavaleiro caiu de joelhos, colocando o peito estufado e metálico da armadura completa à altura exata dos olhos de Siana. Com a mão estendida, ainda sem demonstrar medo, a maga produziu um jato ácido, fazendo o peitoral da armadura derreter lentamente.  Quando o peitoral danificado deveria expor o usuário da armadura, nada apareceu.
A armadura desmontou completamente e parou de se mover. Desmond levantou e se dirigiu até eles.
“Vocês demoraram. Quase tive que matar todos eles sozinho.”
“Claro, você conseguiria.”, disse Askáth, sarcástico.
Desmond não respondeu. Apenas virou-se, indicando não-verbalmente as amarras que continham seus pulsos. Askáth cortou as cordas com uma adaga, libertando o outro ladino.
“Todos estão bem? Se estiverem, é hora de resgatar os Amlugnehtar”.
Mais uma vez, se juntaram em círculo ao redor do orbe que Siana carregava. Ela refez o ritual. Desta vez, o orbe mostrou não um pequeno grupo de pessoas, mas um lugar escuro e indistinguível.
            O clarão determinou o início e o fim da curtíssima viagem. Siana havia calculado que economizariam centenas de milhas desta forma, mesmo às custas de um artefato tão raro e de tão limitado uso. Nesta mesma hora, o orbe apagou-se. A névoa perolada dissipou-se por completo e o objeto tão obviamente mágico há poucos segundos, tornara-se na mais mundana das esferas de vidro.  
            A sala onde tinham ido parar parecia completamente vazia. Nenhum som provindo de monstros ou humanos podia ser ouvido, e eles tinham certeza de que estavam absolutamente sozinhos. A própria certeza foi questionada por Phidain, internamente, mas ele decidiu não compartilhar a dúvida com os companheiros de viagem.
            “Não precisaremos mais disso”, disse ela, largando o orbe, que atingiu de pronto o chão no meio do círculo que formavam. O som do vidro se estilhaçando não foi tão alto quanto imaginavam, mas ecoou nas galerias escuras e úmidas para onde tinham sido transportados. “Estranho... devíamos ter saído exatamente à frente dos Amlugnehtar sequestrados. ”          
            Som de líquidos gotejantes, como em uma galeria de esgotos desativada podia ser ouvido, ecoando indistintamente por todas as paredes. A sala toda era construída em pedra, cheia de limo e sem decorações. Parecia absolutamente vazia, até onde conseguiam enxergar. O pé direito era baixo. Com a exceção de Phidain, todos os outros conseguiam encostar as palmas das mãos com facilidade no teto apenas levantando os braços.
            Durante algum tempo, eles vasculharam a sala, à procura de saídas, itens, pistas. O ambiente muito escuro não facilitava a procura. Desmond, Askáth e mesmo Phidain pareciam intrigados com a perfeição da vedação da sala. Mais alguns minutos se passaram até que Thaal pisasse, sem querer, num dos blocos que compunha o chão.
            À frente deles, uma parte da parede deslizou. Os outros se viraram ao som pesado do arrastar da porta secreta. Um a um, cautelosamente, avançaram para a sala seguinte, intrigados pela obscuridade e acesso quase impossível. Quando Randal, o último a entrar na sala teve a chance de observar com clareza o que havia dentro da sala secreta, a respiração dele cessou por completo por alguns segundos. Os outros já estavam absolutamente imóveis pela surpresa. Nenhum deles percebeu que Siana fora a primeira a se recuperar do choque, e que a maneira que conseguiu para lidar com a visão que tivera fora curvar-se e vomitar profusamente, entre lágrimas de medo, repulsa e choque.
            Ao longo da parede lateral da sala fracamente iluminada por braseiros aos pés de quatro colunas centrais, quatro pessoas jaziam acorrentadas. Thaal soltou seu peso em cima de seus joelhos e abaixou a cabeça, pondo-se a rezar. Randal agachou-se ao lado de Siana. Askáth permaneceu imóvel, enquanto Desmond iniciara uma lenta marcha em direção aos companheiros, para que pudesse observá-los de perto. Caminhou até a feiticeira, a primeira, no canto da parede. A mão de Desmond tampava sua boca, como em um estado de espanto constante.
            Nyx estava nua, seu corpo, outrora bem formado e de beleza excepcional, demonstrava uma palidez mortiça sob inúmeras manchas de sangue. Uma de suas pernas era branca como o resto do corpo. A outra, vermelha como o sangue. Embaixo de seus pés, pendentes a mais de trinta centímetros do solo, sangrentos pedaços de carne se amontoavam entre poças de sangue coagulado. A carne de sua coxa e perna estava exposta, e o rosto da feiticeira, desacordada, transmitia ter sentido a mais profunda dor antes de perder a consciência.
            Ao lado da feiticeira, pendurado pelos pulsos, estava Orsin, o anão. Ele parecia menos ferido do que Nyx. Ao contrário de como Desmond se lembrava, Orsin não usava armadura, apenas uma calça rasgada, de tecido puído. Em seu peito, alguém havia cravado o contorno de um dragão. A mutilação parecia recente; do ferimento, o sangue ainda escorria fraco, mas constante.  Orsin estava consciente, ofegante. Seus olhos encontraram os de Desmond, e demonstravam uma profunda tristeza ao lado da dor imensa. Ele virou a cabeça, apontando para Phalos e Sonam, ao lado.
            Em terceiro havia o draconato, ainda acordado. Em vez de seus habituais enfeites feitos de partes dos monstros que ele derrotara, Desmond viu que ele tinha em seu pescoço um colar feito de dentes afiados e sangrentos, arrancados à força. Sua cabeça pendia para a frente, com seu longo focinho dracônico tocando seu peito. Os olhos estavam fechados, mas a boca entreaberta deixava sangue viscoso escorrer pelo peito e pingar no chão. Desmond percebeu de onde tinham saído os dentes que compunham o colar no pescoço do amigo.
            Ainda perplexo pela crueldade irônica cometida com Phalos, o ladino se sentia próximo a perder o controle de seu estômago, assim como Siana. Ao caminhar mais um pouco e observar Sonam, seu fôlego perdeu-se, e seus olhos finalmente cederam. Desmond gritou, cobrindo o rosto com as mãos e deixando que lágrimas escorressem profusamente de seus olhos.
            Sonam, o monge, havia sido um guerreiro implacável. Suas sequências de golpes mortais foram decisivas em diversas batalhas. Desmond devia a Sonam a vida diversas vezes. Por lutar com suas mãos e com elas ter tirado a vida de Severin, o líder do Culto do Dragão na época em que impediram o retorno de Tiamat, aparentemente a tortura vingativa tinha sido mais cruel com ele do que com os outros.
            Sonam pendia preso de braços abertos, como em uma crucificação com correntes. Sua cabeça também apontava para baixo, imóvel, indicando que ele provavelmente estava inconsciente. Seu corpo não trazia nenhum dano, ao contrário de seus companheiros, sua tortura tinha sido localizada.

