Siana
largou o pergaminho no chão. Ao terminar de recitar os versos em runas antigas
da magia, a escrita mágica desapareceu, deixando apenas marcas queimadas no
lugar. Era um pergaminho muito bem feito, raríssimo, de uma magia muito
poderosa.
A maga era
jovem e inexperiente. Mesmo assim, esta era uma magia tão rara que mesmo os
magos mais poderosos ainda se sentiriam sobrepujados pelo poder que ela podia
sentir. O tempo havia parado, e ela estava livre.
Siana
correu para a passagem de onde tinha vindo a dracolich e os outros monstros.
Pelo mapa, sabia exatamente onde deveria ir. E sabia também que teria de agir
muito rapidamente, porque as ações dela seriam extremamente limitadas pela
duração da magia.
Entrando na
sala indicada pelo mapa, conseguiu ver o que buscava assim que passou pela
porta. Em cima de um pedestal, ao lado de outras gemas gigantescas, estava o
rubi que buscava. A gema brilhava pulsando, viva. Emitia calor e um tamborilar
baixo, constante, como o ronronar de um gato. Ao lado, em outros pedestais,
outras gemas descansavam imóveis, sem brilho. Não pareciam ainda ter recebido a
essência de nenhum dragão.
Siana, enfiando a mão na bolsa que
carregava, retirou uma maça pesada, com detalhes em ouro. Empunhando-a acima da
cabeça, golpeou fortemente o rubi, estilhaçando-o em infinitos cacos
pontiagudos. O tempo voltou a passar normalmente assim que Siana atingira a
superfície da gema. Ao redor de Siana, a poeira recomeçou a cair como antes, e
a batalha na sala anterior voltou a produzir sons ensurdecedores. À percepção
dos outros, Siana tinha desaparecido.
Phidain, ao ver que a maga não
estava mais no lugar para onde estava olhando, sabia que esta era sua deixa,
como o combinado. Imediatamente, com a rapidez de quem tinha sido um ladino
muito experiente, empunhou a besta e atirou a única seta encantada que
conseguira. A seta, por causa do ótimo posicionamento de Phidain, acertou em
cheio o olho direito da fera. O dragão putrefato urrou mais uma vez, desta vez
demonstrando dor. A outra órbita vazia da dracolich fazia com que o monstro
parecesse cego, mas ela não parecia ser incapaz de enxergar. Virou-se
violentamente, fitando Phidain diretamente, com o focinho a poucos centímetros
do rosto do bardo. O olho vazio e o olho perfurado ainda eram capazes de
transmitir a fúria do dragão vermelho morto. Em apenas uma fração de segundo,
quando Phidain começava a contrair suas pernas para fugir, a bocarra pavorosa
se abriu. Junto ao urro veio um sopro de temperaturas impensáveis, que envolveu
Phidain em labaredas mortais. Siana ainda abaixava a maça e os cacos ainda caíam
no chão quando Phidain tragou a chama, na tentativa nula de gritar.
Alguns
segundos depois, Siana alcançou a porta e começou a correr de volta ao salão, já
com o segundo pergaminho nas mãos. A enorme besta pareceu perceber que sua essência
tinha sido dissipada da filactéria, e urrou mais uma vez, enfurecido. O ferimento
no olho deixava escorrer sangue negro apodrecido, tornando a aparência do
monstro ainda mais aterradora.
Siana
chegou à passagem altíssima por onde tinha saído do salão. Em vez do dragão
morto vivo, a primeira coisa que avistou foi um pequeno corpo carbonizado,
exatamente onde Phidain havia se posicionado quando ela saíra.
Levantou os
olhos e alcançou o rosto do dragão, que a havia visto. A dracolich iniciou marcha
enfurecida em direção a ela. Siana teve tempo de ler o pergaminho que já estava
em sua mão, com apenas uma palavra em língua antiga estava escrita nele a tinta
de ouro e desenhos decorativos intrincados nas margens. A única palavra, dita
com pesar, por olhos que começavam a se encher de lágrimas observando diretamente
o monstro que avançava ferozmente em sua direção pareceu funcionar
imediatamente. Sem nenhum aviso, mais nenhum urro, nenhuma resistência, a
dracolich simplesmente caiu com os músculos completamente relaxados. A inércia
provocada pela velocidade em que se movia fez com que o corpanzil cavasse uma
trincheira até que o movimento cessasse, deixando uma série de pedaços de carne
apodrecida pela extensão do buraco.
Se o dragão
vivesse e tivesse ainda pupilas, elas estariam dilatadas, imóveis.
O pergaminho
caiu das mãos de Siana, que não conseguia reagir. Deixou seu corpo cair de
joelhos, com os olhos ainda fixos no pequeno monte de carne queimada que ela
tinha certeza que havia sido Phidain poucos momentos antes.
Os Amlugnehtar e os outros recomeçaram
o ataque aos illithids, ao beholder e aos mortos vivos, correndo em direção a
eles. Alguns momentos depois, Nyx conseguiu se recuperar o suficiente para se
levantar. Criaturas morriam em grandes números nas mãos dos Amlugnehtar e dos
outros. Askáth recebeu um largo ferimento no abdômen, mas conseguiu estancar o
sangue com as mãos. Sentou-se ao lado de Nyx e esperou por ajuda. Quando Orsin
percebeu, correu até ele e fechou o rasgo utilizando sua poderosa magia divina
de cura. Thaal curou ainda em batalha um
largo ferimento na perna de Randal, que esguichava sangue.