            Cada uma de suas mãos, em concha, trazia em seu interior um dos olhos do monge. 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

34 - Nabara e o Dragão Vermelho

Observando o mapa, eles delinearam um plano intrincado, que envolvia o término do treinamento de Siana, o reencontro com Askáth, Navere, Thaal, Randal e Desmond, o resgate dos Amlugnehtar e a aniquilação daquela Dracolich. O monstro era comandado diretamente por Nabara, uma elfa maga que fora corrompida pelo culto alguns anos depois do impedimento da volta de Tiamat.
Em um diário que os batedores recuperaram ao invadir as dependências da líder, anotações evidenciaram o passado da elfa. Nabara perdera sua vila inteira durante os ataques do culto às florestas élficas, mas ainda assim, fascinara-se pelas artes ocultas. Depois de se reerguer e terminar seus treinamentos, a elfa procurou os poucos membros que restavam ainda vivos e iniciou o processo de ressurreição do Culto, levando-os de volta ao objetivo inicial da organização: a criação e manipulação das forças da morte, transformando dragões em Dracolichs, a versão profana e morta viva das criaturas lendárias.
Os batedores escreveram algumas notas sobre a natureza e aparência de Nabara. Descreveram-na como uma elfa de beleza surpreendente, que emana a maldade como perfume. Suas roupas são negras e ela é mestra das artes necromânticas. Sempre está rodeada de um esquadrão de zumbis, esqueletos, fantasmas e outros mortos vivos.
Durante o processo de reconhecimento, os batedores também presenciaram o sacrifício ritual de um enorme dragão vermelho. As anotações sobre o procedimento foram feitas com uma caligrafia corrida, mas eram eloquentes e bem construídas, como se vindas de uma mente que carregava as imagens do que vira detalhadamente tatuadas na memória. Os espiões responsáveis por esta missão foram capazes de esconder suas anotações em um local pré-determinado, mas foram capturados antes que pudessem tentar trazê-las de volta eles mesmos.

Deitado no chão de pedra, o dragão emitia urros que ecoavam a quilômetros de distância, mas não parecia lutar. De alguma forma, parecia consentir a morte lenta e dolorosa que lhe era proporcionada. Pouco a pouco, o sangue lhe foi drenado. As patas estremeciam e seus olhos tremiam descontroladamente perto do final. À frente do enorme corpo moribundo do dragão, um grande rubi foi colocado. Com uma espada prateada ritualística o tórax do dragão agonizante foi aberto, expondo suas costelas. A pele foi afastada. A caixa torácica expandia-se rapidamente, em respirações curtas e superficiais. Sob as costelas, o coração gigantesco fumegava e batia fracamente, emanando uma luz brasil, avermelhada e quente.
A olhos vistos, o coração parou de bater e uma energia clara e brilhante foi emitida do órgão morto.  O rubi foi colocado na direção da energia e a absorveu completamente, brilhando e parecendo pulsar. O brilho esvaneceu, e a pedra foi colocada em uma caixa de madeira escura e ossos, trabalhada em arte muito fina. A caixa foi levada, será objeto de nossa próxima busca, assim que o ritual acabar. Com o corpo do dragão, outro ritual foi iniciado. Sete necromantes, incluindo Nabara, conjuraram grandes feixes de energia necrótica que penetraram na carne do dragão abatido em sete pontos distintos. O raio que saía das mãos de Nabara atingia o centro da testa do dragão, iluminando as feições monstruosas com uma luz escura e arroxeada.
Por alguns minutos os feixes foram sustentados pelos magos. O dragão permaneceu imóvel, inegavelmente morto. Então, abriu os olhos subitamente, e levantou cambaleante. Suas pernas falhavam como as de um cavalo recém-nascido, mas ele persistiu e conseguiu firmar seu corpo sobre os membros mortos. A caixa torácica continuava exposta, com seu coração apagado e inerte do lado de dentro. Uma grande aba de pele pendia flácida do peito. Os pulmões não se expandiam, mas mesmo assim ao se firmar, o dragão contraiu o tórax e abriu a boca.
Um gigantesco e poderoso urro emanou de sua bocarra, seguido por uma enorme chama. O teto fora atingido e enegreceu imediatamente sob a força do sopro do dragão vermelho morto. Os magos e cultistas se afastaram. O dragão, lentamente, se pôs a andar em direção a uma larga passagem em um dos lados do ambiente. Nabara exibia um sorriso triunfante enquanto caminhava seguindo o dragão pela mesma passagem.

R.

Apenas as notas foram encontradas pela expedição que foi enviada para resgatá-los. Perto do local combinado para que escondessem provas, uma pedra ilusória colocada estrategicamente em um canto pouco frequentado, apenas algumas manchas de sangue seco indicavam o provável destino desfavorável do grupo anterior. O grupo de resgate enviou um de seus membros de volta, com a informação do provável desaparecimento e morte do grupo anterior, as notas e a promessa de que fariam de tudo para encontrá-los. No entanto, este membro desgarrado fora o único que retornara. O grupo enviado para o resgate também não voltou, o que fez com que também fossem declarados como mortos.
As notas foram de suma importância para a organização da emboscada que planejavam, mas  Garek e a Irmandade Arcana decidiram que o trabalho dos grupos de batedores e de resgate eram arriscados demais e que não mandariam novas missões, que trabalhariam com o que tinham.
Agora que sabiam sobre Nabara e a criação de dracolichs, o plano estava quase completo. Siana completou seu treinamento, tornando-se oficialmente maga. Especializou-se nas artes da divinação, sendo capaz de prever eventos futuros simples, mas com precisão. Através de seus recém adquiridos poderes, Siana determinou com facilidade a data de chegada dos amigos, além do ponto onde Phidain deveria interceptá-los.
Garek e Siana concordavam que Phidain deveria informá-los de toda a verdade que escondera até aquele momento, porque mesmo fragilizado, aquele grupo representava a chance que teriam de salvar os Amlugnehtar e cessar permanentemente as atividades do Culto do Dragão.
Então, quando as visões de Siana e Garek indicaram que Desmond havia sido levado de fato, como a jovem maga previra, Phidain fora enviado para encontrar o antigo pupilo, Navere, e seus companheiros de viagem.
Phidain não estava inteiramente confortável com a ideia de expor seus mais profundos e sombrios erros do passado, mas a perspectiva de ser perdoado por Navere lhe proporcionava esperança, como um poço de água límpida no meio de um pântano lodoso. O bardo adentrara Shadowfell por outra passagem, menor e muito menos utilizada do que a da biblioteca, por onde o grupo de viajantes chegara ou a da cabana onde esperaria Siana. A passagem que utilizara era apenas uma falha entre duas rochas que compunham a base de uma colina, quase impossível de ser notada por alguém que não a procurasse por ali.
            O bardo caminhara por alguns dias, sempre apenas algumas horas atrás dos outros. Seus passos menores tornavam alcançá-los um trabalho muito mais complexo do que para as outras pessoas, e ele só conseguia diminuir a distância entre eles durante a noite, quando o grupo parava para descansar e Phidain permanecia marchando.
            Em uma das noites de marcha, Phidain fora surpreendido por uma luminosidade característica das fogueiras vindo de trás dele na estrada. Sabendo que o grupo que seguia estava à sua frente, decidira investigar a presença inesperada de outro grupo de viajantes. 
            Meia hora depois, após avançar lenta e cuidadosamente em direção ao acampamento simples, Phidain conseguira se aproximar o suficiente para notar que o pequeno agrupamento de pessoas era composto por cultistas de aparência cansada, que carregavam um enorme saco de pano, colocado dentro de uma carroça de mão. A carroça estava apoiada no chão, e o saco parecia pesado e bem fechado. Observando mais de perto, conseguiu ouvir a conversa que se seguia, repleta de banalidades sobre o clima, o cansaço, a distância até o destino. Em nenhum momento a natureza da carga fora mencionada, e Phidain começava a achar que sua investigação tinha sido absolutamente frustrada.