Siana se levantou, tentando
recompor-se e terminar de executar sua parte no plano. De sua bolsa retirou o último
pergaminho. Leu em voz alta as pequenas rimas rúnicas. O chão começou a tremer
furiosamente, enquanto gigantescos pedaços de rocha flamejante atingiam os
grupos de inimigos, esmagando-os e carbonizando-os. Os meteoros pareciam sair
do teto do salão, desafiando o senso comum. Por algum motivo provavelmente mágico,
os enormes pedregulhos em chamas não atingiram nenhum dos companheiros de Siana,
que apenas testemunharam a batalha que travavam terminar abruptamente.
O silêncio que se seguiu era
quebrado apenas pelo som das chamas que ainda queimavam nos meteoros caídos. O
ambiente estava muito iluminado pela luz alaranjada que vinha das brasas e das
chamas produzidas pela magia, tornando a visão da enorme dracolich morta ainda
mais sobrenatural. Siana caminhou silenciosamente até o corpo de Phidain,
passando por todos os outros no caminho. Ninguém proferiu palavra por muito
tempo, apenas sons de respirações ofegantes no ar cheio de fumaça e cheiro de
carne queimada. Os mortos vivos que cozinhavam nas chamas produziam um odor
insuportável, quase tóxico, pela queima de sua carne podre.
Siana ignorou a dracolich morta, agachando-se
ao lado do antigo mestre. Seus restos estavam fumegantes e muito quentes, com partes
ainda em brasa. A forma era vagamente humanoide, muito menor do que o halfling
havia sido em vida. A maga permitiu-se chorar, soluçante.
Juntos, fizeram o caminho de volta,
utilizando a passagem das sombras que ficava a alguns dias de viagem. Todos
falaram muito pouco. Siana levava o corpo de Phidain num disco flutuante mágico,
enrolado em um cobertor.
Quando alcançaram Águas Profundas
finalmente, Siana foi calorosamente recebida pelos pais. Sepultaram Phidain em
uma cerimônia simples, que teve seu silêncio quebrado apenas pelas curtas
palavras de Navere, finalmente perdoando o mestre morto.
Os Amlugnehtar retomaram a Taverna,
insistindo que os outros cinco sempre seriam bem-vindos. A reputação lendária
dos Amlugnehtar não foi abalada, mas não receberam nenhum reconhecimento por
terem erradicado o Culto em Shadowfell. Em Águas Profundas, muito tempo havia
se passado e as atividades do Culto não haviam sido expressivas o suficiente
para que fossem notados.
Siana, Askáth, Navere, Randal e
Thaal continuaram absolutamente desconhecidos, com apenas a certeza de que
aquele tinha sido apenas o primeiro dos horrores que enfrentariam juntos dali
para a frente.
FIM
Epílogo
Enquanto o
pequeno gnomo se escondia, ninguém notara. Seu corpo frágil fora imobilizado
pelo tempo parado, mesmo que ele não tenha percebido; seus pequenos pés foram
sacudidos pelo enorme corpo da dracolich atingindo o chão durante a morte súbita
à qual foi submetida; sua compleição pálida fora iluminada pelas chamas dos
meteoros.
Durante
tudo isso, o gnomo permanecera absolutamente encolhido, dentro de uma pequena
rachadura na parede ao lado da grande passagem.
Quando tudo
terminara, observou os atacantes irem embora lentamente, carregando o corpo do halfling
que matara Vellath, o dragão morto-vivo. Finalmente, pôde se esgueirar para
fora da pequena rachadura. Conseguiu observar o campo de batalha, o grande salão
que tinha servido de palco para a transformação do dragão e que teria abrigado
outros sacrifícios, se o Culto não tivesse sido obliterado pelos invasores.
Apesar de
sua aparência, o gnomo era uma criatura extremamente inteligente, que havia
sido cuidadosamente treinado para aquele momento. Não acreditava que teria que
aplicar seus conhecimentos tão cedo, mas Nabara deixara sua missão detalhada. Nabara
aceitara sua natureza svirfneblin como ninguém jamais havia, e respeitara seus
costumes e habilidades. O gnomo das profundezas costumava esconder sua cabeça
sem cabelos sob um pequeno manto negro. Ao lado de Nabara, suas habilidades
necromantes se desenvolveram brilhantemente, e ela havia confiado a ele a mais
importante das tarefas.
Caminhando
até o corpo da mestra morta, tentou levantá-la, mas não conseguiu. Mesmo o
corpo leve da elfa era pesado demais para o gnomo. Decidiu começar ali mesmo o
ritual.
Sentou-se
ao lado do corpo e por mais de duas horas proferiu uma série de rimas em uma língua
morta. Se alguém estivesse ali e fosse capaz de compreender os versos alienígenas,
teria ouvido cânticos de paz e vingança, de vida e morte, do valor do sangue e
do conhecimento.
De dentro
do bolso costurado em seu manto, retirou uma obsidiana lapidada, perfeita e muito
brilhante. Sua superfície lisa era negra arroxeada e quase gélida. Pousando a
gema sobre o peito de Nabara, permaneceu produzindo as estrofes por mais duas
horas.
Ao final
das longas rimas, uma fraca névoa escura emanou do peito de Nabara, penetrando
a pedra como se esta sugasse o ar ao seu redor. A gema brilhou, deixando seu
interior exposto, com um brilho arroxeado.
O svirfneblin
sorriu largamente quando Nabara abriu os olhos, com as pupilas completamente dilatadas.