            As mãos dos cultistas estavam cheias de bolhas e expondo feridas molhadas, que eles comparavam à parca luz da fogueira, entre as mordidas que davam em pedaços de carne seca. Phidain se conformara que a carga era provavelmente apenas de suprimentos básicos e começava a se afastar quando, de súbito, um portal abriu-se a uma distância muito perigosa deles.
            Do portal, uma elfa vestida com robes negros muito bem cortados saiu, exibindo longos cabelos negros, presos em uma trança atrás da cabeça que pendia quase até o joelho. De costas para Phidain, ele não conseguia ver seu rosto, mas a ponta de suas orelhas muito agudas evidenciava-se sob o penteado, muito alvas. A trança era ornamentada com fivelas equidistantes decoradas com pequenos crânios esculpidos em madrepérola. O perfume que emanava do corpo da elfa, perigosamente próxima de Phidain, remetia à papoulas. Apesar da aparência bela e elegante, à primeira sílaba de suas palavras dirigidas aos cultitas, Phidain percebeu que apenas fel corria pelas veias da elfa.
            “Mestra Nabara... nós... nós acreditávamos que nos interceptaria alguns dias atrás... nós... nós não conseguiríamos andar por mais muito tempo...”
            “Está me repreendendo, lacaio?”, respondeu Nabara. A melodia de sua voz era tão lúgubre como sinos que anunciavam a morte iminente de uma cidade inteira.
            “Não, mestra, mas é claro que não, jamais...”
            “Eu sabia exatamente onde estavam. Só queria que se cansassem mais um pouco. Esta carga é necessária apenas para daqui a alguns dias, e eu estava... monitorando o empenho de vocês. Agora vamos, vamos transportar este pequeno pacote para Evernight. “
            Sem dizer mais nada, mas expressando alívio, os cultistas, obviamente de patente baixa na hierarquia do Culto, auxiliaram Nabara a apoiar a carga sobre um disco que ela conjurara próximo ao chão. Enquanto tentavam retirar o grande saco de cima da carroça de mão, Phidain teve um vislumbre do que estava ali dentro. A forma era de um baú, e a cor era metálica, com ornamentos intrincados. O objeto parecia muito pesado, mas Nabara não encostou na carga em nenhum momento. Os cultistas fizeram muita força para colocar o baú sobre o disco, sempre olhando esperançosamente para a elfa, como cães perdidos.
            “Espero que façam boa viagem”, disse ela, atravessando o portal com o disco às suas costas. “Nossos magos nos informaram que nos próximos dois meses a estrada estará particularmente complexa. Eu poderia levá-los comigo pelo portal, mas estou um pouco cansada para isto agora.”
            Sem olhar para trás, Nabara terminou de transportar a carga no disco e fechou o portal, antes mesmo que os cultistas criassem coragem para contestar o veredito.

            Os cultistas se entreolharam, demonstrando apenas desespero nos olhares. Com as costas arqueadas, características do medo e cansaço, sentaram-se novamente e terminaram de comer em silêncio. Phidain, consciente de que testemunhara uma pequena amostra do que os seguidores do Culto sofriam sob o comando de Nabara, decidiu voltar para o ponto de onde se desviara e retomar a caminhada.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

33 - Existe um Plano

Curiosamente, Navere, Randal, Askáth e Thaal demoraram alguns segundos para manifestarem reação. Entretanto, uma a uma, bocas foram se abrindo, olhos se arregalando e rostos foram se deformando em esgares de puro medo.
            Siana manteve sua expressão impassível. Sua missão era transmitir calma, controle e o plano que ela, Phidain e Garek tinham concebido com bastante calma.
            Sabendo que os Amlugnehtar estavam presos em Evernight e que era lá que o Culto estava arrebanhando seus prisioneiros e recursos materiais, os três sabiam que tinham algum tempo para planejar o ataque perfeito. Os anacronismos que os teleportes entre Shadowfell e Faerûn causavam poderiam funcionar a favor deles, e Garek os havia aconselhado fortemente a utilizar esta característica como base para o plano.
            O Culto tinha membros que não haviam sido levados para Shadowfell, como os Illithids. Além disso, diversas facções, como a antiga guilda de Phidain, apenas serviam como alavanca para a arrecadação de recursos. O transporte dos bens e prisioneiros era feito pelo mesmo grupo de pessoas para Evernight, e o excesso de pressão nas fendas das sombras acabava por distorcer a passagem de tempo no plano inteiro. Isso era de fato uma vantagem para o Culto, porque eles teriam que gastar muito menos recursos para a manutenção dos prisioneiros e forças militares em Shadowfell do que se esta organização fosse feita em Faerûn.
            Em Faerûn, os ataques ainda eram esporádicos e discretos, quase imperceptíveis. Nos tempos em que os Amlugnehtar lutaram contra a volta de Tiamat, os ataques eram muito mais ostensivos. Por causa da discrição estrategicamente planejada e igualmente derivada das forças reduzidas do Culto, o fluxo de recursos para Shadowfell era escasso e esporádico; no entanto, por causa da divergência no tempo, em Shadowfell recebiam-se todos os dias diversos carregamentos pequenos de pessoas para sacrifícios, ouro, reagentes mágicos e objetos de valor.
            Pensando nisso, o treinamento de Siana foi feito da forma mais rápida possível, calculando-se que apenas alguns dias seriam gastos em Shadowfell, fazendo com que pouco avanço pudesse haver do outro lado. Mesmo assim, ela ainda teve quase um ano para conseguir se transformar em uma maga eficiente o suficiente para carregar a responsabilidade de substituir Garek Whitebeard em uma batalha tão difícil.
            Garek fora questionado no que tangia a escolha de Siana como enviada. Ele mesmo havia duvidado da capacidade da jovem maga de conduzir a dificílima missão de forma eficiente por algumas vezes, mas logo fora lembrado por Phidain que ela era a escolha mais sábia. Siana era nova, inexperiente. Apesar disso era muito inteligente, havia superado todas as expectativas durante seu treinamento. Era uma jovem centrada, correta e capaz de entregar sua própria vida para que a missão fosse cumprida, qualidade raramente encontrada entre magos. Além disso era uma recruta relativamente nova na escola, recém-acolhida pela Irmandade Arcana. E a Irmandade, apesar de questionar Garek, compreendia que Siana era apenas uma aprendiz e que sua morte não representaria nenhuma perda significativa para a escola, para a Irmandade ou para os magos no geral.
            Siana fora informada ainda na metade de seu treinamento que seria a enviada da Irmandade para Shadowfell. A partir dali seus estudos mudaram um pouco e ela recebeu a orientação de focar-se em aprender a utilizar os pergaminhos que estavam sendo produzidos por membros ilustres da Irmandade, como Garek. Nestes pergaminhos, eles desenhavam belas runas antigas. Quando lidas em voz alta, eram capazes de produzir feitiços fortíssimos, muito mais poderosos do que Siana poderia imaginar. Ela não seria a responsável por conjurá-los, apenas por conduzi-los à realidade. Ainda assim, a Siana cabia escolher a hora e local de realizar tais magias, e principalmente para isso era treinada intensivamente.   
            Siana também recebera de Phidain e Garek alguns mapas desenhados por batedores enviados a Shadowfell, que representavam em linhas tremidas as dependências da sede em Evernight.
            Evernight era uma cidade decrépita, entristecida, cinzenta, que se comportava como uma sátira trágica da cidade de Neverwinter em Faerûn. A cidade original é uma grande metrópole, um importante centro comercial e cultural do continente. Concentra muito do poder político, mágico e financeiro de Faerûn. Evernight, por outro lado, é como uma versão enegrecida, com paredes perfuradas pela podridão. Toda a prosperidade de Neverwinter é refletida pela sua exata contraparte, a desolação. Onde na cidade em Faerûn há um mercado vivaz e movimentado, Evernight exibe uma sequência pós apocalíptica de esqueletos de barracas, com restos de lonas e tendas tão negras quanto o carvão. Em vez de mercadores falantes, mortos vivos rondam o mercado, sem rumo, com pedaços de suas faces pendendo flácidos, exibindo ossos que se esfarelam por baixo da carne podre.
            Entre todo o cenário cataclísmico da enorme cidade de Evernight, o Culto tomou parte do castelo sombrio para si. Mais ou menos no centro da cidade, uma grande construção avançava em direção ao céu tempestuoso. Em seus porões e duas de suas torres mais externas, o Culto amontoava seus prisioneiros como gado confinado. Algumas salas comportavam uma quantidade sempre crescente de tesouro, que permanecia guardado por dois ou mais cultistas que se revezavam em turnos.
            Incrivelmente, os batedores puderam desenhar com detalhes os corredores utilizados pelo Culto, indicando em cada marcação de porta o propósito da sala que a respectiva porta antecedia. Através de uma sequência de missões complexas e muito cuidadosas, o mapa foi sendo progressivamente acrescido de informações, tornando o planejamento da missão mais exato. Os batedores eram, no geral, membros de uma guilda de ladrões e espiões. Também tinham a ajuda, ironicamente, dos Zhentarim.
            Então, Garek Whitebeard, Phidain e Siana tinham os mapas estendidos em uma mesa de carvalho antigo, muito grande, numa sala muito bem iluminada com globos de luz eterna e mágica. Com um dos dedos com nós acentuados e muitas manchas e rugas, Garek apontou para um salão grande, subterrâneo, de contornos irregulares. No centro dele, havia uma marcação circular, com a legenda sobrescrita:
Dracolich

Aquela indicação que parecia tão pequena no mapa, na realidade representava a preocupação mais real de todos eles. 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

32 - Pão, Queijo e Lareira

Apenas alguns dias tinham se passado desde a última vez que viram Siana no templo. Mesmo assim, ela parecia mais velha, mudada. Vestia robes diferentes e amarrava seu cabelo para trás, deixando a parte mais inferior solta. Parecia ter o olhar mais sereno, complexo.
“Mas... Siana... achamos que você tinha morrido!”, disse Navere, abraçando-a. A expressão cinzenta que ele carregara no rosto desde a revelação de Phidain sumiu por alguns instantes ao ver a meia elfa, fazendo os outros se animarem com a possibilidade do bardo se recuperar do choque.
“Não, não morri. Mas por que acharam que eu tivesse morrido? Eu só... fui levada de lá.”
“Aquilo tudo desabou e fomos emboscados por todo o tipo de criatura ao sairmos de lá”, respondeu Askáth. “Procuramos você até que a estrutura começou a ruir. Como foi que saiu de lá?”
“Eu a retirei dali por teleporte”. Inesperadamente, foi Phidain quem respondeu. “Podemos conversar lá dentro? Aqui está frio demais.”
Todos entraram, em fila, na cabana. Havia comida quente, ensopado de carne e pães frescos, colocados na mesa com seis lugares. O ambiente tinha luzes mágicas flutuantes, mas a lareira estava acesa. De alguma forma, o fogo conseguira sobrepujar o ar gelado e pesado de Shadowfell, deixando a sala quente e aconchegante.
Durante algumas horas eles sentaram e conversaram. Phidain garantiu-lhes que não perderiam os sequestradores do Culto de vista e que poderiam dispor daquele tempo, e que Desmond ainda estaria vivo e inteiro quando o encontrassem.
Pelas horas que a refeição tomou e mais muitas que invadiram a noite, Siana discorreu sobre todas as dúvidas que pairavam entre eles. Explicou que Phidain a havia retirado por teleporte de lá, e a levado para um mago da Irmandade Arcana, Garek Whitebeard. Garek, a pedido de Phidain, havia preparado um treinamento intensivo sobre magia arcana, finalmente tornando Siana uma maga. Seus olhos transmitiam orgulho mesclado com preocupação.
“Eu... eu acho que Phidain e Garek precisavam que eu aprendesse a magia. Acho que o que enfrentaremos consumirá todo o poder que possamos produzir. Infelizmente, Garek está velho demais para lutar conosco, mas ele me armou de conhecimento e artefatos mágicos.”
Siana continuou, dizendo que Phidain havia contado toda a verdade para ela. Aparentemente, Phidain havia feito Navere e ela acreditarem que a dívida era com os Zhentarim, já que a ideia de illithids e membros do culto estarem chantageando o mestre deles era muito pior. A ideia dos Zhentarim os manteria ocupados, longe das garras do Culto. Apesar disso, os illithids decidiram atacar Phidain em seu ponto fraco, as pessoas que ele podia chamar de família. Navere andava distante, mas Phidain, obviamente, o tinha como filho. Siana tomou a mão de Navere entre as suas, fazendo uma carícia amigável. O bardo abaixou a cabeça e se permitiu derramar mais algumas lágrimas. Phidain não falou nada e permaneceu de cabeça baixa e olhos tristonhos.
Siana ainda explicou que eles vieram para Shadowfell através de uma fenda na sombra, a mesma que tinham naquela cabana, num canto. Os múltiplos teleportes e viagens fizeram com que para eles o tempo passasse de forma um pouco diferente. Para eles, não viam Siana há alguns dias. Para Siana, quase um ano havia se passado.
Ela também contou que soube do desaparecimento dos Amlugnehtar e de Desmond, e que ela e Phidain haviam concebido um plano para resgatar a todos. Aquela era uma cabana estrategicamente posicionada, que servia como transporte e base para várias incursões conduzidas pela Irmandade Arcana para Shadowfell ao longo dos anos.
Quando o ar ainda mais gelado da madrugada permeava através das frestas das janelas, perceberam que deveriam dar o dia como encerrado. Descansaram em camas preparadas por Siana antes que chegassem à cabana.
No dia seguinte, ao acordarem, Siana e Phidain já haviam preparado a mesa para o café da manhã. Serviram leite, presunto, pães, ovos cozidos e mel. Mesmo surpresos com a mesa farta mais uma vez, eles ainda estavam muito desconfiados da súbita aparição de Siana e de Phidain. Percebendo a insegurança que pairava entre Askáth, Randal, Navere e Thaal, Siana interveio, com voz doce.
“Sei que vocês não estão se sentindo bem com tudo isso. Mas posso assegurar a vocês todos que Phidain teve as melhores intenções desde o começo, desde que se desligou do Culto. Navere... você é tudo para ele. Quando você saiu da casa de Phidain, pouco antes de eu chegar, ele ficou muito triste... você é um filho. Você é o filho que ele nunca teve. E eu... eu sou uma aprendiz que duvidou de seu mestre, apenas para que ele provasse suas boas inteções o tempo todo.”
“Você precisa aceitar que isso é muito difícil para nós”, disse Navere. “Principalmente para mim... você não imagina como é saber que seu mestre mentiu sobre tudo, sobre toda a sua vida, porque matou seus pais...”
“Navere... por favor, me perdoe... você é a razão de eu ter fugido, a razão de eu ter desertado e traído o Culto. Eu não era bom antes disso, eu era um assassino... você me trouxe à vida, você me mostrou que eu poderia ser diferente!”, disse Phidain, em tom entristecido.
Navere olhou para os olhos de Phidain pela primeira vez. Não respondeu, mas Phidain achou que ele parecia um pouco mais propenso a perdoá-lo num futuro próximo.
“Nós precisamos seguir viagem”, disse Siana, enquanto acomodava uma grossa fatia de queijo entre dois pedaços de pão fresco. “A parte boa é que temos tempo. Nós não seguiremos pela estrada.”
“Qual é a parte ruim?”, perguntou Askáth, desconfiado do tom dela.
“Teleportaremos... e para onde vamos, as coisas não andam bem. Sei que estamos procurando Desmond e os Amlugnehtar, certo?”
“Certo...”, respondeu Randal, incerto. Ele não falava já há algum tempo.
“Nós precisamos que esteja tudo certo entre nós. Passaremos alguns dias mais por aqui, e precisamos organizar um plano de ação. Nós sabemos o que encontraremos por lá”, disse Siana.
“E o que exige tanta preparação?”, perguntou Navere.

“Dracolichs.”

31 - Phidain e seu Filho

Internamente, Navere não entendeu as próprias reações. Apesar de estar enraivecido pelas atitudes de Phidain, toda a história que dividiam fez com que seu coração se sentisse acolhido de alguma forma. Seu rosto não permitiu o sorriso, mas ele ficou feliz que a noite escura escondeu o brilho em seus olhos.
            “Olá, Navere. Olá, pessoal.”
            “Isso está ficando muito estranho”, disse Askáth. “Como você veio parar aqui neste fim de mundo?”
            “Este não é o fim do mundo, ladino... é apenas outro.”
            Eles ficaram em silêncio com a resposta do bardo. Ele se aproximou mais, se fazendo mais visível à luz fraca da fogueira. Largou a bolsa no chão e sentou-se, infiltrando-se na roda.
            “Eu... acho que vocês devem ter muitas perguntas”, afirmou Phidain, um pouco inseguro. “Estou pronto para responder a todas, desde que sigamos viagem assim que o dia nascer.”
            “Viagem? Você está louco? Depois de tudo o que aconteceu, o que faria com que permitíssemos que viajasse conosco?”, perguntou Askáth, um pouco mais sério.
            “Posso explicar tudo o que aconteceu, se vocês me permitirem.”
            “Pois comece do começo, Phidain.”, falou Thaal, com o rosto sério e a voz profunda.
            “Eu nunca quis colocar vocês em risco. Foi tudo por causa... de um erro muito grave que cometi.”, começou ele, respirando fundo. “Eu me aliei a pessoas erradas no passado, bem antes do Culto do Dragão se tornar o que virou. Eu era um ladino, como você, Askáth. E modéstia à parte, eu era muito bom.”
            O clima de espanto entre eles foi quase palpável.
            “Então, o líder da guilda resolveu nos afiliar ao Culto. Eu não queria ir, eu juro para vocês que eu não queria. Um dia, me mandaram matar mais alguns desertores. Vejam, eu era um assassino, e eu era muito bom. Por favor... por favor me perdoem...”, disse Phidain numa voz tremida.
            “Continue”, respondeu Navere, com a voz seca.
            “Então, depois dessa missão eu... eu me arrependi de tudo. Percebi que o Culto não poderia ser bom e resolvi fugir. Levei comigo o filho dos dois que matei, morto, nos meus braços. Ele morreu por engano... não sabia que tinha uma criança lá...”
            “Por que você levou o corpo?”, perguntou Askáth.
            “Porque não conseguiria dormir nunca mais se não tentasse. A morte daquele menino foi causada por uma magia que o próprio pai dele conjurou, mas que estava destinada a mim, que os atacava sob seu próprio teto. Eu sou um monstro, um monstro...”. Phidain parecia estar perdido em remorso. Seus olhos marejados olharam diretamente para Navere. “Levei o menino para um templo, onde me disseram que uma pequena fortuna era necessária para revivê-lo, mas que seria possível. Sabia exatamente onde encontrar este dinheiro. Então, fui até a guilda novamente, levando as cabeças dos pais do garoto. Voltei até a casa deles para decepá-las, eu... eu precisava de uma prova...”. Phidain desabou em lágrimas. Não parecia capaz de continuar.
            “Por favor, continue. Precisamos saber. Temos esse direito”, disse Thaal.
            “Eu demonstrei que havia cumprido a missão. Na sala do tesouro, matei os dois guardas que contavam o dinheiro que a guilda estava juntando para o Culto e roubei tudo o que podia. Saí dali o mais rápido que pude, levei as moedas ao templo e o garoto foi revivido. ”, continuou Phidain, tentando se acalmar.”
            “O que você fez com o menino? Para onde ele foi, depois que você matou seus pais e decepou suas cabeças?”, perguntou Navere. Os olhos de Phidain demonstraram dor profunda, principalmente pela pergunta ter vindo de Navere.
            “Ele... não se lembrava de nada... então eu... eu... menti para ele. Contei que ele havia batido a cabeça ao tentar me roubar. Disse que... disse que eu o perdoava e que iria ensiná-lo a ser uma pessoa melhor. Disse que tinha o ouvido cantar e sua voz era linda.”
            Navere parecia profundamente estarrecido. Não esperava de forma alguma que a história de Phidain fosse se revelar desta forma. Não achava que sua vida tivesse sido diferente do que imaginava, um menino de rua abandonado pela mãe prostituta, que vivia fazendo pequenos truques, furtos e traquinagens.
            “Phidain...”, foi tudo o que conseguiu dizer, antes que suas pernas o fizessem se levantar subitamente. Como se não controlasse sua linguagem corporal, levou às mãos à boca e saiu da roda da fogueira a passos largos.
            “Espere, Navere... me perdoe, me perdoe!”, gritou Phidain, se levantando e tentando seguir o bardo. Thaal o segurou pelo braço e o fez sentar novamente.
            “Dê um tempo a ele. Sua história foi demais para ele, e quase para nós também. Prossiga. Dê a Navere tempo para que compreenda a dimensão de tudo o que você falou.”
            “Daquele dia em diante, me dediquei apenas à música, que sempre fora minha paixão, mesmo nos tempos da ladinagem. Desenvolvi a magia e me tornei um bardo profissional. Por medo que Navere se tornasse o que fui, o levei junto para a música e o treinei o melhor que pude. Satisfiz com mentiras a necessidade de conhecimento sobre seu próprio passado, dizendo que o criava por pena, que ele não tinha pais, que tinha sido abandonado. Jamais... jamais poderia assumir que eu tinha causado a morte daquele casal que apenas havia percebido a verdadeira face do Culto e tentava fugir para proteger a cria.” O bardo parecia cheio de pesar, falava baixo. Sua voz fina e anasalada de halfling, normalmente carregada de alegria, não remetia ao bardo que conheceram. “Depois de alguns anos, encontrei Siana e a tomei como aprendiz da mesma forma.”
            “Certo. Linda história. E os Amlugnehtar? Nós sabemos que a culpa foi sua. Desmond achou o pergaminho com as suas ordens na sua casa, quando foi confrontá-lo. Ele nos mostrou.”, disse Askáth, firme e apressadamente.
            “Eu não sei... eu estava sendo chantageado pelos Illithids, que descobriram meu paradeiro e ameaçaram contar para o remanescente do Culto sobre meu roubo e deserção. Consegui me safar por algum tempo das demandas deles, mas acabaram por sequestrar Navere e Siana e tive que cumprir o que pediram. A única coisa que me pediram foi para plantar uma pedra num canto específico da Taverna. Se eu fizesse isso, poderia buscar meus pupilos. E foi assim que eu os encontrei, quase mortos, sendo sugados pelo Illithid que matei. Ouvi vocês chegando e saí, com medo de ser descoberto. Esperei escondido do lado de fora, até que vocês saíram com Navere e Siana carregados.”
            “Mas ONDE ESTÃO ELES?!”, exaltou-se Askáth. “ESTOU CANSADO DESSE SEU FALATÓRIO!”, continuou. Perdemos Siana, Desmond e todos os Amlugnehtar por sua culpa!
            “Eu não sei.”
            Desta vez, foi Askáth quem levantou e pôs-se a caminhar com passos firmes, demonstrando raiva. Alcançou Navere e começaram a conversar em voz baixa.  Os outros permaneceram em silêncio por algum tempo, até que Askáth gritou mais uma vez, agora, com Navere. “EU NÃO QUERO SABER! A CULPA FOI DESSE HALFLING!”.
Mais algumas frases inaudíveis e foi a vez de Navere se exaltar. “VOCÊ ACHA QUE EU NÃO SEI DISSO? E SIANA? PERDEMOS SIANA, E AGORA ELA ESTÁ MORTA!”
Thaal olhou para Phidain, que apertou os olhos e abaixou a cabeça.
“Acho melhor deixarmos o resto da conversa para amanhã. Você vai ter que seguir conosco. É o mínimo que pode fazer para pagar suas dívidas com Navere. E Desmond, quando o encontrarmos. ”, disse Thaal.
“Foi para isso que vim até aqui”, respondeu Phidain, humildemente.
Deitaram em seus sacos de dormir. Askáth e Navere continuaram conversando por meia hora depois que os outros já estavam deitados, e acabaram tomando o primeiro turno de vigia para si.  
Na manhã seguinte, o céu acinzentado os acordou com a parca luminosidade de Shadowfell. Enquanto eles juntavam os aparatos do acampamento, Phidain observava uma pequena pedra avermelhada que tirou do bolso.
“Temos mais muito tempo de viagem. Mais de dois meses.” Os três se entreolharam assustados com a previsão, mas não demonstraram verbalmente o espanto. “Vejo que suas provisões são escassas e de má qualidade. Não se preocupem, eu estou preparado. A seis horas daqui há uma cabana, com tudo o que precisamos para seguirmos viagem.”, anunciou Phidain.
“E como você sabe disso? Já veio aqui também?”, perguntou Askáth. “Parece que você está em todos os lugares, é uma coisa impressionante”. A voz do ladino soava sarcástica e seca.
“O suficiente. Precisamos estar bem preparados e descansados para o que virá pela frente.”
Nas horas seguintes seguiram pela estrada vazia e abandonada. Navere seguia sozinho, cabisbaixo, por último. Os poucos rastros que o grupo que levava Desmond havia deixado foram apagados por uma chuva fina e gelada que os acompanhou boa parte do caminho. O chão de terra preta com pedriscos esparsos se tornou uma lama espessa que engolia os passos deles com voracidade. A viagem até a cabana seria completada até metade do dia, mas acabaram alcançando-a apenas no começo da noite. A chuva já havia parado há algumas horas, mas o ar permanecia gelado e úmido.
Ao avistarem a cabana, depois de uma curva a mais ou menos meio quilômetro de distância, se surpreenderam com as luzes acesas do lado de dentro. A luminosidade era azulada, característica da iluminação mágica.
Alguns minutos depois, antes mesmo de tentarem alcançar a porta, esta se abriu espontaneamente.

“Oi, pessoal”, disse Siana.